ILUSTRAÇÃO: AUTO-RETRATO DE NOEL ROSA
Cortina de fumaça
Com algumas tragadas, lá se foi o cigarro da música popular brasileira
Nelson Sargento | Edição 2, Novembro 2006
O cigarro é muito importante na vida de quem fuma – e para o fabricante, é claro. Para quem não fuma ele é um grande inimigo. Os chamados não-fumantes já conseguiram que não se fumasse em aviões e ônibus, já conseguiram que fossem criados chiqueirinhos para os fumantes em repartições públicas e em empresas. É violenta a campanha contra o fumo, e aquele símbolo de “proibido fumar” está espalhado por todos os cantos. Até nas embalagens de cigarros os fumantes não têm sossego. Nelas está sempre a lembrança do perigo e o mal que o cigarro faz a saúde: “Cigarro dá câncer”, “cigarro tira a potência”, “cigarro dá enfisema pulmonar”, “não fume perto de crianças.”
Tudo bem. Ou tudo mal: há quem veja o cigarro como algo importante na vida, como um bom companheiro. Fumar para espantar a solidão, fumar para distrair, fumar enquanto espera a bem-amada, fumar para acalmar os nervos, fumar após o cafezinho, tomar um cafezinho para poder fumar, ou fumar por fumar. A importância do cigarro é tamanha que ele foi personagem de crônicas, poemas e é muito citado na música popular.
Há muitos anos, no cast da Rádio Tupi, prefixo PRG3, havia um locutor, importantíssimo na radiofonia nacional, chamado Carlos Frias. Sua voz firme, bem timbrada, saía dos rádios de segunda a sexta-feira, no horário nobre. A cada noite, ele lia uma crônica com o título Boa-noite para você. Ele tinha uma grande audiência. Recebiam seus “boas-noites” políticos, artistas, pessoas da alta sociedade e gente do povo que, por qualquer motivo, se havia feito notar. Pois não é que o cigarro também recebeu um “boa-noite”? Eu me lembro bem de Carlos Frias, com aquela imponência toda, dizendo “Boa-noite para você, meu cigarro aceso, pois apagado você não é importante”.
Muitos compositores concordavam com Frias. O cigarro aparece em diversas canções. Em alguns sambas do saudoso Noel Rosa, por exemplo. No samba com o título “Para esquecer” ele cita esta quadra: “Pra esquecer a desgraça tiro mais uma fumaça de um cigarro que filei de um ex-amigo que outrora sustentei.” No famoso “Conversa de Botequim” ele inclui nos pedidos ao garçom: “não se esqueça de me dar palito e um cigarro pra espantar mosquito.” Em “Pela décima vez”, diz: “Joguei meu cigarro no chão e pisei. Sem mais nenhum, aquele mesmo apanhei e fumei.” Noel complementa com “Através da fumaça neguei minha raça chorando a repetir: ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir”. Ela é o veneno, não o cigarro.
Haroldo Barbosa e Luiz Reis também homenageiam o companheiro cigarro, e logo no início de um de seus sambas. “Tudo é Magnífico” começa com um “Magnífica é aquela tragada puxada depois do café”.
Também no início de uma canção, um baião, Luiz Gonzaga celebra seu fumo. “Meu cigarro de palha, meu cavalo ligeiro”, canta o sanfoneiro.
Erivelton Martins usa o cigarro para lembrar da amada. No samba “Pensando em ti”, ele cita, na segunda parte: “nos cigarros que eu fumo te vejo nas espirais.”
Uma das menções ao cigarro mais famosas da música brasileira ficou conhecida na voz de Nora Ney.
De cigarro em cigarro
Olhando a fumaça no ar se perder
Vivo só sem você
Que não posso esquecer
Um momento sequer,
canta ela, em “De cigarro em cigarro”, de Luiz Bonfá.
Pois é. Até mesmo eu, no samba “Notícia”, falo dele. “Guardei até onde eu pude guardar, o cigarro deixado em meu quarto”, escrevi e canto.
Seria enfadonho procurar mais músicas nas quais o cigarro aparece. Ou mesmo lembrar de tantos grandes nomes do samba que ficaram marcados pelo tabaco. É o caso de mestre Cartola, genial sambista e fundador da Estação Primeira de Mangueira, que tinha no cigarro um bom camarada do seu cotidiano. Só resolvi escrever sobre isso porque tenho notado que as pessoas estão fumando menos.
Eu, por exemplo, deixei de fumar.