Para Lévi-Strauss as sociedades “quentes” absorvem as “frias” ILUSTRAÇÃO: MATTIA MASSOLINI_WWW.MATTIAMASSOLINI.BLOGSPOT.COM
Crepúsculo estruturalista nos trópicos
Morto há um ano, Lévi-Strauss foi sensível à utopia, atualmente em voga, que combina o bem-estar possibilitado pela civilização ocidental com a harmonia ambiental das sociedades “primitivas”
Otavio Frias Filho | Edição 50, Novembro 2010
Um abismo parece se abrir entre o século XX e nós. A sensação de distância psicológica em relação a uma época ainda tão recente, tema predileto do historiador britânico Tony Judt, talvez tenha se acentuado por causa do advento digital: os anos 80 foram a última década analógica da História. Também foram o decênio que encerrou o brutal ciclo de violência organizada a partir de credos ideológicos que se proclamavam “científicos”, deflagrado no começo do século pelo comunismo e pelo fascismo, origem da carnificina de proporções inéditas que o marcou.
Parece que as violentas energias liberadas pela sociedade industrial de massas por fim encontraram, nos anos 80, um ponto de equilíbrio ou saturação. Depois de testar as fórmulas da escolástica de dirigismo sociológico que intoxicou o século, era como se o espírito da época evoluísse (ou retrocedesse) para um consenso amplo e desambicioso em torno da democracia representativa e da economia de mercado. Até agora, as forças remanescentes que resistem a esse consenso ou bem são inarticuladas (como a revolta difusa na periferia de grandes cidades) ou regressivas, dependentes de formações históricas pré-modernas, como o fundamentalismo islâmico.
Seja real ou psicológica, a distância relativa compele a um olhar irônico sobre os “ismos” que proliferaram no século XX e atualmente se mostram frívolos na sua pretensão científica, assim como soam fúteis as tremendas controvérsias que travaram. Quase podemos contemplar suas contendas, apesar do curto tempo decorrido, com estranhamento parecido ao que nos inspiraria a luta entre guelfos e gibelinos, partidários respectivamente do papa e do imperador alemão, cujo conflito hoje esquecido obcecou o pensamento europeu no século XIII.
Algo assim vale também para o estruturalismo, a corrente de pensamento que no âmbito das ciências humanas e sociais terá sido, depois do marxismo, a influência intelectual recente mais poderosa no meio universitário, inclusive brasileiro. Os autores que notabilizaram o estruturalismo eram franceses, e seu predomínio internacional consistiu, entre os anos de 1950 e 1970, lado a lado com o existencialismo, na derradeira de uma longa série de cabalas intelectuais radicadas em Paris.
Ciosos de suas originalidades, Roland Barthes (semiologia, o estudo dos sistemas simbólicos), Jacques Lacan (psicanálise) e Claude Lévi-Strauss (antropologia) foram reticentes quanto ao rótulo de estruturalistas que lhes era atribuído – e Michel Foucault (história social) dificilmente se encaixaria nele. Mas abordaram seus respectivos objetos de estudo como linguagens inconscientes desenvolvidas em função de parâmetros abstratos e invariáveis, inerentes ao espírito humano, que cabia investigar. Não era outro o postulado que os primeiros estruturalistas, os russos Roman Jakobson e Nikolai Trubetzkoy, haviam tomado de empréstimo à linguística para experimentá-lo na teoria literária e na crítica de arte.
Na condição de estudante nos anos 80, testemunhei o crepúsculo do estruturalismo numa universidade tropical. O que pudesse ter havido de disciplina intelectual nessa escola de pensamento em seu período ortodoxo desaparecera na obra de discípulos exibicionistas e epígonos. Eles se empenhavam em disputar um torneio de radicalidade, esgotado numa proclamação de colapso do entendimento ante os mistérios da linguagem e numa espécie de relativismo absoluto – apenas dois dos paradoxos cultivados com gosto no caldo, chamado pós-estruturalista ou simplesmente “desconstrução”, que já então começava a inundar a área das humanidades.
No departamento da Universidade de São Paulo que frequentei havia um grupo de professores avessos, embora tivessem formação francófila e de esquerda, ao predomínio maciço de autores marxistas na formação dos alunos. Estes, num período de politização ideológica, muitas vezes vinham das passeatas contra a ditadura militar munidos de um marxismo de almanaque e afoitos por obter, em sala de aula, a confirmação “científica” de suas certezas. Por espírito de diversidade, porque estavam mudando de opinião ou porque associavam a politização excessiva a um aviltamento de padrões acadêmicos, aqueles professores insistiam em dar cursos sobre autores fora de moda, como Émile Durkheim, Alexis de Tocqueville e Lévi-Strauss, cuja fama conhecera o apogeu vinte anos antes.
A leitura de Durkheim, tido por fundador da sociologia, servia como advertência de que a ciência social sempre aspirou submeter-se aos controles matemáticos da ciência física e que toda generalização deve estar apoiada numa série de repetições documentadas. A crítica que Tocqueville faz à democracia de massas é tão abrangente que extrapola o conservadorismo político do autor para assumir tons proféticos quanto à propensão de governos, apoiados na opinião da maioria, para degenerar em intolerância e conformismo.
Mas o que Lévi-Strauss propunha era bem mais complexo, sutil e tentador. Era todo um sistema explicativo de amplo espectro, no contexto do qual o próprio marxismo, com sua imensa aptidão para encaixar fatos num único molde teórico, figurava como caso particular. Se o marxismo parecia ter levado a “ciência social” ao limite possível na análise da estrutura produtiva do capitalismo, Lévi-Strauss parecia realizar empreitada semelhante na compreensão daquele nível que os marxistas chamam de “superestrutura”, ou seja, a religião, os costumes, as instituições, a arte – numa palavra, a cultura. O estruturalismo era uma morfina intelectual tão sedutora quanto o marxismo, mas que atuava como antídoto ao englobá-lo ou, à maneira da homeopatia, curava por semelhança.
Na ocasião de sua morte, há um ano, Claude Lévi-Strauss foi exaltado como campeão do relativismo cultural. Ele decerto dedicou a vida à demonstração de que nenhuma cultura é “superior” a outra, já que nenhuma pode ser considerada sob critérios que não os seus próprios. Se uma dada cultura nos parece rudimentar ou “primitiva”, é porque somos ignorantes para atinar com sua complexidade, discernir o que é valioso para os que estão imersos nela e perceber que o “pensamento selvagem” não apenas funciona de maneira análoga ao pensamento científico, como chega por vezes às mesmas conclusões.
Mas não está no relativismo a originalidade de Lévi-Strauss, embora ele tenha expandido como ninguém a simpatia compreensiva para com as sociedades “primitivas”, que desde então incorporaram as aspas para sempre. Essas sociedades simplesmente escolheram, na concepção de Lévi-Strauss, recusar a revolução neolítica que deu origem ao impulso tecnológico que nos arrasta de modo desenfreado até hoje. Devido a “uma sabedoria particular”, elas impediram a “história de irromper em seu seio” e decidiram há muito tempo “perseverar em seu ser”.
São sociedades que ele chama de “frias”, as que mudam pouco e não conhecem devir histórico, em oposição às sociedades “quentes”, das quais a civilização técnica ocidental seria o exemplo mais exitoso. Mas esse êxito, medido em acumulação material, reflete para Lévi-Strauss uma visão estreita, válida talvez no contexto desta sociedade, não de outra. Um machado de pedra e outro de ferro, ele diz, são igualmente benfeitos; a “utilidade” de cada um é relativa à sociedade onde é empregado e somente nela pode ser apreciada.
Outros já haviam sido relativistas antes, notadamente Franz Boas, americano emigrado da Alemanha, criador da antropologia cultural e primeiro grande adversário intelectual do racismo. Exerceu, aliás, influência decisiva sobre o jovem Gilberto Freyre quando este foi aluno na Universidade de Columbia, em Nova York. Num acaso significativo, Boas expirou nos braços de Lévi-Strauss, em 1942, vítima de uma síncope durante um almoço naquela cidade.
Mesmo etnólogos da primeira geração a se profissionalizar na Europa, na passagem do século XIX ao XX, imbuídos ainda do sentimento de superioridade da cultura europeia sobre as demais, sentiram o desalento que acometeu sir James Frazer, autor do monumental compêndio de mitos e ritos que é O Ramo de Ouro (1922), diante da espantosa diversidade das sociedades humanas e da aparente impossibilidade de reduzir suas desencontradas expressões culturais a um denominador comum, um sistema, uma unidade, cuja manifestação mais alta fosse a civilização ocidental. A busca dessa unidade, presumida e oculta, logo se tornou a razão de ser da antropologia.
Assim como o contato de viajantes com o Novo Mundo havia municiado autores renascentistas de um espelho onde examinar sua própria sociedade, os périplos dos etnólogos na África, no Ártico e na Oceania abriram caminho à aceitação intelectual da singularidade de cada cultura. Se havia uma unidade subjacente a todas, ela não estava estampada na cultura europeia mais do que em qualquer outra.
Estudando sociedades reveladas no rastro do colonialismo tardio, etnólogos como o polonês Bronislaw Malinowski e o britânico Radcliffe-Brown contribuíram para solapar a legitimidade da civilização europeia em seu afã de subjugar as demais. Para esses expoentes da escola funcionalista, os costumes “selvagens”, por mais bizarro que fosse seu aspecto, corresponderiam a funções necessárias na sociedade em que vigem, as quais deveriam ser esclarecidas pela etnologia.
Assim, num percurso sinuoso que não tem o esquematismo com que é sumarizado aqui, a etnologia atravessou ao menos três fases.
Na primeira, o aventureiro, o traficante de mercadorias e o funcionário colonial ainda se confundem com o etnógrafo amador que cataloga por diletantismo, nem sempre desinteressado. Na segunda, o pesquisador universitário e profissionalizado busca encontrar na diversidade alheia os fundamentos racionais de sua própria sociedade, como se nesta culminasse tudo o que nas demais seria mero esboço (vertente que os antropólogos chamam de “evolucionismo”). Ocorre que as evidências do enorme diapasão daquela diversidade crescem conforme a pesquisa se estende mundo afora, deixando atônitos os estudiosos, desesperados diante de um quebra-cabeça impossível de montar.
Irrompem sistemas de parentesco cada vez mais complexos, rituais disparatados, mitos incompreensíveis – e um verdadeiro pesadelo antropológico, o totemismo, que vincula certos clãs a determinados animais e vegetais, ora por interdição, ora por obrigação, e para o qual não se conseguia atinar com uma lógica que elucidasse nem sequer a maior parte dos casos.
Numa terceira fase, já marcada pela influência crescente do marxismo universitário e da crítica ao colonialismo, a etnologia se volta contra si mesma. Uma insidiosa consciência de culpa leva os antropólogos a valorizar tanto mais uma sociedade quanto mais diferente ela for da sua. A resposta para o fracasso tanto na busca de uma lógica implícita à diversidade, como na preservação da hegemonia europeia sobre o mundo, seria o relativismo cultural. Aqui entra em cena Lévi-Strauss.
Não duvidemos da importância que o trabalho de campo entre os bororos, os kadiwéus e os nambikwaras, durante expedições ao Brasil Central entre 1935 e 1938, possa haver desempenhado na formação de Lévi-Strauss. Para além da pesquisa empírica, que ele não praticou mais depois disso, porém, sua contribuição criativa se deu no âmbito da filosofia da etnologia e na audaciosa tentativa de unificar as ciências humanas sob uma mesma linguagem.
O momento decisivo na trajetória de seu pensamento ocorreu pouco depois do período brasileiro, quando Lévi-Strauss, já de volta à França, teve de se refugiar do nazismo na New School for Social Research de Nova York (1941), colocando-se ali sob a influência da linguística estrutural por meio de Roman Jakobson, de quem se tornou amigo. Data dessa época sua ligação com André Breton e outros surrealistas, que teriam ensinado o antropólogo, segundo declarou, a fazer aproximações entre coisas aparentemente estranhas entre si.
Franz Boas, num livro de 1911, foi um dos primeiros a destacar que as leis da linguagem funcionam no nível inconsciente, o que permite estudá-las como fenômeno objetivo e sugere um paralelismo a ser explorado entre língua e cultura. Mas a iluminação que Lévi-Strauss obteve via Jakobson remontava a Ferdinand de Saussure, estudioso suíço considerado o precursor do estruturalismo. Saussure ensinara em seu célebre curso de linguística, no início do século passado, que os signos não funcionam por causa do valor intrínseco que possa residir em cada um, mas pelos contrastes que formam quando justapostos.
Um fonema ou uma letra não significam nada em si, mas passam a significar quando postos em contraste com outros fonemas e letras. Um punhado de fonemas ou letras invariáveis, quando combinados, produz uma infinidade de sentidos. Da mesma maneira, intuiu Lévi-Strauss, os grandes enigmas da etnografia – os sistemas de parentesco, o totemismo, os mitos das sociedades “primitivas”, tão díspares na multiplicidade de suas configurações ostensivas – seriam “línguas” culturais desenvolvidas sobre uma estrutura simples e invariável, a gramática do pensamento.
Deve-se ressaltar que a paixão pela simetria, além de preferência estética, é nada menos que uma ideia fixa entre os estruturalistas. Lévi-Strauss abraçou o conceito estruturalista dos “pares de oposições”, em que a se opõe a b tal como c se opõe a d, donde uma similitude entre ab e cd. E passou décadas a ler uma quantidade fantástica de relatos de campo e a redigir brilhantes exegeses destinadas a fazê-los caber em seu sistema.
Desse ângulo, as narrativas compostas por povos e civilizações remotos seriam modos de pensar o mundo que o organizam a partir de oposições sensíveis (céu/terra, cru/cozido, fresco/podre, permitido/proibido, natureza/cultura, etc.) e pela eventual irrupção de um terceiro termo, que faz a mediação entre os opostos. Não importam os termos em si, mas as relações entre eles. O mundo – na realidade, seu reflexo projetado nas expressões simbólicas do espírito humano – é um sistema inconsciente de relações de contradição e similitude. Nem matéria nem forma, mas ambas de uma só vez, esse sistema subjacente seria a estrutura.
O estruturalismo foi o último, ao menos até o momento, dos modelos totalizantes de explicação intentados pelas ciências humanas, dos quais os exemplares mais influentes haviam sido o positivismo, o marxismo e a psicanálise. Vigora hoje um cauteloso ceticismo intelectual, propenso a sorrir das ambições de tais teorias, e da retórica que tantas vezes fizeram passar por ciência. Mas Lévi-Strauss esteve entre os que julgaram ter encontrado indícios de uma lógica sob o caos aparente da história e da cultura, uma unidade entranhada na excentricidade – e nesse sentido não se pode afirmar que ele foi relativista.
Duas perguntas haveriam de interessar o leitor retrospectivo de Lévi-Strauss, alguém que o lesse com os olhos de hoje.
A primeira é se ele, tendo perseguido a miragem de uma unidade subjacente a todas as culturas, não teria afinidades com a psicologia evolutiva, com a sociobiologia e as demais abordagens ditas neodarwinistas, que também distinguem uma plataforma invariável sob a diversidade cultural. Lévi-Strauss quase nunca menciona o darwinismo em sua obra, e existe ao menos uma passagem em que ele associa a sociobiologia então nascente a uma simplificação grosseira. Embora seu pensamento flerte com a matemática, ele não se desgarra da tradição filosófica e humanista. Julgava as ciências da natureza “uma terra prometida aonde não terei o privilégio de entrar”.
De toda forma, a analogia seria mais aparente do que real. Os neodarwinistas postulam, com efeito, que a cultura replica e acentua diretrizes invariantes implícitas no código genético (onde foram gravadas pela seleção natural), mas atribuem conteúdos determinados a esses mandamentos. O estruturalismo recusa a universalidade de qualquer conteúdo. O que é invariável é a estrutura, ou seja, a forma que organiza os conteúdos, que descreve as relações abstratas entre eles
A outra questão é política e diz respeito à equivalência entre as culturas. É difícil negar que cada cultura deveria ter autonomia para “manter” suas decisões, ainda que estas tenham sido inconscientes e ancestrais. Mas também é difícil negar que a civilização ocidental conquistou um acervo de realizações materiais que atua como o mais poderoso dos ímãs sobre o desejo humano em todas as culturas. Esse ímã está liquidando a diversidade cultural, desde logo, ao incorporá-la.
Nosso autor sabia que o destino das sociedades “quentes” é absorver as demais e tinha uma visão trágica desse encontro. Seu estilo literário não era alheio à argumentação de feitio jurídico, e ele cometia malabarismos para contornar evidências às vezes objetivas, como numa passagem em que tenta sugerir ao incrédulo leitor que a medicina do Extremo Oriente estava “alguns milênios” à frente da ocidental. Seria o caso de questionar o direito da antropologia de negar às sociedades “primitivas” o acesso à tecnologia e ao bem-estar objetivo que ela gera.
Lévi-Strauss não foi indiferente a uma utopia, atualmente em voga, que procura reunir valores de ambas as matrizes, combinando o dinamismo e o bem-estar possibilitados pela civilização ocidental com a estabilidade e a harmonia ambiental das sociedades “primitivas”. “A civilização mundial”, ele escreveu, “só poderia ser a coligação de culturas, preservando cada qual sua originalidade.” A consecução desse ideal é certamente dispendiosa, e talvez impraticável.
Enquanto isso, a cultura que produziu Claude Lévi-Strauss – a tradição europeia que provinha do Iluminismo, da arte erudita e das humanidades universitárias –, considerada outrora dominante, já estava sob ameaça no período final de sua vida, e ele lamentava essa extinção, que hoje parece em vias de se consumar, mais que tudo.