ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Convescote do PIB
Os animados encontros promovidos pela Esfera entre empresários e figurões políticos
Ana Clara Costa | Edição 189, Junho 2022
Apreciador da boa cozinha e dono de uma das adegas mais estelares de São Paulo, o empresário João Carlos Camargo mantinha em sua casa no bairro do Morumbi uma confraria de vinhos. Os Petrus e os Pêra-Mancas eram bebericados em jantares deleitosos, que ele generosamente oferecia aos confrades. No ano passado, porém, Camargo decidiu que era hora de cobrar pelos rega-bofes. Criou a Esfera, empresa que promove encontros entre empresários e figurões do setor público, em geral na casa do empresário, que é sócio do grupo 89 Investimentos e dono das rádios 89 FM, Alpha e Nativa.
Os encontros funcionam assim: Camargo vai a Brasília e convida um político para dar uma palestra e conversar com empresários, banqueiros e investidores. Além dos bons vinhos (agora mais modestos que os Petrus) e do menu de três cursos, os convidados se regalam com o networking e a possibilidade de, quem sabe, circular um dia no gabinete do figurão da política.
A plateia reúne pagantes e convidados. Entre os primeiros há os associados (que pagam mais de 10 mil reais mensais) e os patrocinadores. Da turma dos associados participam o empresário Henrique Viana, da Brasil Paralelo, que produz vídeos revisionistas sobre a história do país, e Candido Pinheiro, da Hapvida, operadora de planos de saúde do Norte e Nordeste. Entre os patrocinadores, há empresas como a XP Investimentos e o Bradesco.
Cabe à mulher de Camargo, Ana (filha do ex-ministro Dilson Funaro e de Ana Maria Suplicy), a tarefa de garimpar sua agenda de contatos em busca do público feminino, para ampliar a diversidade dos encontros, dominados por homens brancos. À filha de Camargo, Camila, compete apresentar os palestrantes no início de cada evento.
Uma das primeiras mulheres convidadas, em março, foi a deputada federal Margarete Coelho (PP-PI). “Juntou um monte de mulheres e todas se sentiram muito representadas”, conta ela. Mas Coelho não estava lá apenas para integrar a cota feminina. Advogada e professora de direito constitucional, ela é o braço direito do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), em projetos de lei como o pacote anticrime, a PEC da Imunidade, o novo Código Eleitoral e a anistia a partidos que não cumpriram a cota para mulheres nas últimas eleições – todos aprovados nesta legislatura. Nas palavras de um dos associados presentes, “ela faz leis que empresário gosta”.
O evento em homenagem a Coelho foi prestigiado por Ciro Nogueira e pela deputada Flávia Arruda (PL-DF), ex-ministra da Secretaria de Governo. Na ocasião, Arruda não mediu as palavras ao descrever o ex-chefe: disse que Bolsonaro era “muito pior” do que a imprensa dizia e que toda vez que ele atendia alguém no gabinete o resultado era “problema na certa”. Para Arruda, o presidente transformou o Planalto em “uma zona”. Ela pediu exoneração em março para concorrer a uma vaga no Senado – ainda dentro da base de apoio de Bolsonaro.
A empresária Luiza Trajano, do Magazine Luiza, foi convidada mais de uma vez para palestrar. Ela confidenciou a pessoas próximas que temia se tratar de um encontro político, ligado ao governo. Convencida do contrário, compareceu acompanhada da amiga Sônia Hess, da marca Dudalina e vice-presidente do Mulheres do Brasil, grupo criado por Trajano.
Camargo veda qualquer manifestação político-partidária nos encontros, nos quais predominam simpatizantes de Bolsonaro, como Flávio Rocha, da Riachuelo, um frequentador assíduo. Em novembro, no evento em que João Doria (PSDB) foi a atração principal, Rocha aconselhou, em nome de alguns presentes, que o então governador de São Paulo deixasse de criticar o presidente. “Pare de falar do Bolsonaro porque é aí que ninguém vai votar em você mesmo, nem a gente”, vaticinou. Doria, hoje fora do pleito presidencial, não gostou da sugestão.
No coro dos simpatizantes do bolsonarismo também estão Eugênio Mattar, da Localiza, Edgard Corona, da Bio Ritmo, João Appolinário, da Polishop, Fernando Marques, da União Química – que se filiou ao PP do Distrito Federal para concorrer ao Senado –, e o empreiteiro Meyer Nigri, fundador da construtora Tecnisa, que contou a uma roda de pessoas ter sido ele quem sugeriu Augusto Aras para o cargo de procurador-geral da República, do qual contraiu, depois, a Covid que quase o matou em 2020.
Outros frequentadores, mas não abertamente bolsonaristas, são Rafael Furlanetti, sócio da XP, Claudio Lottenberg, do Hospital Albert Einstein, e Luiz Carlos Trabuco, presidente do conselho do Bradesco. Trabuco é casado com a empresária Lucilia Diniz, que foi convidada para ser a representante das mulheres no conselho da Esfera.
Com o favoritismo de Lula nas pesquisas, representantes da esquerda também entraram no cardápio da Esfera. Camargo resolveu chamar para o convescote todos os presidentes de partidos e chefes de equipes econômicas dos presidenciáveis (que serão convidados no segundo semestre). Da esquerda, já compareceram Marcelo Freixo (PSB-RJ), pré-candidato ao governo do Rio de Janeiro, Fernando Haddad (PT-SP), que concorrerá ao governo de São Paulo, Guilherme Boulos (Psol-SP), que tentará uma vaga na Câmara, e a deputada federal Gleisi Hoffmann, presidente do PT, que foi acompanhada do economista Gabriel Galípolo, conselheiro atual de Lula.
No campo da esquerda, a conversa que mais agradou aos membros da Esfera se deu com Boulos. “Foi divertida”, relatou um dos presentes. Ao ser indagado por que defendia a criação de estatais para cuidar da habitação popular e não aceitava que o setor privado cuidasse dessa questão, Boulos respondeu que os empresários deveriam ficar com o restante das oportunidades de mercado, mas deixar que ele cuidasse dos pobres. Boulos foi questionado se tinha preconceito contra privatizações e recebeu o convite para conhecer uma empresa privatizada. Deu o troco: disse que o empresariado tinha preconceito contra as ocupações dos sem-teto e convidou a turma da Esfera para visitar seus projetos em São Paulo. Embora a ideia tenha sido bem recebida, ainda não foi posta em prática. Ao final do encontro, Boulos ouviu de Flávio Rocha: “Gostei de você.”
Presidente do PL, o novo partido de Bolsonaro, e ex-aliado de Lula, Valdemar Costa Neto esteve em um dos encontros, em maio. Contou que seu partido dobrou de tamanho após a filiação do presidente e reclamou da falta de recursos para a eleição. Depois disse, sorrindo: “Mas sei que a reunião não é para isso”, referindo-se à arrecadação de moeda sonante para o caixa eleitoral. Costa Neto, que foi condenado e preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, lamentou que Bolsonaro não tivesse apontado uma mulher como vice de sua chapa, mas rapidamente recuou da crítica, afirmando que o escolhido, o general Walter Braga Netto, é “um cara especial” e um “homem puro”.
O dirigente do PL contou aos empresários que Braga Netto está preocupado com sua situação financeira, agora que teve que ser exonerado como ministro da Defesa para concorrer na chapa presidencial. A remuneração do militar se resume à aposentadoria vitalícia como general, no valor de 32,7 mil reais, mais o salário de assessor presidencial, de 17 mil reais, que ele poderá manter até julho, quando será obrigado a deixar o governo em definitivo – ficará, então, somente com a aposentadoria. “Ele não tem um tostão”, disparou Costa Neto. “Ele me disse: ‘Valdemar, quando eu sair do governo, não tenho mais salário e tenho problema até de casa’”, contou o cacique do PL antes de explicar aos presentes que o partido o ajudaria. “Depois da eleição a gente vê isso aí.” Ato contínuo, Costa Neto engrenou outra análise, desta vez sobre os pobres de verdade: “Quem vota no Lula são os mais humildes”, “o povão não é ligado em notícia, só vê novela”, “a empregada doméstica não conhece o Tarcísio”.
O carioca Tarcísio de Freitas, ex-ministro da Infraestrutura, se filiou ao Republicanos para concorrer ao governo de São Paulo. Quando foi a um jantar na Esfera, em fevereiro, citou a Bíblia e depois disse: “Às vezes a solução vem de forma feia, mas é a solução da iniciativa privada.” A plateia aplaudiu.
Embora Camargo sempre tente controlar o tom dos encontros, momentos de tensão e constrangimento de vez em quando acontecem. O presidente do PSDB, Bruno Araújo, reclamou com Camargo quando uma conversa sua a portas fechadas vazou na imprensa. Tabata Amaral (PSB-SP) também chiou quando viu suas críticas ao PT na coluna de Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, que cobria o encontro. A deputada havia sido informada de que não haveria jornalistas no local. O ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, destratou na frente de todos o presidente do grupo francês LVMH para a América Latina, Davide Marcovitch, que pediu para participar da celebração dos trinta anos da Eco-92. O evento estava sendo organizado na surdina pelo governo para não chamar a atenção dos antiambientalistas que apoiam Bolsonaro. “São só cem lugares”, disse o ministro, encerrando o diálogo com o representante no Brasil de um dos grupos econômicos mais poderosos do mundo.
Filho do ex-deputado José Camargo, João Carlos Camargo começou na política aos 23 anos, como assessor de Jânio Quadros na Prefeitura de São Paulo. Depois, foi secretário particular de Zélia Cardoso de Mello no Ministério da Fazenda. Quando as entranhas do governo Collor vieram a público na CPI que investigou o esquema PC Farias, soube-se que as despesas da ex-ministra eram pagas com dinheiro de origem desconhecida. Quem recebia os valores em sua conta-corrente e fazia os pagamentos era Camargo.
Depois do escândalo, o empresário se distanciou da vida pública. Continuou, porém, atuando nos bastidores. Em 2018, participou dos encontros do Brasil 200, movimento liderado por Flávio Rocha. Em 2020, ofereceu um jantar para Luciano Huck no qual o apresentador se disse “pronto” a disputar o Planalto. Em abril do ano passado, no auge da pandemia, Camargo ajudou a organizar um jantar em apoio a Bolsonaro na casa do empresário e ex-policial militar Wash-ington Cinel, presidente do grupo Gocil, que tem empresas que vão do agronegócio à segurança privada.
Camargo não deu entrevista à piauí. Ao site bolsonarista Revista Oeste, em fevereiro, ele fez um diagnóstico otimista sobre o Brasil: “Não há tensão entre um Lula e um Bolsonaro. O pessoal do mercado sabe o que Lula mais ou menos vai fazer, e o que Bolsonaro vai fazer. O próprio investidor estrangeiro está colocando o dinheiro aqui porque ele crê que não vai ter terceira via, não vai ter surpresa, vai continuar isso aqui e assim tá bom, tá ótimo.”