ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Conexão tucupi
A garimpeira de sabores exóticos
Rafael Tonon | Edição 121, Outubro 2016
Em junho, às onze da manhã de uma terça-feira gelada, Antônia Padvaiskas entrou pela porta de serviço do premiadíssimo restaurante Maní, no bairro paulistano dos Jardins, enquanto seu marido e sócio, Steven Padvaiskas, carregava um isopor com aproximadamente 5 litros de tucupi, o apimentado caldo de mandioca brava que compõe diversos pratos da culinária amazônica. Depois de cumprimentar o casal, o chef espanhol Daniel Redondo levou à boca um pedaço de cacau-carambola que Antônia trazia nas mãos. “Docinho!”, surpreendeu-se. E logo se lembrou de uma leguminosa seca, grande, “como uma estrela”, que provara dias antes e o fascinara. “Qual o nome?”, indagou, com um forte sotaque catalão. “É bem escura?”, perguntou Antônia. “Sim”, respondeu o chef. Ela, então, deu o veredicto: “Fava-de-aridã! Eu arrumo para você.”
Em nenhum momento, Redondo duvidou que Antônia cumpriria a promessa. Certa vez, ele precisou de taioba para um jantar que prepararia com Joan Roca, chef de um dos melhores restaurantes do mundo, o El Celler de Can Roca, em Girona, na Espanha. Recorreu sem titubear à morena de traços fortes, cabelos encaracolados e sorriso largo, que se deslocou até Petrópolis, no interior do Rio de Janeiro, e voltou com o porta-malas repleto das folhas.
Nascida em Abaetetuba, a 120 quilômetros de Belém, Antônia se mudou para São Paulo ainda criança, mas as visitas corriqueiras à família no Pará fizeram com que pegasse gosto pelos sabores do Norte e aprendesse a distingui-los bem. Na capital paulista, conheceu Steven, um canadense formado em biologia marinha, de quem adotou o sobrenome lituano há mais de duas décadas. Embora adorasse culinária, ela nunca quis cozinhar profissionalmente. Preferia ganhar a vida como cenógrafa ou confeccionando artesanato. Em 2004, porém, o apreço pelos alimentos falou mais alto, e Antônia decidiu estudar gastronomia. Durante o curso, percebeu que havia, no Sudeste, um interesse cada vez maior por ingredientes amazônicos, apesar da oferta escassa. Vislumbrou, assim, a possibilidade de cruzar o país e trazer de Belém as ervas, os frutos, as raízes, os caldos, as verduras e demais produtos que atiçavam a imaginação dos chefs.
Depois de ter a ideia, Antônia levou quase dez anos para concretizá-la. Foi só em 2011 que inaugurou o Empório Poitara. O termo indígena vem do tupi e significa “aquele que dá de comer”. Hoje, a empresa fornece algo em torno de 180 itens a restaurantes sofisticados de São Paulo e do Rio, além de cozinheiros amadores que fazem almoços ou jantares em casa. A maioria dos ingredientes provém da Amazônia. Apenas uma pequena parcela se origina de outras regiões, como o cerrado, a caatinga e a Mata Atlântica.
São comercializados, em média, mil quilos de mercadoria por semana. O tucupi lidera o ranking das mais procuradas. Cada litro da iguaria custa 28 reais – uma miséria perto do que se paga pela baunilha de Madagascar. A especiaria é o item mais caro do empório. Um quilo sai por 2 mil reais. O Poitara costuma receber os artigos no Aeroporto de Congonhas, em isopores refrigerados, e os armazena num sobrado de 140 metros quadrados, com três freezers. Os próprios sócios se encarregam de entregar boa parte deles num Renault Scenic verde. “Quase não mantemos nada em estoque. Praticamente tudo que chega é distribuído de imediato”, diz Antônia.
Desde meados dos anos 2000, o resgate de sabores considerados exóticos virou tendência entre chefs dos grandes centros urbanos, tanto dentro quanto fora do Brasil. O fenômeno gerou uma revolução na gastronomia contemporânea nacional e Antônia, como maior distribuidora das matérias-primas regionais no Sudeste, tem papel essencial nessa reviravolta. Sem as garimpagens dela, dificilmente os gourmands das duas principais metrópoles brasileiras poderiam consumir aquilo que os críticos definem como “criações com o bioma da floresta” ou “pratos de releituras amazônicas”. Antônia “vende tudo que você sempre quis e nunca conseguiu”, escreveu a cronista e banqueteira Nina Horta em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo.
Toda vez que se reúne com um novo cliente, a paraense leva uma cesta cheia de atrativos, desmarca qualquer compromisso para as próximas horas e promove uma demorada degustação. Explica as características de cada item, tenta lhes descrever o gosto e apresenta as diversas maneiras de prepará-los.
Há cinco meses, em Belém, enquanto visitava o Festival Ver-o-Peso da Cozinha Paraense, Antônia encontrou por acaso um grupo de jornalistas. Ela rapidamente se voluntariou a lhes servir de guia no mercado homônimo. Caminhando desenvolta pelos inúmeros corredores que integram a maior feira livre da América Latina, parava diante das barracas e discorria sobre os produtos à venda. Na de número 34, apanhou o fruto do buriti e o exibiu, ciente de que sua casca iria encantar os jornalistas: marrom e salpicada de pequenos losangos, parece feita de madeira. Em seguida, cortou nacos de abricó-do-pará e os ofereceu. Muito doce, a fruta tem quase o mesmo sabor do damasco e textura semelhante à da manga.
“É bem comum que clientes em apuros me liguem de noite, na véspera de um jantar importante, e peçam algo para ontem. Eles esquecem que Belém está a uns 3 mil quilômetros daqui”, contou a negociante, já de volta a São Paulo. Pensando em emergências desse tipo, ela passou a cultivar algumas hortaliças e outras plantas da Amazônia numa horta doméstica.
Tão logo saíram do Maní naquela manhã de junho, Antônia e o marido se dirigiram para o D.O.M., do chef Alex Atala. Quando entraram na cozinha envidraçada do badalado restaurante, um dos cozinheiros os avistou e abandonou a panela de cobre no fogo. “Tem flor de jambu, Antônia?”, perguntou, um tanto afobado. Referia-se à erva do Pará que dispõe de propriedades anestésicas. “Tenho, só que bem poucas”, respondeu a dona do Poitara. “Você precisa para quando?” Não era para ontem, mas quase. “Para daqui a três dias. Sem falta, por favor!”, implorou o cozinheiro. A comerciante levou a mão à testa, franziu as sobrancelhas e, após um breve silêncio, o tranquilizou, como de praxe: “Pode deixar. Dou um jeito.”