Crime carnal
Intriga, contrabando e fraldinha
Emiliano Urbim | Edição 42, Março 2010
O Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo. Só no ano passado, foram 2,2 milhões de toneladas – isto é, esses são os dados oficiais, que não incluem ações subterrâneas como a perpetrada por L. e R.. Em janeiro, os dois puseram em marcha um plano para entrar num país estrangeiro com carne não declarada. Tudo em nome de uma paixão.
Ele é brasileiro, ela é americana e moram ambos em uma pequena cidade no interior dos EUA. O estratagema começou a ser tramado em setembro do ano passado, quando L. veio a Porto Alegre para conhecer a família de R.. Se houve teste, a moça foi aprovada: a “namorada americana do R.”, publicitária e colega do rapaz numa agência, era de uma boa família judaica e adorava cozinhar. Como todo turista na capital gaúcha, L. foi levada a uma churrascaria, a Porto Alegre, que desde 1966 “prima pela simplicidade e qualidade”. Depois de se esbaldar com picanhas, chuletas e assemelhados, ela só tinha uma coisa a dizer: “Amazing!”
Surgia ali a semente de um crime. Meio de brincadeira ou nem tanto, L. sugeriu que seria ótimo levar um pouco de carne na mala, mas a ideia não prosperou. O casal embarcou de volta com uma bagagem pia e temente à lei. Contudo, em lá chegando, foi entrar num açougue que bateu o arrependimento. Um filé-mignon de 2 quilos, 60 reais em Porto Alegre, em sua cidade custava o triplo. Não que o futuro delito tivesse o vil metal como motor. A questão era mesmo gastronômica. “A carne de vocês é muito melhor. Nos Estados Unidos não se valoriza o tempo de maturação”, esclarece L., em pleno uso do vocabulário enriquecido por horas de convivência com os cozinheiros televisivos Jamie Oliver e Ina Garten. Estava decidido: quando viessem ao Brasil, retornariam com um churrasco cru na mala.
Estabeleceu-se a divisão de tarefas. Por conhecer o produto, os fornecedores e o idioma, R. se encarregaria da muamba. L., mentora intelectual, cuidaria do transporte. Era uma atravessadora experimentada de alimentos em linhas aéreas internacionais. Da França, havia trazido pasta de queijo brie. Da Itália, prociutto e pancetta. A ela caberia solucionar as dificuldades técnicas. “Eu precisava achar um jeito de manter as carnes congeladas durante as 28 horas da volta”, relata. Mas não só. Seria necessário passar incólume pela alfândega dos dois países. Protagonistas de Missão Impossível já deram meia-volta em face de obstáculos menores.
No final de dezembro, o plano entrou em ação. A família de R. ainda tentou dissuadi-lo da empreitada – “Era maluquice”, diz a mãe, a sensata dona I. –, mas nada feito. Num tradicional supermercado Zaffari – ou Záffari, nas terras ao norte do Rio Grande do Sul, recurso da marca para se manter proparoxítona –, foram adquiridos mais de 100 reais de carne: um filé-mignon de 2 quilos e duas peças médias de vazio, o corte preferido de L., chamado pelos outros – os não-gaúchos – de fraldinha.
No dia 30, um cooler lotado de carne voou para Florianópolis, onde R., L. e dona I. passariam o Réveillon. No hotel, o tesouro foi confiado à recepção, com a garantia de que seria acondicionado num dos cinco freezers do estabelecimento. Quando R., uns dias depois, achou que era hora de vistoriar o precioso lote, sentiu a espetada: as fraldinhas haviam dado lugar a um literal vazio. Sobrava o filé-mignon. Entre mil desculpas, a administração especulou que os cozinheiros da casa, desavisados, teriam servido a carne a outros hóspedes.
L. e R. não esmoreceram. Saíram à cata de um entreposto comercial onde pudessem substituir a mercadoria, ainda que por similar inferior. Acharam, e, numa rara demonstração de amadorismo, mais uma vez confiaram as apetitosas fraldinhas ao mesmo freezer do mesmo hotel. A carne sumiu novamente. E, de novo, só elas, as fraldinhas. O que levanta dúvidas sobre a honestidade do estabelecimento e sugere uma questão mais funda sobre o que teriam os catarinenses contra o filé-mignon.
Como o segundo desfalque só foi descoberto no check-out, restou dedicar uns minutos à esculhambação do hotel, tarefa assumida principalmente por dona Ione, que, na sua indignação, ameaçou denunciar o caso à polícia. L. e R., se não dispunham de tempo para voltar às compras, muito menos para se chatear com delegacia e boletins de ocorrência. O filé remanescente ainda precisava cumprir os 11 mil quilômetros que vinham pela frente.
E foi assim, escondido numa embalagem térmica envolta em casacos e malocado no fundo da mala de L., que um pedaço de carne passou pelos aeroportos de Florianópolis, Guarulhos, Miami, Washington e Denver, de onde seguiu de carro até sua cidade.
A vigilância sanitária garante que, se apanhado na saída do Brasil, ele seria destruído. Nos Estados Unidos, as consequências do flagra seriam ainda mais graves. A carga seria confiscada e o casal correria o risco de ser multado em 250 dólares, o equivalente a quinze filés-mignon no Zaffari. Fontes mais alarmistas chegam a dizer que os dois deixariam de ser réus primários, pois a cartilha do órgão responsável por barrar esse tipo de insensatez é claríssima quanto à natureza do delito: “Basta um pedaço de linguiça estrangeira contaminado com febre aftosa para causar um prejuízo de bilhões. O Serviço de Inspeção de Saúde Animal e Vegetal está de guarda para impedir esse desastre.”
L. e R. chegaram sãos, salvos, salivantes e impunes ao destino. Os 3 quilos de filé-mignon estão maturando e, ocasionalmente, são expostos a amigos de caráter igualmente dúbio, dispostos a aplaudir uma felonia.
L. anda falando em repetir o plano quando voltar ao Brasil, mas agora preparada para grudar o olho nas fraldinhas.
O mistério do hotel veio à luz dias depois. Dona Ione recebeu a informação de que as carnes desaparecidas haviam sido localizadas no fundo – mas bem no fundo mesmo – do freezer, sob montes de batatas congeladas.
L., a quem o sucesso do golpe trouxe a agradável sensação de inexpugnabilidade, sugeriu imediatamente que voltassem lá para pegar o que lhes era de direito. Não sendo correspondida em ímpeto e audácia, deixou quieto.
R. deve se cuidar. Sua namorada pode estar se acostumando à vida inebriante dos fora-da-lei. Mais dia, menos dia, acaba achando que ele carece de espírito aventureiro.