ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Coração na mão
Aulas de crochê na CDD
Eduardo Heck de Sá | Edição 132, Setembro 2017
A Escola Municipal Alberto Rangel fica dentro da Cidade de Deus, a renomada favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Faz parte de um grupo reduzido de cerca de 100 unidades de ensino, em toda a cidade, capaz de oferecer educação em tempo integral, com sete horas diárias de aula, para crianças e adolescentes na etapa final do ensino fundamental, entre o 7º e o 9º ano.
Ali são servidas três refeições por dia. Os professores são relativamente bem pagos e trabalham em regime de dedicação exclusiva. Vista de fora, a Alberto Rangel se parece com tantos outros colégios públicos em áreas pobres do Rio. Ou quase. Desde que uma bala invadiu uma sala de aula e atingiu um aluno na nuca, em 2014, as janelas do 3º andar foram vedadas com tijolos e cimento. Estudantes, funcionários e docentes dizem que elas foram “blindadas”.
Fábio Dias dos Santos leciona inglês na escola desde 2012. Tem 46 anos. É um homem forte, negro, de fala articulada e suave. Aprendeu a falar o idioma que ensina no contato com missionários mórmons, ainda na adolescência. Da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que frequentava com a mãe, ele herdou também a preocupação de ser econômico, autossuficiente, industrioso. Aos 13 anos, pediu a uma tia que lhe ensinasse a fazer crochê – e nunca mais perdeu o hábito de tramar roupas e pulseiras nas horas vagas.
Já professor, sacava sempre que podia uma agulha comprida e um novelo de linha, e punha-se a trabalhar. No refeitório, na sala de professores, na classe antes da aula. Meninos e meninas lhe perguntavam o que era aquilo, examinando as peças. “Ah, legal”, reagiam, com a brevidade críptica que adolescentes costumam devotar aos adultos. Um homem dedicando-se àquela atividade não parecia provocar estranhamento entre eles. No caminho até a escola, contudo, nos ônibus, passageiros já haviam desencostado discretamente a perna do vizinho que fazia crochê. Outros riam nervosamente.
Assim, pareceu natural a Santos dar aulas de crochê depois que a Alberto Rangel passou a fazer parte do programa Ginásio Carioca, em 2016. A iniciativa da prefeitura prevê, dentro do modelo de educação em tempo integral, a oferta de disciplinas eletivas na parte da tarde. A cada docente caberia propor e ensinar uma nova matéria, fora do currículo obrigatório. Acresce que Santos já tinha a experiência de orientar iniciantes naquela arte: ensinara crochê à sua primeira mulher.
Fábio dos Santos estava me explicando tudo isso na sala dos professores, numa manhã de julho, quando alguma coisa, que de imediato eu não soube entender, aconteceu. A diretora da escola entrou na sala apressada e lançou um olhar na direção do professor. Foi o suficiente para que ele parasse de falar. A voz de Nurimar de Oliveira, uma mulher negra simpática de 59 anos, era sem dúvida a de uma severa e protetora diretora de escola quando me deu a ordem: “Eduardo, você tem que ir embora agora.”
Soube depois que naquela manhã, antes do início das aulas, um traficante havia morrido durante um confronto com a polícia. Àquela altura, pouco antes do almoço, circulava a informação de que o tráfico iria protestar a baixa do seu soldado.
Uma semana depois, retornei à Cidade de Deus. Antes de chegar à escola, passei por três rapazes com fuzis. Conversavam, tranquilos.
De tarde, a aula. Oito meninas e quatro meninos estavam matriculados no curso. Sentaram-se em carteiras dispostas em U diante do quadro-negro, que ainda guardava da aula anterior as conjugações de verbos em inglês, escritas com giz por Santos. O professor anunciou a tarefa do dia: urdir, com agulha e linha, um coração do tamanho de um punho adulto. Ligado baixinho, um rádio FM dava à classe uma atmosfera de oficina.
Os meninos sacaram das mochilas as longas agulhas. Maycon Costa, de 12 anos, era o aluno mais agitado e carismático. Por algum tempo manteve o instrumento de trabalho enfiado em sua carapinha, como uma antena, enquanto observava a notação que o professor ia desenhando na lousa e que descrevia um ponto de crochê.
Com um cabelo ferrugem preso num rabo de cavalo comprido e roupas cor-de-rosa, Julia Monteiro, de 11 anos, manejava a agulha com destreza. O coração logo começou a se formar em suas mãos. Ela e Maycon estão entre aqueles que, por prazer, passaram a praticar o crochê em casa. Santos disse esperar que o ofício eleve a atenção, a disciplina e a coordenação dos aprendizes.
Maycon se levantou para tirar uma dúvida. Santos tomou o projeto de coração do garoto nas mãos e fez alguns ajustes, com gestos ligeiros. Em seguida explicou ao menino que o ponto da peça estava “muito apertadinho na base”. Depois de retornar para a carteira, Maycon examinou com atenção a obra inacabada. Alto, magro, com jaqueta esportiva e brinco de brilhante na orelha, o menino balançava as pernas enquanto decidia como consertar o coração de barbante. Logo anunciou que ia desfazer tudo e recomeçar. Parecia gostar de ser o centro das atenções e ria com malandragem. O professor o deixava à vontade, sem recriminar a alegria do aluno.
Mais tarde, ao deixar a escola, passei por um rapaz que talvez não fosse muito mais velho do que Maycon. Portava o que parecia ser uma metralhadora, pendurada ao ombro. Encostado num balcão, comia com calma um copo de açaí, a polpa roxa coberta por jujubas e leite em pó.
Cinco dias depois recebi a notícia de que as aulas de todas as dezessete escolas da Cidade de Deus estavam suspensas. Os moradores tinham sido acordados por trocas de tiros na madrugada, depois da incursão de uma equipe do Batalhão de Operações Policiais Especiais.
Doze pessoas haviam sido baleadas. Entre elas, uma senhora de 82 anos, Elydia Roberta de Ramos. Dois rapazes morreram. Numa mensagem pelo celular, o professor Fábio dos Santos me disse temer que uma das vítimas tivesse estudado na Alberto Rangel. Minutos depois, voltou a dar notícias. “Não era nosso ex-aluno”, ele informou na mensagem, realçando a sensação de alívio com o ícone de duas mãos em prece.