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Copia + imita + plagia = roupa nova
A equação de alguns estilistas brasileiros para criar o que se vê nas passarelas
Daniela Pinheiro | Edição 9, Junho 2007
Paris, outubro de 2005. No desfile da grife Chloé, uma modelo de cabelos escuros percorre a passarela num vestido mostarda de mangas compridas, na altura do joelho, com dois enormes bolsos laterais, três pares de botões na altura do peito e uma espécie de lapela branca que cruza o pescoço.
Rio de Janeiro, janeiro de 2006. No desfile da grife Layana Thomaz, uma modelo de cabelos escuros percorre a passarela num vestido caramelo de mangas compridas, na altura do joelho, com dois enormes bolsos laterais, três pares de botões na altura do peito e uma espécie de lapela branca que cruza o pescoço.
As duas peças – separadas no espaço pelo Atlântico e no tempo por três meses – são idênticas. A primeira foi desenhada pela estilista inglesa Phoebe Philo, que rejuvenesceu a Chloé e a transformou em uma das marcas preferidas das jovens ricas e globalizadas. Em entrevistas, ela afirmou ter se inspirado nos anos 60 para criar a silhueta de uma “old lady chic“.
O segundo vestido foi feito pela estilista carioca Layana Thomaz, de 30 anos, ex-modelo, há três anos com a própria grife no mercado, uma moça de pele alvíssima, cabelo fino, pequenas sardas e olhos azuis.
O ateliê de Layana fica num sobrado, numa rua cheia de árvores do Jardim Botânico, no Rio. Numa tarde do mês passado, havia livros dos arquitetos Mies Van der Rohe, Frank Lloyd Wright e Paulo Mendes da Rocha em cima da mesa. “São pesquisas para a minha próxima coleção”, explicou a estilista, que, sem um pingo de maquiagem, usava calça capri branca, camiseta listrada de azul e tênis All Star branco (os entendidos diriam: look navy desconstruído pós-Brigitte Bardot em Saint-Tropez).
Depois de discutir a modelagem de uma saia plissada com uma de suas costureiras, ela teorizou a respeito da coincidência entre o seu vestido e o da Chloé. “Existe uma coisa que é o inconsciente coletivo na moda”, começou. “É normal que muitos estilistas estejam na mesma onda. Então, às vezes, você abre uma revista e dá de cara com um modelo igualzinho ao que você tinha começado a rabiscar. Você fala: ‘Meu Deus, o que é isso?'”. Tomou fôlego e chegou ao nitty-gritty: “Foi uma coincidência, uma coincidência ruim. Na verdade, eu me inspirei em um modelo de uma revista alemã careta, a Burda, muito conhecida nos anos 60. Uma amiga tem a coleção e me emprestou. Então, provavelmente, a Chloé viu o mesmo modelo. Eu não copiei. Aliás, se copiei, não foi da Chloé, foi da Burda“, disse. Pedi para ver a revista, mas, lamentando muito, Layana disse que a devolvera à amiga.
Silvio Chadad, consultor de marketing de moda, não tem dúvidas. Ele acha que, no mundo da moda, a cópia (ou falsificação, contrafação, reprodução, plágio, imitação descarada) dificilmente é uma casualidade. É uma prática consciente, disseminada e inimputável. “Copia-se igualzinho, muda-se um bolso ou coloca-se uma costura aparente e pronto: a peça já é diferente. Não tem como alguém vir e dizer que você imitou uma roupa que já existia”, explicou ele, durante um café em sua casa.
A cópia não é privilégio brasileiro. Só no mês passado, dois casos se tornaram públicos: o da modelo inglesa Kate Moss, que embolsou 6 milhões de dólares para criar uma coleção de roupas inéditas para uma loja de departamentos, mas apenas imitou peças de seu próprio guarda-roupa; e o do estilista John Galliano, que foi condenado a pagar uma multa de 400 mil dólares por danos morais e patrimoniais ao fotógrafo William Klein, por ter copiado seu estilo na última campanha da Dior. O caso mais conhecido no exterior ocorreu há cinco anos, quando o estilista Nicolas Ghesquière, da Balenciaga, foi acusado de ter plagiado uma veste de Kaisik Wong, famoso em rodas restritas da Califórnia dos anos 70. Para a revista do New York Times, o copiador admitiu: “Yes, I did it“.
Na Europa e nos Estados Unidos, os casos de plágio são minuciosamente analisados pela imprensa especializada, e os grandes jornais e revistas lhes dão destaque – como ocorreu com Kate Moss, Galliano e Ghesquière. No Brasil, as imitações são comentadas nos corredores e acobertadas do público.
Com uma dezena de vasos de orquídeas, e uma mesa de dez metros de comprimento, a sala do apartamento de Gloria Kalil ficaria bem na capa de uma revista de decoração. Especializada em moda, Glorinha, como é conhecida, criou e pilota o site Chic, onde publica críticas de desfiles, conselhos de como se vestir e indicações de livros para quem quer se enfronhar no assunto. Ela se acomodou numa cadeira baixa e antiga e disse: “Hoje não existe mais cópia deslavada, mas, como diz mesmo madame Rucki, do Studio Berçot [escola de estilismo parisiense], a última invenção da moda foi a minissaia. Então, é difícil inventar a roda. Por isso, acho que uma cópia não acaba com um estilista. É como futebol. Se Romário foi mal em um jogo, não quer dizer que ele seja um mau jogador”.
Reclamando do calor, Glorinha, que também dá dicas de etiqueta no Fantástico, prosseguiu: “A moda e a crítica de moda são coisas muito recentes no Brasil. Então, ainda está todo mundo se organizando, criando uma linguagem, uma compreensão, uma cultura”, disse. A respeito do silêncio sobre as cópias, ela foi efusiva: “Não há silêncio. Então você não lê as minhas críticas nem as da Erika Palomino”, disse, levemente irritada. “Na moda, há maneiras e maneiras de dar o seu recado. Não precisa ser explícito nem sem-educação. Eu digo que a coleção é até bonita, mas segue os passos da anterior ou que a coleção ‘X’ ‘tem um perfume’ de Prada, por exemplo”, disse, retomando o tom de voz adocicado.
Na década de 1980, as cópias nacionais eram tão escancaradas que a Kenzo proibia a entrada de brasileiros em seus desfiles internacionais. Como não havia internet, alguns estilistas do Rio e São Paulo fotografavam os modelos de todas as maneiras (frente, lado, costas, de baixo para cima, de cima para baixo) para copiá-los e vendê-los como novidades em suas lojas. No livro O Brasil na Moda, um calhamaço em dois volumes, há inúmeros relatos sobre a prática. “Nossos conterrâneos tinham fama de copiadores entre os designers internacionais – e não se pode dizer que eles estavam errados”, lê-se, na página 885. “Qualquer um que falasse português era visto com desconfiança na fila dos grandes eventos de moda”, escreveu um dos autores, o empresário Paulo Borges, o homem que inventou (e enriqueceu com) a São Paulo Fashion Week, o maior evento de moda da América Latina.
Ainda não eram 8 da manhã, quando ele abriu a porta de seu escritório, em São Paulo. Vestia uma camiseta cinza e tinha um casaco de malha com estampinhas de girafas jogado sobre os ombros (no vocabulário da turma: look incrível de inverno, com o toque infantil que os fashionistas adoram). Há onze anos, sua idéia de enquadrar as coleções em um calendário organizado foi tida como o primeiro passo para profissionalizar o mercado nacional. “Até então, os estilistas faziam o que queriam. Faziam coleção de inverno, mas não de verão. Era uma época muito desorganizada, tipo terra sem lei”, disse Borges, com os cotovelos apoiados numa mesa oval. Ele mandou uma assistente trazer a coleção de revistas de moda editadas pela sua empresa. São produções caríssimas, recheadas de anúncios. “O que tem de cópia, cópia mesmo, é muito pouco. O que existe são inspirações fortes e tendências com as quais o mundo globalizado está em sintonia”, afirmou, enquanto folheava um dos exemplares.
A São Paulo Fashion Week é uma máquina de fazer dinheiro. Calcula-se que cada semana de moda (são duas ao ano, uma em janeiro e outra em junho) custe 6 milhões de reais. A cada dia, pelo menos 15 mil pessoas circulam pelos desfiles. A prefeitura de São Paulo fez a conta de que o evento traz 75 milhões de reais aos cofres da cidade. No ano passado, só os estandes de setenta grifes ligadas à Semana movimentaram 1 bilhão de reais. Para cobrir as despesas de um desfile, o estilista tem que desembolsar, no mínimo, 150 mil reais.
O mercado da alta moda lida com cifras cada vez mais respeitáveis. Numa coleção padrão, um estilista mostra cerca de vinte roupas de luxo. Um vestido comprido de cetim de seda pura, por exemplo, só de tecido e mão-de-obra (modelista, pilotista, costureira, cortador), começa por 700 reais. Contabilizados os gastos com a estrutura do negócio (aluguel, salário de funcionários), o valor sobe para quase mil reais. Para se ter lucro, uma peça dessas tem que ser vendida por 1 800 reais, no mínimo. Ainda assim, os números estão longe dos internacionais. O Brasil é o sétimo produtor mundial de confecção, e é mais conhecido pela quantidade do que pela qualidade do que produz. As confecções brasileiras faturaram 20 bilhões de dólares em 2005, mas a participação nacional no comércio mundial de vestuário é de pífio 0,3%.
Paris, janeiro de 2007. Na passarela da grife Junya Watanabe, um modelo desfila um blazer bicolor preto e vermelho, de três botões, com duas listras brancas atravessando o peito.
Rio de Janeiro, dezessete dias depois. Na passarela da grife Reserva, um modelo desfila um blazer bicolor preto e vermelho, de três botões, com duas listras brancas atravessando o peito.
“Eu peguei as imagens de uma coleção da Adidas dos anos 60 mostrada no site wgsn. Ali, falava-se que a tendência era essa coisa retrô, da volta ao passado. Peguei a imagem muito antes de vê-la no desfile do Watanabe”, contou o engenheiro Rony Weisler, 26 anos, dono e estilista da Reserva. O site wgsn, que é pago, identifica tendências de moda, e tem como clientes a maioria das grifes internacionais.
Weisler tomava café num bar carioca decorado com flores e tons pastéis em uma manhã do mês passado. Usava uma camiseta pólo azul, de sua própria grife, calça jeans e óculos Dolce & Gabbana (look american style típico, palpitaria um veterano do ramo). “Acho bobagem quem diz que não se baseia no trabalho dos outros”, afirmou. Antes de mexer o café que esfriava, emendou: “Tudo na moda é referência. Todos os estilistas bebem da mesma fonte. Hoje, todo mundo se olha no mercado. Eu vou a Nova York e trago duas malas de roupas. Se uma calça que comprei tem um caimento perfeito, por que não copiar essa modelagem?”, perguntou. Mandei um e-mail a Weisler pedindo, se possível, a imagem captada no site. Não tive resposta.
Em 2004, o estilista paulistano Jum Nakao arrancou “ooohs”, gritinhos, aplausos e caras feias da platéia de seu desfile na São Paulo Fashion Week. Modelos de colantes pretos, perucas de acetato imitando a cabeça de um boneco Playmobil, desfilaram rendas, franjas e babados. Tudo de papel. Na passagem final, elas rasgaram tudo. Foi o que Nakao definiu como “catarse” e “despedida”. Desde então, afastou-se das passarelas. “Falta conteúdo à moda brasileira. Ela está longe de ser profissional. Então, me cansei”, disse. Desde então, passou a se dedicar às artes plásticas, à vida acadêmica e a dar consultoria para grifes pouco conhecidas.
Num jantar em São Paulo, no qual comeu risoto trufado, Nakao disse: “A imprensa de moda no Brasil é uma bobagem. A descrição de um desfile é feita como se a pessoa estivesse falando com uma amiguinha. Os jornalistas de moda não são diretos, conhecem pouco o métier. Falam bem dos amigos e mal de quem não gostam. O que sai na mídia costuma ser superficial e bobo”.
Aos 40 anos, 23 dedicados à moda, Nakao vestia uma calça jeans larga, com barra dobrada, um tênis amarelo e preto chamativo, parecendo uma bota, e uma camisa preta surrada (seria um look Harajuku cruza a avenida Paulista?). Ele tem o cabelo bem curto e um cavanhaque estiloso. Revirou o arroz no prato, largou os talheres de lado para melhor se concentrar no discurso: “Esse tipo de postura gera falsas referências, gera um falso manual de conduta, isso acaba com o país. Como essas críticas costumam ser uma das poucas coisas que o público lê sobre moda, a moda acaba parecendo boba mesmo. Boba, fútil e superficial”.
Ele elogia a comida e faz um paralelo da moda com a gastronomia. “O jabá no Brasil é disseminado. Como acreditar em quem está falando bem ou mal? Se um crítico de restaurante come de graça aqui e escreve uma resenha do restaurante amanhã, dá para acreditar no que ele está dizendo? Há um site que se chama A diaba veste Fause, que mostra como a Erika Palomino copia os sites estrangeiros. Se ela faz isso no próprio site.”, disse reflexivo, referindo-se à jornalista especializada em moda. E emendou: “Se fosse um país sério, óbvio que a cópia seria um escândalo. Mas o que acontece na política se repete com menor visibilidade no mundo da moda: é a impunidade, a cara de pau, a sensação de que se pode fazer tudo e tudo continuar como se nada tivesse acontecido”.
Uma das explicações para que a cópia seja tratada com condescendência passa pelas expectativas que a consumidora tem em relação às roupas. “A mulher que compra um vestido copiado na loja nem sabe que se trata de uma imitação. E se souber, ela pouco se importa”, explicou a estilista Karina Sterenberg, dona da grife carioca Ka, enquanto almoçava frutos do mar em um restaurante à beira-mar, no Rio. “A compradora quer saber se o vestido ficou bonito, se a fez parecer magra e se o preço é bom.”
Bronzeada e de cabelos compridos, Karina usava macaquinho verde, colar comprido, brincos de argola, sandália rasteira e uma enorme bolsa (look carioca bem nascida vai às compras, palpitaria um expert). Desde que abriu seu negócio, há três anos, ela se recusa a participar das semanas de moda. “Desfile no Brasil não serve para nada, e semana de moda, muito menos”, opina. “A passarela que vale no Brasil é a novela. É a Juliana Paes usando uma camiseta no sambódromo. É a Glória Maria com um vestido no Fantástico. É essa peça que vai aparecer para o consumidor, que vai vender, que vai fazer você existir como estilista. Porque se você cria e não vende nada, você não existe, certo?”
Paris, setembro de 2005. Na passarela da grife Prada, uma modelo desfila um minivestido preto, com pespontos brancos que delineiam o corpete e a saia.
Rio de Janeiro, janeiro de 2006. Na passarela da grife Cavendish, uma modelo desfila um minivestido preto, com pespontos brancos que delineiam o corpete e a saia.
“Olhei demais para a coleção da Prada. Acabei me influenciando muito. Eu já tinha feito seis desfiles antes, e nunca tinha acontecido isso. Eu nem pensei em nada, se ia ficar igual ou não, simplesmente fiz. As críticas me ajudaram a perceber que talvez eu tenha ido longe demais. Acho que errei mesmo”, disse, num longo telefonema, a estilista e proprietária da marca, Carla Cavendish.
No site Chic, Gloria Kalil escreveu que a “Cavendish passou para um inverno bem urbano onde o branco, o preto, o vinho e a Prada deram o tom. Carla Cavendish não vai ter muita dificuldade em vender esta coleção, mas fica devendo uma moda mais original e com idéias próprias”.
Já Erika Palomino descreveu o desfile assim: “Música arrastada, preguiça fashion. Até as modelos pareciam entediadas. Chique, a Cavendish sugere calças palazzo de tweed, muitos vestidos (usados, para fechar o look, com blusas pretas de manga comprida). Bem, os mais curtos são melhores, as camisolonas à la Prada são meio chatas. Tamara entrou com um vestido branco de renda com flores, tipo Chloé, bem bonito”.
Um dos hábitos de estilistas brasileiros que viajam ao exterior em busca de inspiração é visitar brechós e revistarias antigas. Nessas lojas, compram o que chamam de “documentos” – roupas e revistas velhas que servirão de base para os seus figurinos. Na família Coelho Lourenço – o triunvirato mais badalado da moda brasileira – o pai (Reinaldo), a mãe (Glória) e o filho (Pedro) costumam disputar quem chega primeiro ao mercado das pulgas da Porte de Clignancourt, ou no Aurelio Antiquaires, da rue de L’Échaudé, em Paris, para comprar as melhores peças.
Era hora do intervalo no seminário Fashion Marketing, em abril passado. Cerca de 700 pessoas pagaram 1 300 reais cada para assistir a dois dias de palestras de bambambãs da moda, com direito a almoço em bufê. A herdeira do grupo Missoni, a jovem Margherita, de 24 anos, havia acabado de falar para o público. Nas rodinhas que se formavam (tanto na de mulheres de bermuda e botinhas na altura do tornozelo como nas de calça skinny com sapatilha baixa, cafezinho na mão direita e bom-bocado na esquerda) o assunto era o mesmo: Margherita tinha viajado na maionese.
“Nossa, Margherita viajou muito. Sei lá, falar que a gente não tem que se preocupar com o mercado.”, comentou Pedro Lourenço, sem completar o raciocínio, do alto dos seus 16 anos, mas com a experiência de quem, aos 12, apresentou uma coleção própria na São Paulo Fashion Week. Pedro Lourenço estava de óculos escuros, camiseta branca, casaquinho cinza, calça preta e uma bolsa preta de alça atravessada no peito (look meio preppy dark, meio rock romântico, arriscaria um crítico).
Falou-se sobre cópias. “Ninguém vai nos brechós copiar uma roupa. As pessoas vão fazer pesquisa. Sex shops, por exemplo, são ótimas fontes de pesquisa. Ali, dá para tirar a idéia de uma pulseira incrível, ou de uma calça de vinil bárbara”, disse, com um ombro encostado na parede. Há dois anos, os pais decidiram que Pedro deveria se concentrar mais nos estudos, passar por uma formação fora, antes de voltar ao mercado. “Não vou dizer o nome dos brechós, me desculpe. É segredo de família”, disse, tímido.
Em 2005, o estilista Ocimar Versolato, o brasileiro que dirigiu a Lanvin, lançou um livro de memórias, apesar de estar com apenas 44 anos. Ali, ele descreve um episódio, ocorrido num provador da Comme des Garçons, em Paris. Um casal de estilistas, que ele chama de Graça e Rinaldo, teria sido flagrado fotografando modelos da loja. Eles teriam sido detidos no provador até a chegada da polícia. Segundo o autor, até a embaixada brasileira foi acionada para resolver o caso. À época do lançamento do livro, foi unânime o entendimento de que os protagonistas da história seriam Glória Coelho e Reinaldo Lourenço.
“Todo mundo já sabia dessa história”, disse Versolato. “Não quis expor ninguém, só acho que é preciso deixar claro que isso não vaza porque existe um compadrio, uma amizadezinha, uma coisinha de que um ajuda o outro, entre empresários, estilistas, críticos e jornalistas de moda. Enquanto isso perdurar, o Brasil nunca vai ser profissional, nunca vai ser reconhecido nem levado a sério nessa área.”
Ele estava ocupado com a confecção do vestido de casamento da modelo Fernanda Tavares com o ator Murilo Rosa. Sobre a questão geral da cópia, ele disse: “A cópia sempre existiu e existirá. Na França, há a cópia oficial. Uma vez, uma senhora dona de uma confecção foi ao meu ateliê. Virou e disse na cara dura: ‘Vou copiar dois vestidos seus, quero que você me fale quanto você quer. Já estou aqui com meu advogado e me poupa o trabalho de você me processar e eu ter que me defender’. Ela fez o cheque, era uma soma muito boa. Liguei nas outras maisons para apurar, e eles disseram que era normal, que eu podia fazer. A diferença é que essa mulher vai vender meu vestido copiado por um preço baratíssimo. O problema é quem faz a mesma coisa e vende com o valor de criação, coloca um preço como se tivesse criado a roupa mais original do mundo”.
“Essa história nunca aconteceu, obviamente”, disse Reinaldo Lourenço sobre o episódio do vestiário. “Vai ter o Ocimar nessa matéria? Mas ele não é mais nada, ninguém mais tem nem o telefone dele, ninguém leu esse livro. Coitado, isso é até ruim para ele”, aconselhou. Reinaldo abriu as portas de seu amplo escritório, todo branco, lotado de ‘documentos’, araras de roupas de brechó e um grande espelho. Há vinte anos com marca própria, Reinaldo Lourenço já foi apontado como “uma das grandes promessas da nova geração de estilistas” pela Paper Magazine, publicação do underground nova-iorquino nos anos 90. Vestia calça capri preta com o cofrinho aparecendo, camiseta com decote em V da mesma cor, cinto vermelho, tênis branco e uma meia fina também branca (look ‘oi, prazer, sou estilista’). Sua pele tem um brilho de fazer inveja às mulheres e suas sobrancelhas são bem arqueadas, o que lhe confere um ar de ponto de interrogação. O cabelo é cortado bem rente ao lado da cabeça, como o de militares americanos dos anos 50.
“Quando a pessoa está no começo de carreira, é até normal ela copiar. Você ainda não tem uma personalidade definida, ainda está seguindo alguém, sabe como é?”, disse. Enquanto conversava, Reinaldo Lourenço rabiscava uma folha de papel. Desenhava quadradinhos, corações e losangos. Chamou a secretária e pediu para que trouxesse um vestido rosado, comprado em brechó. “Tá vendo essa barra aqui? [e mostra uma costura em matelassê] Eu usei isso em uma coleção minha. Isso é cópia? Isso é inspiração, é de onde você tira um detalhe”, disse.
Sua assessora entrou para servir água. Perguntei se ele acreditava que a cópia fazia parte do processo criativo. “Totalmente”, respondeu. E seguiu com sua explicação: “Eu tenho um blazer Yves Saint Laurent que já dissequei um monte de vezes. Você descostura o blazer todo, para entender como o criador fez aquilo. É que nem estudante de medicina dissecando cadáver, para aprender sobre o corpo humano. Se eu faço aquela costura igual, estou copiando? Cópia é a coisa burra. É mandar uma foto de revista para uma confecção fazer igual, como eu já vi acontecer. Isso é cópia. E quem faz isso não pode ser chamado de estilista”, afirmou.
Milão, fevereiro de 2006. Na passarela da grife Prada, uma modelo desfila uma parka balonê com zíper e cintura marcada por um cinto.
São Paulo, fevereiro de 2007. Na passarela da grife Ellus, uma modelo desfila uma parka balonê com zíper e cintura marcada por um cinto.
Depois de alguns dias de silêncio, Adriana Bozon, diretora de criação da Ellus, enviou-me o seguinte e-mail: “Hoje não se pode mais falar em cópia. Todas as marcas, nacionais ou internacionais, têm acesso à informação, aos birôs de pesquisa de tendências, à internet. As pessoas captam o espírito do tempo, o zeitgeist. A diferença é que lá fora as coleções são lançadas com um ano de antecedência nas passarelas e aqui adiantamos apenas seis meses. Recentemente, o desfile da coleção Summer 07 do estilista belga Dries Van Noten mostrou uma cenografia, feita com flores, bem parecida com a nossa do Inverno 2005 (feito em janeiro de 2004) e, de maneira alguma, consideramos isso cópia. A inspiração é livre”.
O inglês Colin McDowell, um senhor rosado e de barba branca, é editor de moda da revista do Sunday Times e autor de dezesseis livros sobre moda, inclusive das biografias de Galliano, Manolo Blahnik, Jean-Paul Gaultier e Ralph Lauren. Ele veio ao Brasil a convite do seminário de moda, ficou hospedado no hotel mais caro de São Paulo, motorista à disposição. Todos os anos, ele acompanha as semanas de moda do Rio e de São Paulo. Vestido com um blazer azul, calça creme, camisa listrada e mocassim marrom (look vou-tomar-um-chá-com-os-amigos-depois-da-caça-à-raposa), refestelado numa poltrona de couro do hall do hotel, ele disse: “A freqüência das cópias no Brasil não é diferente do resto do mundo. Todo mundo olha para o trabalho de todo mundo e isso não significa cópia. Veja Rembrandt, Picasso. A melhor maneira de aprender é copiar. A partir da cópia, pode-se chegar a uma identidade própria. Quantos são Miuccia Prada, John Galliano ou Rei Kawakubo, que são realmente originais? Copying é ‘looking at’. Ser criativo também é interpretar a idéia do outro”. McDowell se despediu e seguiu para um almoço na Daslu.
A imitação na moda vem sendo debatida desde, pelo menos, o século XIX. O filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) notou que moda se dá a partir das forças de imitação e distinção. A classe inferior imitaria o jeito de se vestir e os modos dos ricos, como uma estratégia de se igualar a eles. Os ricos, por sua vez, seriam levados a buscar o único, o exclusivo, como forma de se distanciar dos pobres. Seria esse processo de imitação e diferenciação o que faria rodar o mercado da moda. Em Les lois de l’imitation, de 1890, um dos fundadores da psicologia social, o sociólogo francês Gabriel Tarde, já sublinhava o interesse dos consumidores pelas novidades vindas do estrangeiro.
A imitação, é claro, não diz respeito só à moda. “Nos últimos 500 anos, com poucas exceções, só fizemos copiar o que vem de fora. Faz parte da nossa cultura. E, nesse processo de adaptação dos modelos europeus e americanos, fizemos coisas originais, como romantismo literário, com José de Alencar e Gonçalves Dias”, explica a ensaísta Walnice Nogueira Galvão, professora da Universidade de São Paulo. “Fico pensando nos coitados dos chineses que, depois de 8 mil anos, vão ter que aprender agora que copiar é errado. Na literatura, na arte, a produção chinesa é toda uma cópia do que já foi feito no passado. Quem vai ousar dizer que é uma arte menor? Essa idéia de que a cópia é algo errado é própria do capitalismo, da idéia de propriedade privada. Até a introdução da sociedade burguesa não havia isso. O valor da cópia era inestimável. Quanto mais bem copiado, mais valorizado.”
Duas semanas depois de nosso primeiro encontro, voltei a ver Reinaldo Lourenço em seu ateliê. A idéia era que ele mostrasse como se finaliza a criação de uma roupa. Ele usava a mesma calça e camiseta pretas, só que com um colete preto, e meia, em vez de branca, também preta. A modelo Fernanda, uma morena de 56 quilos, 1,80 metro de altura, estava na frente de um espelho, vestida com uma entretela cheia de alfinetes. Lourenço, de sua mesa, rabiscava o desenho do modelo e dava instruções para três ajudantes – uma modelista e duas assistentes. “A gente pode pôr cristal Swarowski aqui e fazer tudo plissado. sabe aquele plissado da bolsa? Da bolsa acordeon, que eu trouxe de Paris?”, perguntou. As assistentes fizeram sugestões. Ele prosseguiu: “Olha, aqui eu nem faria corselete. Pode ficar muito duro com aquele material. Pega aquele outro do top antigo, aquele que a gente tinha separado”. Seu celular tocou pela segunda vez. Eram amigos interessados em saber a hora do velório da atriz Nair Bello, de quem era amigo da família. “Não, não, corpo libera rápido”, argumentou ao telefone.
As assistentes ajeitaram o tecido no corpo da modelo. Ela se mantinha imóvel em frente ao espelho. Depois, virou-se de lado, de costas. Ele se dirigiu à modelista: “Vai ficar fofo, hein Creuza? A gente até podia fazer isso no vestido todo”, sugeriu com outra amostra de plissado em mãos. A modelo tirou o tecido do corpo e ficou só de calcinha vermelha em frente ao espelho. Ninguém deu bola. Um tempo depois, Lourenço tinha em mãos um papel com um arabesco e foi atrás da modelo. “Vamos colocar isso no peito. Cadê o peito? Vem cá, peito”, ele chamou. A garota apareceu. Ele colocou o papel sobre o torso nu. “É assim que a gente faz: vamos testando, experimentando, colando nossas referências”, disse.
A paleta de cores da próxima coleção tem tons de rosa, vermelho e marrom. O estilista pegou um cabide com um vestido já pronto para mostrar a diferença entre a simplicidade da roupa que vai para o comércio da que é desfilada na passarela. Um vestido curto costurado com as três cores, como um quadro de Mondrian, e duas alças grossas, como as das desfiladas pela Prada recentemente, deve chegar às lojas pelo preço de 700 reais. “Não é alça Prada. Alça só tem dois tipos: grossa e fina. Se for grossa é Prada?”, disse. O celular tocou de novo. Mais um conhecido querendo saber o horário e local do velório de Nair Bello.
Subimos até o acervo de roupas de brechó. Ali, há centenas de peças, garimpadas na rua e em lojas que já fecharam, penduradas em araras. “Esse blazer é de 1900, auge da belle époque. Você pega isso, desmonta, aprende, reinterpreta isso na sua roupa. Olha, que coisa! [e tira o cabide com um vestido Dener, dos anos 60]. Isso é história da moda”, falou, animado. Uma roupa parece nascer da combinação de algo visto em sites especializados de tendências ou em feiras internacionais de tecidos, com o toque pessoal do estilista.
Um dos poucos departamentos da moda nacional em que a regra da cópia funciona ao contrário é o das roupas de praia. Nos últimos anos, grifes estrangeiras como a Louis Vuitton e a Gucci readaptaram suas peças, aproximando-as dos modelos brasileiros. Basta contemplar uma praia européia para constatar que ninguém pode ficar bem naquelas calcinhas de biquíni feitas em tecido fino, folgadas, sem forro, grandes e disformes. O segredo do produto brasileiro está na modelagem mais cavada, no tecido mais firme e na estamparia dos biquínis, que evitam imagens estereotipadas de papagaios e coqueiros.
O empresário Amir Slama, da grife Rosa Chá, não desfila mais no Brasil. Há quatro anos apresenta seus modelos de maiôs, biquínis, saídas de banho, vestidinhos só nas passarelas de Nova York. Com franquias em Lisboa e Miami, a grife está de olho no público estrangeiro. Na sua fábrica, um galpão no bairro paulistano do Bom Retiro, muitas funcionárias acima do peso, com pedaços de lycra na mão, contrastavam com a magreza das modelos que faziam provas de maiôs para a próxima coleção. Barba por fazer, camisa cinza, calça jeans (look ‘sou antilook’), ele fumou três cigarros acesos com fósforos de uma loja de Palm Beach. “Quem quer crescer, tem que pensar em ser global. Não adianta querer vestir só as brasileiras. Quem fica pequeno tende a desaparecer”, contou.
Há um ano, Slama vendeu 75% da Rosa Chá para um conglomerado. “A moda praia é onde temos tradição. É sobre o que podemos falar de cadeira. Assim, é natural que os estrangeiros nos copiem.” Ele se levantou para atender um consultor na porta. “Não é falar de mistura cultural e racial, do balanço de quadril da brasileira. Se não tivéssemos buscado tecnologia e profissionalização, não estaríamos sendo copiados”, emendou.
Autor do livro Universo da Moda, o sociólogo Dario Caldas credita o sucesso da moda praia brasileira no exterior ao fato de ser um dos produtos mais “verdadeiros” produzidos pelos estilistas. “Temos cultura da praia. Isso faz parte do nosso cotidiano. Até pela necessidade e demanda desse tipo de produto, aprendemos a fazê-lo bem. O desafio é como conseguir transmitir essa brasilidade nas roupas sem cair nos estereótipos ou tentar seguir algo que já existe fora. A brasilidade, esse quê exótico, é isso que atrai os estrangeiros. O problema é que a preocupação primordial da moda brasileira hoje é ser reconhecida lá fora”, explicou.
Paris, outubro de 2006. Na passarela da grife Stella McCartney, uma modelo desfila um vestido-túnica com mangas bufantes, estampado com figuras geométricas.
São Paulo, janeiro de 2007. Na passarela da grife Juliana Jabour, uma modelo desfila um vestido-túnica com mangas bufantes, estampado com figuras geométricas.
Dez telefonemas e três e-mails depois, inclusive um que colocava lado a lado imagens das duas peças, a resposta: “A Ju não vai falar porque está muito ocupada com a Fashion Rio”. No dia seguinte, outra mensagem: “A Juliana não se pronunciará sobre o seu e-mail”.
Num início de noite do mês passado, Gloria Coelho usava uma blusa colada, saia rodada na altura do joelho, sapato sem salto de bico pontudo forrado de tweed, um casaquinho amarrado de maneira atravessada no tórax, tudo preto (look ‘meio trabalho, meio Mad Max’, na sua própria definição). Pergunto por que a cópia no Brasil não é um escândalo. “Não seja colonizada!”, ela respondeu. “A cópia é normal no mundo inteiro. Ah, isso não acaba nunca. Brasileiro sempre falando mal de brasileiro. É por isso que esse país não vai pra frente. Pega o Picasso, pega o Léger. Essas pessoas tiveram o trabalho de outros para basear suas obras. Isso é cópia? Tudo o que você enxerga pode ser seu. Se você reinterpreta, é seu”, explicou.