ILUSTRAÇÃO_ ANDRÉS SANDOVAL_2008
Crime passional
Uma tela em branco, um beijo, uma noite na cadeia
Isabel Junqueira | Edição 17, Fevereiro 2008
Rindy Sam, de 33 anos, faz questão de ser gentil com os jornalistas, aos quais sempre oferece um post-it que assina com a marca dos seus lábios. Durante os últimos seis meses, toda matéria de jornal ou revista em que aparece é recortada, colada no centro de uma folha em branco e catalogada num fichário. Sam, uma artista amadora de origem cambojana, tornou-se famosa na França pelo crime que cometeu no dia 19 de julho de 2007. Foi levada a julgamento e aguarda, para o fim de fevereiro, qual será seu destino.
Naquela quinta-feira, pela primeira vez na vida ela pôs os pés dentro de um museu. Até alguns dias antes, Sam desconhecia a existência de Cy Twombly, pintor americano de 79 anos cujos quadros não custam menos de 1 milhão de euros. Mas, ao bater o olho numa crítica do Le Monde sobre uma exposição de Twombly em Avignon, no sul da França, quis ver seus quadros inspirados na Grécia Antiga. O museu da Coleção Lambert, que reúne o acervo do marchand e colecionador francês Yvon Lambert, exibia durante o verão obras antigas e recentes do artista.
Rindy Sam chegou ao museu por volta das quatro da tarde, trajando um vestido vermelho de alças e acompanhada do namorado. Percorreu com calma o andar térreo, dedicado a quinze telas de motivos florais. Sua curiosidade só seria saciada no 2º andar, numa sala onde se encontravam os Três Diálogos, um conjunto de quadros abstratos sobre obras de Platão. Ela esmiuçou cada uma das dez pinturas expostas e, diante do tríptico consagrado ao Fedro, apoiou as mãos na parede, respirou fundo e tascou um beijo na imagem do meio, uma tela virgem que, somada às outras duas peças do conjunto, estava avaliada em 2 milhões de euros.
Sam constatou, como sempre acontece quando limpa a boca num guardanapo, que seus lábios haviam marcado de vermelho o quadro, originalmente todo branco. Talvez por instinto, deu uma olhada em volta e viu que só havia mais uma pessoa na sala: seu namorado, que, distraído, folheava o catálogo da exposição.
Às seis da tarde, quando ela descia a escadaria do museu para ir embora, um burburinho chamou sua atenção. Funcionários da Coleção Lambert, gente da delegacia de Avignon e um punhado de visitantes bisbilhoteiros estavam reunidos na entrada, ocupados em desvendar o crime. Quando Sam chegou ao saguão, o caso de súbito pareceu solucionado: seus lábios eram os únicos escandalosamente rubros. O beijo virou caso de polícia – causara a desvalorização instantânea de um patrimônio milionário – , e pela primeira vez ela foi conhecer as amenidades de uma prisão francesa.
Os dias de Rindy Sam começam sempre com uma generosa dose de batom Lovely Rouge, da marca Bourjois, a arma do crime. Embora não seja obcecada pela aparência, dá importância a esse coquetismo. A pintura lhe consome a maior parte do tempo, mas ela não vende seus quadros. Rindy Sam está desempregada e sustenta as duas filhas com os 800 euros mensais oferecidos pelo governo francês.
Ao La Provence, um dos jornais da região, ela afirmou ter sido seduzida pelo quadro e “empurrada pelos deuses” para beijá-lo, o que a seus olhos o tornou ainda mais bonito. Já os representantes da Coleção Lambert deram uma interpretação diferente: “É vandalismo, é estupro. Aquela mulher barbarizou a obra fazendo uma espécie de performance”, declarou ao Le Monde Eric Mézil, diretor do museu e curador da exposição. Quando se instaurou o processo, em outubro, veio a conta: Yvon Lambert pediu os 2 milhões do valor da obra; o museu, 20 mil euros, por ter sido obrigado a retirar a peça da exposição e haver se tornado vítima de um escândalo midiático; já o artista americano, que não fez declarações à imprensa, se contentou com 1 euro simbólico.
O caso ganhou visibilidade nacional e Rindy Sam foi a Paris para participar do programa On n’a pas tout dit, um dos mais populares da TV francesa. Diante do marasmo do verão, a controvérsia do beijo na tela branca deu algum colorido às páginas dos jornais, que até então se viravam com as polêmicas sobre doping no Tour de France (o crime foi anterior ao affaire Sarkozy/Carla Bruni). Quando o caso foi a julgamento, o Tribunal Correcional de Avignon parecia mais concorrido. Ao ser chamada para depor, Sam resumiu tudo numa frase: “Eu só dei um beijinho!” Em seguida, referiu-se ao ato ora como um gesto de amor, ora como um gesto artístico.
A parte lesada não se comoveu. A advogada das vítimas afirmou que o gesto não passava de um “vulgar beijo de sanguessuga”. Para defender os direitos de Cy Twombly e Yvon Lambert, a causídica comparou diversas vezes Rindy Sam a Pierre Pinoncelli, o francês que, em nome da arte, por duas ocasiões (1993 e 2006), martelara o urinol de Duchamp, chegando até – horreur! – a urinar nele. A advogada, convencida de que Sam só queria seus proverbiais minutos de fama, explicou que vândalos não são co-autores das obras que danificam e lembrou que Pinoncelli fora condenado nas duas vezes em que avançara sobre a Fonte de Duchamp. Contestando o “gesto de amor” de Rindy Sam, declarou: “No amor, é preciso duas pessoas que consintam”.
O defensor público insistiu na tese da espontaneidade: “Se você dá uma martelada num urinol ou soca um quadro, sabe que vai destruí-lo. Não é o caso de um beijo”. Criticou duramente Pierre Pinoncelli, dizendo que, à diferença de sua cliente, que nunca vendera nem pretendia vender o que pintava, o que o vândalo do urinol havia pretendido era se promover com a martelada no ready-made de Duchamp. Subitamente, do fundo do tribunal, ouviu- se um brado: “Mentira! Mentira!” A sala inteira se virou e deu de caras com um velhinho careca, de bigode e camisa social cor-de-rosa: “Quem você pensa que é para dizer isso?” Era o próprio Pinoncelli, hoje com 78 anos, que viajara até Avignon para assistir ao julgamento.
Duas semanas depois, preocupados com a simpatia despertada por Rindy Sam, os responsáveis pela Coleção Lambert organizaram uma exposição intitulada Não dou beijos, uma referência ao universo da prostituição. Sam foi condenada a cem horas de trabalho voluntário. Além disso, terá de pagar 500 euros ao museu e outros 1000 euros ao próprio Yvon Lambert. A restauração que devolverá a tela à sua virgindade original foi orçada em 33 400 euros. Em 28 de fevereiro, a moça do batom saberá qual parte desse valor sairá do seu bolso. De certo mesmo, Rindy Sam decidiu que nunca mais entrará num museu.