Existe algo de shakesperiano na vastidão da abordagem que Tom Waits faz da vida moderna FOTO: SCOTT GRIES_GETTY IMAGES
Coração aos pedaços
As ruínas rascantes da voz de Tom Waits nos levam aos recantos mais escondidos da psique americana
Simon Schama | Edição 5, Fevereiro 2007
Vou em frente. Chega de perder tempo com gente como Prokofiev ou Trollope. Os artistas com quem passo meu tempo são os que expandiram os limites da sua arte com coragem e inventividade, que transformaram a sua obra em algo imprevisto. Tão imprevisto que, encantado de espanto, você só consegue coçar a cabeça e dizer: “Bom, é, claro”, como se aquilo que inventam fosse a coisa mais natural do mundo. É por isso que gosto do que Thomas Carlyle fez com a literatura histórica, do que Jackson Pollock fez com a pintura, do que Wallace Stevens fez com a poesia. Não é absurdo incluir na companhia deles Tom Waits, o mais eloqüente dos poetas-compositores americanos. Chega de Bob Dylan. Não que as coisas de Dylan sejam ruins. Mas sobre ele já se escreveram milhares de páginas de um pomposo lero-lero analítico (que só fica aquém do suscitado por Freud) enquanto quase ninguém começou a reconhecer o valor de Tom Waits.
E por que haveriam de dar-lhe atenção? Porque ele transformou a música americana na canção de homens e mulheres comuns, surpreendidos naquele beco turvo e malcheiroso que fica entre a retórica pueril do “sonho americano” e a impiedosa realidade da vida contemporânea. Por acaso você se interessa pelo depoimento – de sinceridade desesperada, desalentada e pungente – sobre as provações de um americano comum, preso a uma guerra que ele não entende, mas da qual não tem como escapar com dignidade? Escute então “The Day After Tomorrow”. Nela, Tom Waits rosna e ruge a letra com as ruínas rascantes de uma voz que lembra um prédio reduzido a escombros, coberto de areia contaminada.
Essa voz, órgão de um homem muito maior do que essa figura leve de clown delicado (um dos seus CDs traz seu rosto pintado de pierrô – ele é um artista que sabe exatamente o que faz), é um dos maiores instrumentos sonoros da arte americana. Outros compositores competentes – Dylan, o canadense Leonard Cohen – também extraíram ênfase dramática das suas laringes danificadas, adequadas ao gume cortante das suas letras. Na direção oposta, o vagido em falsete de Neil Young ficou mais e mais doloroso à medida que adquiria uma urgência desesperada. Mas nenhum deles cogitou em transformar sua voz num retrato sonoro de um país, de maneira tão inteligente – e bem-sucedida – como Waits. Ele é o Kurt Weill da América imperial (e, por algum tempo, estudou Weill com empenho um tanto excessivo), imitando a fúria percussiva e discordante das canções mais abrasivas de Weill.
A comparação não faz justiça à originalidade de Waits. Existe algo de shakespeariano na vastidão da sua abordagem da vida americana moderna, na sua espantosa capacidade de penetrar nas cabeças e nos pulmões de, entre outros, bêbados de bar, putas, viciados, locutores de circo, veteranos de guerra com braços e pernas salpicados de fragmentos de metal e reduzidos a vender suas medalhas na calçada, pregadores pentecostais trovejando sobre o fim do mundo, ex-craques arruinados do beisebol devastados pela bebida, malucos de pavio curto, otimistas melancólicos quase perdidos de tão mareados nos seus martinis; e, num caso improvável, um morto que, sete palmos debaixo da terra, canta em voz suave, pedindo à sua amada que venha se sentar na relva da sua tumba. Só Tom Waits seria capaz de produzir uma canção inteira a partir de uma série de infomerciais (“Step Right Up”) e, de alguma forma, transformar a lista num documentário exaustivo e engraçado da credulidade e da esperteza americanas: “The large print giveth / And the small print taketh away” (“As letras graúdas dão / E as letras miúdas tomam”).
Este é apenas um apanhado, muito breve, das suas muitas encarnações. Quando se mergulha no mundo de Waits, não se embarca numa viagem de sonhos à terra da melodia alegre e do acalanto musical. Você vai parar numa lanchonete de talheres engordurados, na hora em que a aurora grisalha vem raiando sobre o lixo espalhado no pátio de estacionamento. Numa introdução a “Eggs and Sausage”, numa apresentação ao vivo de 1975, Tom Waits nos previne contra costeletas de vitela “perigosas, que descem do balcão para quebrar a cara do café, fraco demais para se defender”.
Embora seja vinagre nas feridas abertas do sentimentalismo otimista americano mais piegas, também existe paixão e ternura fervilhando nas suas canções. “Ol’ 55”, uma das primeiras canções do seu disco de estréia, Closing Time, é uma ode à alegria de emergir às 6 da manhã de uma noite de amor (“My time went so quickly / I went lickety-splitly out to my Ol’ 55 / and I pulled away slowly, feeling so holy / God knows I was feeling alive” – “Meu tempo passou tão depressa / e saí satisfeito e saltitante para o meu velho Oldsmobile 55 / e fui embora dali devagar, me sentindo tão sagrado / Deus sabe o quanto eu me sentia vivo”). Eis a mais linda canção de amor desde que Gershwin e Cole Porter fecharam a tampa dos seus pianos.
Geralmente, porém, as letras de amor de Tom Waits ardem de um salgado desencanto, o que as torna ainda mais tocantes. “Never Talk to Strangers” é um dueto de banco de bar com Bette Midler, em que a rotina previsível do desajustado (“I’m not a bad guy when you get to know me” – “Não sou um mau sujeito quando você me conhece melhor”) é antecipadamente esvaziada porque ela adivinha exatamente cada fala que ele vai dizer, ao mesmo tempo em que os dois ainda assim acreditam novamente em tudo.
Conheci tarde esse trovador da decadência. Um diretor da BBC, ao adaptar meu livro Paisagem e memória para a televisão, usou a interpretação de Waits para “Sea of Love”, de Phil Phillips, como fundo para imagens de arquivo das enchentes de Veneza. Em lugar de uma voz edulcorada, ouvia-se um rugido feroz, que virava pelo avesso o tom da canção. (Ele tem uma recriação ainda mais espantosa de “Somewhere”, de West Side Story, que faz qualquer um sentir na medula dos ossos a total desesperança da dor adolescente.) Eu nunca tinha escutado nada parecido. Quem era aquele sujeito, perguntei ao diretor. Desde então me viciei em Tom Waits. Como se pode deixar de acompanhar um escritor que produz um verso como “her hair spilled like root beer” (“seus cabelos se derramavam como root beer“), e te faz entender exatamente o que ele queria dizer?
A waitsomania não é um vício confortável. O percurso de Tom Waits desde os anos 70, quando era mais um compositor do Meio-Oeste a dedilhar seu violão, adaptando o country and blues à sua voz áspera, tem sido uma viagem a recantos cada vez mais profundos e sombrios da psique americana. Enquanto Dylan estendia a sua dama deitada (Lay Lady Lay), Waits cultivava a crueza brega, cantando, em tom muito educado, “I’m Your Late Night Evening Prostitute” (“Sou a sua prostituta da noite no meio da madrugada”). E de lá, muito previsivelmente, afundou no lodaçal costumeiro do álcool e das drogas, de onde acabou emergindo com a ajuda de sua parceira nas canções e co-produtora Kathleen Brennan, responsável por alguns dos produtos mais brilhantes da crueza de Waits.
Ninguém se compara a ele na evocação de todo tipo de música, do realejo mecânico dos carrosséis ao saxofone em surdina dos cabarés de Berlim, do bel canto italiano e, ultimamente, dos sons africanos e latinos. Às vezes, ele é capaz de levar sua recusa furiosa da autocomplacência à beira da paródia de si próprio, a um ponto em que gritos primais, grunhidos e berros, acompanhados pelo clangor de tampas de panela e da percussão nos objetos mais variados, acabam desabando num fosso profundo de cólera vocal. Ouvir essas canções é como mascar arame farpado. Mas, ainda assim, em meio a toda essa carnificina vocal, surge em algum ponto a inocência maculada de alguém que ainda imagina que possa haver uma vida boa, afinal de contas, logo além da esquina. O jovem soldado, que escreve para casa em Illinois, curvado ao peso de um conhecimento precoce adquirido à custa de sangue, canta:
I’m not fighting
For freedom
I’m fighting for my life
And another day
In the world here
I just do what I’m told
You’re just the gravel on the road
And the ones that are lucky
Come home
On the day after tomorrow …
(Não estou lutando
Pela liberdade
Estou lutando pela minha vida
E mais um dia
No mundo daqui
Só faço o que me dizem
Vocês são só o cascalho da estrada
E os que têm sorte
Voltam para casa
Depois de amanhã…)