ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Costurando saídas
Um coletivo retoma suas aulas para transexuais
Tiago Coelho | Edição 168, Setembro 2020
No início dos anos 2000, Priscila Nunes abriu em Moema, na Zona Sul de São Paulo, o bar Xuxu Karaokê, que começou a ser frequentado por um público na época chamado de GLS. A princípio, o local não era destinado aos gays, lésbicas e simpatizantes, mas Nunes fazia questão de criar um ambiente amigável e seguro a essa clientela, que passou a ser maioria na casa.
O bar fechou em 2010, mas as amizades feitas ali motivaram Nunes a participar de manifestações LGBTQI+, a nova sigla para indicar lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e travestis, queers, intersexuais e outras formas de orientação sexual.
Em 2014, Nunes e sua amiga Mavica Morales, ambas cisgênero, participavam de um protesto na Avenida Paulista quando uma travesti se aproximou e pediu um cigarro. Morales quis saber como estavam as coisas para ela, que respondeu: “Uma merda.” As duas amigas decidiram criar um espaço de apoio a pessoas LGBTQI+ em situação de rua e, no ano seguinte, abriram o Coletivo Trans Sol, com cursos de crochê e bonecaria, a arte de fazer bonecas em tecido.
A empreitada não deu muito certo no início, pois pouca gente aparecia nas aulas. Mas, sabendo da iniciativa da dupla, a Incubadora Pública de Empreendimentos Econômicos Solidários, da Prefeitura de São Paulo, convidou as duas amigas para desenvolverem, em 2016, uma oficina de corte e costura para alunas do Programa Transcidadania, que visa a reinserção social de travestis, mulheres transexuais e homens trans.
Nunes ensinava bonecaria, e Morales, crochê. Elas convidaram frequentadores do extinto Xuxu Karaokê que trabalhavam na área de confecção para dar aulas profissionalizantes no programa. Instalada num espaço cedido pela Prefeitura no bairro do Cambuci, a oficina virou uma das preferidas das alunas do Transcidadania. “Enquanto confeccionavam as bonecas, elas contavam o que tinham passado na infância: trocavam carrinhos por bonecas, brincavam escondidas e apanhavam muito dos pais”, contou Nunes, de 52 anos, que já trabalhou como fotojornalista e hoje se dedica exclusivamente ao coletivo, como professora.
As organizadoras do Trans Sol propuseram que as aprendizas criassem bonecas do tamanho de uma pessoa, com um elemento que considerassem indispensável. As alunas transexuais e travestis decidiram que não poderia faltar às bonecas um documento de identidade, com nome escolhido por elas. O coletivo passou a vender as bonecas e peças de roupas produzidas pelas alunas, remunerando-as pelo trabalho.
Ainda em 2017, o Trans Sol foi convidado a participar de um desfile e leilão na Casa 1, centro de cultura e acolhimento LGBTQI+, financiado pela sociedade civil. Pessoas do mundo queer desfilaram vistosos quimonos estampados, um dos carros-chefes do coletivo, adequados para qualquer gênero. Das vinte alunas que participavam da oficina, apenas duas compareceram ao evento. “As outras acharam que não deviam ir, que não seriam aceitas. Muitas delas carregam um forte sentimento de rejeição”, afirmou Nunes.
No ano seguinte, com a posse de João Doria na Prefeitura de São Paulo, a oficina perdeu o apoio financeiro e a sede. A Casa 1 ofereceu, então, um local para que desse prosseguimento ao trabalho. Outra ajuda importante foi a parceria da confecção Güle Güle, que doou tecidos. As peças de roupas feitas passaram a ser vendidas em feiras e eventos descolados de São Paulo. Até hoje, mais de trinta alunas passaram pelo projeto.
Uma das primeiras foi Roberta Rodrigues, de 31 anos, que hoje é professora de corte e costura e presidente do coletivo. “O Trans Sol foi uma mudança radical na minha vida. Antes, eu vivia da prostituição. Sentia o preconceito e não encarava o mundo de frente”, disse ela. “Hoje tenho uma profissão, passei a frequentar lugares públicos e ganhei confiança.” A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% dessa população no Brasil tem na prostituição a única fonte de subsistência.
A quarentena durante a pandemia quase pôs em risco o futuro do Trans Sol. Como as feiras nas quais a equipe vendia as peças de roupas foram suspensas, o coletivo precisou buscar apoio financeiro. Foi atrás de patrocínio e obteve uma verba do Instituto C&A, que permitiu pagar o aluguel e dois meses de salário da equipe – formada por três mulheres trans e travestis. Além disso, o Trans Sol vendeu peças de roupas pela internet e promoveu um financiamento coletivo pelas redes sociais.
Nunes contou que na fase mais crítica teve que pedir aos apoiadores que doassem cestas básicas às meninas que atuam no coletivo. “Agora, com o que conseguimos, será possível tocar o projeto por mais dois ou três meses.” Em meados de julho, a equipe retomou as atividades, tomando as devidas precauções. Para distribuir os brindes às pessoas que colaboraram no financiamento coletivo, o Trans Sol fez parceria com um grupo de entregadoras trans.
No ano passado, a mineira Paula Muniz de Paula, de 48 anos, uma das primeiras alunas do coletivo, decidiu juntar dinheiro para se casar. “Queria comprar uma máquina de costura para pôr em prática o que aprendi no curso e fazer roupas para vender ou dar entrada num carro para meu namorado trabalhar como motorista de Uber”, disse a transexual, que vive há 26 anos em São Paulo. Porém, com o avanço da Covid-19, ela precisou adiar o casamento.
Nos primeiros meses da pandemia, com medo do contágio, Paula resolveu não fazer mais programas. Mas, como suas economias escassearam, ela voltou a atender a clientela, que havia reduzido drasticamente por causa do isolamento social. “Quase nenhum homem aparecia.”
No início de julho, Paula procurou o coletivo para pedir trabalho. “Meu namorado estava falido e eu também. Atendi meia dúzia de gatos pingados por mês.” A confecção de bonecas e roupas tem ajudado a complementar sua renda. “Além disso, aqui sou muito feliz. É cada gargalhada que a gente dá enquanto trabalha”, disse ela, enquanto costurava um veadinho de tecido – o brinde a ser entregue a quem contribuiu para a sobrevivência do coletivo.