Bosi com Pedro Meira, num passeio no Central Park, em 2008: ele relutou em visitar os Estados Unidos, mas, depois de se certificar de que Bush deixaria a Casa Branca, cedeu ao convite CREDITO: ANDRÉA DE CASTRO MELLONI_2008
Crítica com alma
Alfredo Bosi, sua obra e seu último aceno
Pedro Meira Monteiro | Edição 177, Junho 2021
Não é fácil deletar o endereço de quem morreu. Fico pensativo, como se houvesse o risco de varrer a pessoa da memória. Por estes dias topei com o nome de Alfredo Bosi (1936-2021) e quando vi a anotação ao lado do e-mail não tive coragem de apagá-la. Eram as instruções enviadas por ele há mais de vinte anos, quando nos convidou a visitar a chácara em que então morava com sua mulher, Ecléa Bosi (1936-2017), em Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo: sair da Rodovia Raposo Tavares, entrar pela Rua Basileia, manter-se à direita, entrar na Zurique e, quando chegar, escreveu ele, “tocar o sino”.
Era a primeira vez que os visitávamos, e o sino parecia uma declaração de princípios. Ali seríamos recebidos como os viandantes eram acolhidos nos mosteiros. A simplicidade franciscana do lugar era comovente (“comovente” é uma palavra que Bosi utilizava muito). A casinha de tijolos ficava no fundo do terreno, com um pequeno campo de futebol para os netos na frente e as plantas que Ecléa cultivava espalhadas por todos os cantos. Jamais esquecerei da cozinha, que tinha um ar de roça, as louças de ágata, lajotas no chão, móveis de madeira e a luz que, coalhada pelas cortinas, parecia nos transportar a outra época.
Conta-se que, aos 3 anos de idade, Simone Weil recusou um anel que lhe deram de presente, dizendo que não gostava de luxo. Ecléa narra a cena em sua introdução a uma antologia de ensaios da filósofa francesa. O pequeno relato diz muito sobre o casal Bosi: Proscrito o luxo, o que resta? Quem somos sem possuir?
Num de seus textos, Alfredo Bosi discute a ideia de “atenção” desenvolvida por Weil, para quem a vitória sobre a “coisificação” do mundo seria possível apenas com uma mente liberta das paixões, capaz de dar primazia “às figuras e às suas propriedades geométricas”. Com a imaginação livre das dispersões subjetivas, nos desfaríamos do cativeiro das veleidades pessoais, descobrindo-nos prontos à ação transformadora, de modo a recusar as engrenagens da máquina social.
Essa intrincada noção filosófica, que desconfia do amor por aquilo que possuímos, pretende fundar um mundo em que o império das coisas seja combatido. Nem por isso deveríamos deixar de prestar atenção às coisas; podemos observá-las como quem ama a graça de um mundo que não pertence a ninguém. Em outro texto, Bosi sugere que Simone Weil seguia as ideias de seu mestre Alain quando imputava ao artista a capacidade de reconhecer “as formas, as dimensões e o peso do real, tudo o que a natureza apresenta como lei imanente”.
Lembro-me de outra cena, quando, em 2008, visitávamos juntos uma exposição de Giorgio Morandi no Museu Metropolitan de Nova York. Bosi parou diante de cada uma das naturezas-mortas do pintor italiano. Aumentados pelas grossas lentes dos óculos, seus olhos míopes miravam as garrafas envoltas naquela luz leitosa que tão bem conhecem os admiradores de Morandi. Enquanto caminhávamos, ele nos falava de uma forma de atenção que tornaria únicos os objetos, ao flagrar neles a sutil organização da matéria.
Como no caso de Simone Weil, para quem a abstração matemática era parte de um exercício de contemplação do universo, o olhar humano pode experimentar, diante do mundo material, uma interminável ordem de relações numéricas, que alguns chamariam de divina. Creiamos ou não no Deus em que acreditavam os Bosi e Simone Weil, o fato é que o mundo pode nos comover sempre que nos permitimos reverenciar sua ordem natural, evitando dominá-lo, mas recusando também nos deixar dominar por ele.
Caminhar pelo museu com Bosi me fez lembrar da sua cozinha em Cotia e o que ela encerrava: uma lição sobre a contemplação e o convite a estar no mundo sem desejar – ou talvez mesmo sem precisar – possuí-lo.
Alfredo Bosi nasceu em São Paulo em 26 de agosto de 1936. Filho de mãe italiana e neto de italianos por parte de pai, ele costumava recordar uma cena de infância, quando, auxiliando a mãe costureira, ia atrás dos botões que caíam sob a mesa, além de desempenhar toda sorte de tarefa mínima que as mãos pequenas lhe permitiam. A cena faz pensar no contrário do trabalho fabril que, no início do capitalismo, reservava às crianças as tarefas perigosas de que os grandes não davam conta. Imaginar o menino Bosi junto à mãe trabalhadora evoca uma aconchegante manufatura doméstica.
O trabalho manual nunca saiu do seu horizonte crítico. Num texto escrito em meados da década de 1970, há uma seção intitulada Os Trabalhos da Mão. Dedicada a Ecléa, trata-se de uma louvação ao labor manual, espécie de rosário de pequenas e grandes tarefas:
A mão tacteia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.
Acusa com o índex, aplaude com as palmas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.
Mede com o palmo, sopesa com a palma.
E, mais adiante:
A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos: risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: e tece e urde e borda.
Mas o que fazem as mesmas mãos no tempo das fábricas? A seção é arrematada com uma pergunta lancinante:
Na Idade da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido as finíssimas articulações com que se casava às saliências e reentrâncias da matéria? O artesanato, por força, recua ou decai, e as mãos manobram nas linhas de montagem à distância dos seus produtos. Pressionam botões, acionam manivelas, ligam e desligam chaves, puxam e empurram alavancas, controlam painéis, cedendo à máquina tarefas que outrora lhes cabiam. A máquina, dócil e por isso violenta, cumpre exata o que lhe mandam fazer; mas, se poupa o músculo do operário, também sabe cobrar exigindo que vele junto a ela sem cessar: se não, decepa dedos distraídos. Foram 8 milhões os acidentes de trabalho só no Brasil de 1975.
Nesta nossa era da informação, talvez o cenário fabril descrito por Bosi pareça ultrapassado. Contudo, eu gostaria muito que ele e Ecléa tivessem vivido para assistir ao magnífico Nomadland. As cenas da personagem principal caminhando pelos corredores dos gigantescos depósitos da Amazon não deixam dúvida: as mãos seguem agindo “à distância dos seus produtos”. As tomadas do filme de Chloé Zhao confirmam aquilo que o próprio Bosi escreveu, num livro publicado em 2010:
Não é difícil supor o que Simone Weil diria da condição operária em nossos tempos marcados pelas conquistas espantosas da automação misturadas com não menos espantosas recaídas nas malhas das grandes redes financeiras. Algumas de suas profecias realizam-se sob nossos olhos alarmados. Se a proporção dos trabalhadores industriais caiu em relação aos empregados em serviços e aos funcionários, alterando o quadro numérico das classes sociais, a clivagem política entre os que mandam e os que executam preservou uma desigualdade pungente na esfera da participação nos órgãos decisórios dentro e fora dos aparelhos estatais.
Em outro texto dos anos 1970, intitulado Poesia Resistência, o labor poético é tido como forma sutil de luta, mas que na modernidade arrisca fechar-se para o mundo, encerrando-se sobre si mesmo. Nota-se no ensaio uma questão mais pontual, não de todo explícita: Bosi o redigia ao tempo em que, no Brasil, a poesia concreta ia ganhando relevo. Lembro dele me contando do dia em que conhecera um dos grandes nomes do concretismo. Mais tarde ele apreciaria um livro como Não: Poemas, de Augusto de Campos, mas naqueles anos havia um desconforto com a ideia de que a poesia pudesse ter sua principal fonte nos jogos de linguagem encerrados no próprio poema. É assim que leio sua exclamação, no mesmo texto, e que seria matizada depois: “A poesia moderna foi compelida à estranheza e ao silêncio. Pior, foi condenada a tirar só de si a substância vital. Ó indigência extrema, canto ao avesso, metalinguagem!”
Ou seja, algo mais importante se agitaria fora dessa coisa que é o poema, com seus espelhamentos e ecos internos tão caros a certa poesia moderna. Algo vital, anímico, humano: um sopro que não se encontra senão no interior de cada um.
Sob uma árvore na Cidade Universitária, na Zona Oeste de São Paulo, conversávamos acaloradamente sobre Roland Barthes, quando me dei conta de como era insuficiente para ele a metáfora criada pelo crítico francês sobre a “morte do autor” (a noção de que deveríamos nos voltar para as infinitas potencialidades do texto, sem perder tempo perguntando pela intenção de quem escreve).
Entender a postura de Bosi diante dos textos é compreender sua crença na alma como motor primeiro das mãos que escrevem. A literatura exige que sondemos os tormentos, desejos e fantasias do escritor. Na contramão dos debates teóricos dos anos 1970, interessava a Bosi despertar o autor de sua “morte” artificial, buscando nele (ou nela) a fonte do que pode ser e ter sentido nos textos.
Bosi torcia o nariz quando alguém o identificava como “crítico católico”. Num universo dominado pelo pensamento materialista, como era e ainda é o meio acadêmico, raciocinar em termos de “alma” pode soar anacrônico, quando não equivocado. De fato, reduzir sua crítica à religião é uma barbaridade. Mesmo assim, sua posição como um dos maiores críticos literários brasileiros pode ser mais bem compreendida se tomada em conta a militância religiosa.
Próximo de dom Paulo Evaristo Arns e amigo de Frei Betto, certa vez Bosi me contou – com os olhinhos sorridentes e uma fala rápida que o tornava ainda mais engraçado – a “verdadeira” gênese da Teologia da Libertação: como um Macunaíma pequeno e malandro, dom Hélder Câmara teria agido nos intervalos das discussões do Concílio Vaticano II, nos anos 1960, trocando sorrateiramente os papéis dos conciliares por textos do padre Lebret, que pregava a opção pelos pobres, no espírito ecumênico que daria o tom da Igreja progressista na América Latina, naqueles tempos de Guerra Fria e regimes violentos apoiados pelas grandes potências.
Saí de sua casa rindo por dentro, imaginando o baixinho dom Hélder mexendo nas pastas dos colegas no Vaticano, olhando para os lados para evitar ser flagrado naquele santo delito.
A crítica de Bosi contempla tanto as condições materiais quanto a alma. Em seu horizonte, está a exploração do trabalho como também a dimensão interna do sujeito. Basta observar sua formação acadêmica e logo se entende como tal junção é possível.
As raízes ítalo-brasileiras o ajudaram na graduação em letras neolatinas, em meados dos anos 1950, na Maria Antônia, onde funcionava a antiga Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) antes que fosse transferida para o bairro do Butantã. Em sua maioria estrangeiros, os professores iniciavam os cursos analisando textos no original em francês, espanhol e italiano. Não havia ainda aquilo que se chamaria mais tarde de “sarampão estruturalista”, isto é, a prevalência do estruturalismo na análise dos textos e da cultura. Naqueles anos, atentava-se sobretudo para as imagens e os sentimentos despertados pela literatura; eram formas específicas de ler, voltadas para o sujeito, e que seriam mais tarde, como ele dizia, “sepultadas” pela força “antipsicológica” do estruturalismo.
Para além dos Fla-Flus teóricos, a literatura italiana o seduziu desde muito cedo. Bosi se sentiu em casa com Ítalo Bettarello, professor italiano que, logo na primeira aula, ensinou aos jovens ingressantes um trecho da Estética de Benedetto Croce. O rapaz de 20 anos se encantou pela ideia de buscar aquele fluxo íntimo que, segundo o filósofo italiano, ganharia sua forma sensível no poema. A noção do texto como expressão de uma verdade interior, como se cada palavra carregasse uma intuição subjetiva, viria a protegê-lo mais tarde das leituras reducionistas do marxismo, que foram legião nas décadas de 1960 e 1970.
Mas Bosi seria um leitor voraz também de críticos marxistas, que aliás deixam uma marca nos seus ensaios, perceptível naquela que talvez seja sua obra-prima: o premiado Dialética da Colonização, publicado em 1992. Foi porém na Itália, onde ele passaria um ano cursando pós-graduação na Universidade de Florença, entre 1961 e 1962, que a difícil equação entre o espírito e a carne, a alma e a matéria, seria resolvida.
Embora fosse especializar-se em estética e filosofia do Renascimento, Bosi partiu para a Europa com a ideia de escrever uma tese sobre a poesia de Jorge de Lima. Chegando lá, encontrou a academia italiana conflagrada, e o seu querido Croce duramente contestado por professores que, obedientes à ortodoxia do Partido Comunista, buscavam nos textos literários aqueles momentos em que a malha da ideologia se impõe, esmagando o sujeito que escreve, esvaziando-o de vontade própria. Para seu grande desalento, a explicação mecânica dos textos os reduzia às traves ideológicas que tolhem o autor.
Ou seja, não havia nenhum espaço para a dimensão “auroral” da poesia, que Giambattista Vico – uma das grandes fontes de Croce – supunha estar nos primórdios da linguagem, quando tudo é ainda fantasia, antes de cerrar-se em fórmulas racionais. Mas a ordem do dia era que os textos passassem pelo moedor da crítica ideológica, que destroçava o que houvesse de poesia neles.
Uma vez lhe pedi um exemplo dessa leitura determinista que tanto o incomodava. Bosi falou de Dante, cuja Divina Comédia se adapta perfeitamente à moral tomística medieval, com seus quadros de virtudes e vícios. As personagens são punidas de acordo com seus desvios, alocadas no círculo do Inferno que corresponde à paixão pecaminosa a que se entregaram em vida. Até aí, pura ideologia. Mas onde então buscar a poesia?
Reproduzo o que ouvi, numa longa entrevista que fiz, há pouco mais de quinze anos, e que tive a boa ideia de gravar: “Acontece que esses pecadores que estão lá, sendo punidos, penados, emocionam Dante, que chega com Virgílio e pergunta: quem são aqueles que vão lá, como pombas levadas pelo desejo? Aí então Virgílio chama os dois para conversarem, a pena fica suspensa, e os outros continuam, naturalmente. Há uma pena, e eles contam a sua história. Virgílio fica tão comovido que caddi comme corpo morto cade [caiu como o corpo morto cai – Bosi citava a língua de Dante fazendo um gesto expressivo com as mãos]. Ele desmaiou de piedade. Essa história que Dante conta – os desejos, as pombas e todas as metáforas do amor – e a relação profunda com o sujeito que conta, isto é poesia. O resto era uma estrutura necessária, e nós podemos polemizar se realmente aquele funil representava este ou aquele filósofo, se isso representava alguma coisa da sociedade da época, se podia ser um dado sociológico (palavra que não tem bonne presse para Croce).”
As leituras conflitantes ocuparam o jovem pós-graduando, que àquela altura vivia com Ecléa num apartamento muito frio, graças à avareza da proprietária que economizava com o aquecimento. Mas foi nesse momento, em Florença, que uma junção improvável começou a se dar em sua mente: de um lado, a situação histórica de cada autor, com seus condicionamentos e limites concretos; de outro, a possibilidade de que a poesia seja estudada como uma forma de resistência ao peso das determinações históricas. Só o impulso poético seria capaz de cavar, no espaço homogeneizado e acrítico da ideologia, um canto de significação plena, que poeta e leitor dividem com a mesma emoção. Quase intactos, os sentimentos podiam atravessar os séculos que nos separam de Dante.
Voltando ao Brasil, os Bosi se engajaram no projeto das esquerdas que se reuniam em torno de João Goulart. Logo começariam a colaborar com Brasil Urgente, o jornal dos dominicanos de São Paulo. Inspirado pelas ideias de frei Carlos Josaphat, o Brasil Urgente reuniu um amplo conjunto de vozes em defesa da justiça social, até que sua publicação fosse interrompida, logo após o golpe militar. A história do retorno dos Bosi ao país se mescla à história dos dominicanos, que na França já tinham se destacado na resistência à ocupação nazista, durante a Segunda Guerra, enquanto no Brasil se projetariam no combate à ditadura, a ponto de terem vários de seus membros torturados pelos algozes de 64.
No plano acadêmico, Bosi começou a escrever em italiano sua tese de doutorado, que seria apresentada em 1964 na própria USP. O tema era o teatro de Pirandello, cujos personagens atormentados tentam se libertar dos papéis sociais que lhes são impostos. Aí, me disse Bosi, “comecei a trair meu Croce…”. Isto é, ele ia armando um método que permitisse combinar os condicionamentos históricos à vontade de se livrar da máscara social que nos prende. A tensão entre liberdade e ideologia reapareceria em toda sua obra, na análise de autores tão diversos quanto o Padre Antônio Vieira e Machado de Assis.
O desafio do crítico literário seria enxergar o que se esconde por trás da máscara, de modo a flagrar o sujeito dividido entre o freio das ideologias e o desejo que, muitas vezes disfarçado, resiste no interior do indivíduo, no seu estilo de pensar e escrever. Trata-se daquilo que, mais tarde, Bosi identificará como uma desejada combinação entre “sentimento e práxis coerente”, advinda da leitura de críticos marxistas como Walter Benjamin e Theodor Adorno, que lhe permitiram redescobrir as “fontes hegelianas” do próprio Croce.
Vale a pena desdobrar tal ideia, para entender o que significa esse regresso às “fontes hegelianas” daqueles autores. Num capítulo do seu livro Ideologia e Contraideologia, que intitulou Parêntese Temerário: A Religião Como Alienação ou Como Desalienação, Bosi interrompe sua longa reflexão sobre o conceito de ideologia para voltar às fontes cristãs que Marx renegou, embora tenha erguido sua dialética histórica sobre elas. Lá estão Feuerbach, Kant e Hegel, sugerindo, de diferentes formas, que a vida moral leva à pergunta sobre Deus, não como ente individual, mas como uma espécie de força original do universo – aquele mesmo cosmos que talvez o crítico entrevisse nas formas plácidas, mas intrinsicamente complexas, de Giorgio Morandi.
Ou então, numa referência que lhe era ainda mais cara e que resultou no seu último livro, publicado em 2018, é nas pinturas de Leonardo da Vinci que poderíamos perceber a reverência à perfeita ordem matemática do universo, combinada à observação da ordem concreta do mundo que habitamos. O balanço entre a crença no além e no aqui e agora relativizava o idealismo neoplatônico prevalecente na corte florentina dos Médici, na qual Da Vinci se formara: “Os corpos vivos com suas formas e atos específicos são situados pelo neoplatonismo tradicional em um plano inferior, sujeito à divisão, à dor e à morte. Em Leonardo, ao contrário, tem-se a valorização artística e científica dessa mesma natureza.” Amor à matéria mundana, em suma, embora movido pelo amor a uma ordem superior.
Seja como for, a imaginação crítica de Bosi o levava a refletir sobre o “fim” da atividade humana, isto é, a razão mesma de nossa existência. O bocejo indiferente de autores não religiosos diante dessa questão jamais o convenceu. Ele era um estudioso atento de certo idealismo alemão, que está nas bases de seu admirado Croce: “Em Kant, Deus é um horizonte transcendental. Em Hegel, é a presença sempre viva e operante da autoconsciência divina no coração humano que dá sentido à encarnação cristã. A revelação, enquanto aparecimento, teria propiciado, histórica e racionalmente, o encontro do divino com o humano.”
Mas então o que fazer diante da literatura brasileira, e de seu autor predileto? Como encaixar Machado de Assis nesse esquema em que a existência busca um fim, uma razão última? Falei inúmeras vezes com ele a respeito da influência de Pascal – filósofo místico que ambos adorávamos – sobre Machado de Assis, ateu convicto. Era um paradoxo que nos interessava.
Bosi questionava o retrato que frequentemente se faz do autor de Dom Casmurro como um homem cético. É claro que ninguém postularia, a sério, um Machado de Assis abertamente militante, menos ainda crente. Ainda assim, algo há, em certas personagens machadianas, que nem mesmo o olhar cínico do narrador é capaz de apagar. Quem tenta fugir à órbita do favor no Brasil senhorial e escapar da sombra das classes dominantes tem um destino trágico nas suas tramas. É o caso de Eugênia, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: ao contrário do narrador bon vivant e mesquinho, ela vai terminar seus dias “triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa”.
Numa conversa sobre Machado, Bosi me falava de Eugênia, lembrando que sua passagem pela terra se dera como os “enterros pobres”. Naquele momento, seus olhos se encheram de lágrimas e ele não conseguiu terminar a frase. Algo travara sua garganta, e ficamos os dois a nos olhar, espantados com o peso daquela imagem.
Em agosto de 2014, Bosi me convidou a acompanhá-lo, com a família, a um colégio de São Paulo, para a homenagem aos quarenta anos do martírio de frei Tito de Alencar, dominicano que se suicidou no exílio, na França, depois de ser barbaramente torturado no Brasil, por seu envolvimento na luta contra a ditadura.
Lá estavam, entre outros, João Pedro Stédile e Frei Betto. O salão lembrava uma festa escolar, com banquinhas onde eram vendidos suvenires evocando a vida e a morte de frei Tito. Notei que Bosi me observava, curioso. Aproximando-se, sussurrou: “Você não está acostumado a esse tipo de ambiente, não é?”
Na verdade, não era um ambiente de todo estranho para mim. Embora nunca tenha sido praticante, estudei em mais de um colégio católico, e participei, na juventude, de eventos do Partido dos Trabalhadores, desses que lembram uma quermesse nos fundos da igreja.
Bosi falou de frei Tito, seus escritos e seu sofrimento nas mãos dos torturadores. É estranho reler suas palavras hoje, quando a apologia da violência se entranha nas instituições e na alma de tantos brasileiros. Erradicar a tortura e promover o “convívio cidadão”, dizia ele então, “é nosso ideal político”. Evocou também a mudança que, no início dos anos 1960, sacara “um alto número de cristãos do conformismo para animá-los a assumir um engajamento social e político que preconizava reformas estruturais e, no limite, aderia a um ideal revolucionário”.
Aí se descortinam os tempos em que, introduzidos pelos dominicanos, ele e Ecléa se envolveram com as comunidades eclesiais de base no entorno de São Paulo. Mas não se trata de sua única experiência de militância. Em Cotia, muito mais tarde, envolveriam-se bastante com a política local e também ambiental. Lembro da ternura com que Bosi me mostrava os panfletos preparados por Ecléa para distribuição nas manifestações contra a política nuclear, denunciando o horror de Fukushima. Eram de uma simplicidade tal que pareciam saídos de algum antigo mimeógrafo.
Num texto escrito para o Segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2002, há passagens muito bonitas sobre sua experiência, quarenta anos antes, com a leitura coletiva numa Pastoral Operária em Osasco. O livro escolhido foi Vidas Secas:
Aqueles jovens que no primeiro encontro guardaram um silêncio constrangido em pouco tempo soltaram as suas vozes, tímidas sim, mas vibrantes de promessas. Tendo vivido tantos anos apenas no limiar da escrita, aprenderam em algumas horas que nem toda escrita se parece com aquela conta de menos manipulada pelo patrão de Fabiano. Graciliano mostra como era aflitivo para o sertanejo ter de enfrentar a caderneta do patrão no final de cada contrato. […] os nossos jovens de Osasco descobriram, lendo Graciliano, a força da letra viva pela qual sopra o vento da crítica e se transmite um sentimento de perplexidade em face de um mundo iníquo, opaco, difícil de compreender.
De Graciliano a Gramsci, foi um passo. Seguindo as ideias de Paulo Freire e regido pela batuta amorosa de Alfredo Bosi, o grupo terminou se perguntando pelas razões da existência, da sua existência e do “sentido do cosmos, da vida e do homem”. Levando ao limite a ideia do filósofo italiano Antonio Gramsci de que toda pessoa é um intelectual, Bosi constataria mais tarde que a “situação econômica daqueles jovens os excluíra precocemente da educação formal, tirando-os da escola; mas o convívio na construção de um projeto comum lhes abria o mundo sem fronteiras da leitura e da escrita”.
O limite, o limiar, a fronteira: são imagens que atravessam sua obra. A cultura que chamamos de “popular”, ou semiletrada, avança para além de seus próprios limites e atinge o mundo das letras. Ela está no caráter híbrido das redondilhas de José de Anchieta tentando converter os tapuias, na sátira de Gregório de Matos descrevendo o cotidiano colonial baiano, ou no romantismo “selvagem” e “pré-social” de José de Alencar idealizando o mundo indígena. Está por tudo, como se um universo espiritual que existe “sob o limiar da escrita” forcejasse por aparecer em escritos cingidos pela ideologia, em autores jogados entre a genuflexão diante do poder e a escuta voltada para os dominados.
Lembro de discutir essa ideia com Robert Patrick Newcomb, hoje professor numa universidade na Califórnia. Em sua versão para o inglês, Sob o Limiar da Escrita virou Beyond the Pale of Writing. A bonita imagem consta tanto da edição que fizemos juntos de Colony, Cult and Culture, longo capítulo que se tornou livro numa coleção dirigida por Victor K. Mendes aqui nos Estados Unidos, quanto na edição completa da Dialética da Colonização, que Newcomb traduziu para a editora da Universidade de Illinois.
Bosi relutou em vir aos Estados Unidos, mas em 2008, depois de se certificar que George W. Bush deixaria a Casa Branca, cedeu ao convite. Seu encantamento foi tão grande quanto o desagrado que nutria por este país, que ele visitou pela primeira e única vez.
Em Princeton, conheceu o escritor argentino Ricardo Piglia e o ensaísta porto-riquenho Arcadio Díaz-Quiñones; em Nova York, passeamos pelo Central Park num dia luminoso de outono. Houve tempo para escolher um presente para Ecléa: umas meias baratíssimas compradas com todo amor numa farmácia local. Levou daqui um bóton da campanha de Obama, dado pelo historiador Jeremy Adelman. Ele me falou do poeta e crítico John Ashbery, que ele conhecia pela filha, também professora na USP, e conversamos sobre Bob Dylan, a cujo concerto ele assistiria mais tarde com os netos no Brasil, confessando-me depois que o “barulho” não o deixou ouvir sequer um verso.
Não me esqueço de quando fui buscá-lo no aeroporto e vi sua mala pequena e surrada. Para que não se confundisse às demais bagagens na esteira, Ecléa amarrara, em sua alça, um saquinho plástico de supermercado. A simplicidade oferecia um contraste ao ostensivo mundo do consumo norte-americano. Divertiam-no apenas as flores, as paisagens, as pessoas. Ao anoitecer, quando entramos em Manhattan de carro pela ponte do Brooklyn, o famoso skyline de Nova York o emocionou: “Este mundo que conhecemos pelo cinema!”, exclamou. Eu dirigia e no banco de trás iam Eliane Robert Moraes e Fernando Paixão. Foi um encantamento duplo: com a paisagem, mas também com o olhar maravilhado de Bosi.
Como para tantos de sua geração, era incontornável a zanga diante da cultura de massas. Nesse sentido, o tropicalismo jamais o seduziu, embora eu sempre o provocasse, defendendo o desrecalque diante dos grandes símbolos do capitalismo. Seja dito que Bosi reconhecia em Caetano Veloso um grande artista, especialmente depois que ganhou o álbum Muito, de 1978, das mãos de Zé Miguel Wisnik. Mas sua noção do popular apontava para algo anterior à própria mercadoria, num espaço ainda meio sagrado, resguardado das forças do sistema.
Novamente em São Paulo, recordo uma conversa com o músico Antonio Nóbrega e com o próprio Bosi, que carinhosamente o chamava de “nosso brincante”. Senti que ambos se preocupavam agonicamente com o apagamento do “popular”. Os três concordávamos ao menos num ponto: com maior ou menor ênfase, repetíamos argumentos de Mário de Andrade, o modernista que mais experimentou a angústia diante do desaparecimento das tradições originais das culturas populares no Brasil.
Na Dialética da Colonização, há uma passagem em que Bosi narra uma visita que ele e Ecléa fizeram em 1975 a nhá Leonor, uma senhora que oferecia uma festa a Santo Antônio, num bairro próximo à Rodovia Raposo Tavares. Chegando lá, assistiram a uma cena que os impressionou. Os fiéis, “quase todos mulatos de pé no chão e tresandando a pinga, e algumas mulheres menos mal-vestidas que os homens”, rezavam ave-marias e padre-nossos, até que o capelão começou a entoar a Salve Rainha num latim acaipirado:
“Espéco justiça” – ora pro nobis
(Speculum justitiae)
“Sedi sapiença” – ora pro nobis
(Sedes sapientiae)
“Rosa mistia” – ora pro nobis
(Rosa mystica)
“Domus aura” – ora pro nobis
(Domus aurea)
Os dois parágrafos que se seguem à notação da cantoria merecem ser lidos:
Espelho de justiça, sede da sabedoria, rosa mística, casa de ouro, estrela da manhã, arca da aliança, refúgio dos pecadores, consoladora dos aflitos, rainha dos anjos, rainha dos profetas, rainha da paz…, todos os atributos com que a piedade vem há séculos honrando a figura materna de Maria se cantaram na voz grave do capelão; depois, em primeira voz, pela preta alta que parecia improvisar a melodia com torneios de moda de viola e gestos a um só tempo compostos e arroubados de adoração; em segunda voz, pelos rapazes e pelos fiéis todos em um coral de arrepiante beleza.
Quando saí da capela perguntei ao mestre de reza quem lhe ensinara o ofício. Respondeu-me que seu pai, também capelão nos sítios de Sorocaba e Araçariguama. A noite estava gelada, a Lua ia alta, mas os caminhões de carga ainda rangiam pesados sobre o asfalto lá perto.
A seção em que aparecem estas palavras se intitula Uma Litania Cabocla na Grande São Paulo e expressa à perfeição uma ideia cara a Bosi: “A autonomia do culto popular em face da hierarquia oficial.” Contra a utilização do vernáculo na missa, aquele grupo “rearcaizava” o ritual católico, criando uma arte de fronteira em que o latim litúrgico medieval se combinava à moda de viola. Era como se todo o processo de colonização se embaralhasse e se revelasse na cena, mostrando que os pobres sobrevivem porque são capazes de dar sentido ao mundo por meio de práticas ainda não completamente submetidas à régua moderna. Trata-se de uma epifania em que o crítico se entrega à beleza daquilo que resiste à máquina devoradora da modernização.
Se me fosse dado reduzir tudo a uma fórmula, a trajetória intelectual de Alfredo Bosi se explica pelo desejo de se aproximar desse núcleo místico em que a expressão do dominado é a fonte mais pura do espírito, e motor secreto da própria literatura.
O ano de 1970 foi tempo de mudanças e dúvidas. Bosi ensinava literatura italiana, mas sentia que o Brasil o chamava. Anos antes, o poeta José Paulo Paes o convidara a escrever a História Concisa da Literatura Brasileira, que viria a ser sua obra mais conhecida e que aliás quase se perdeu quando Viviana e José Alfredo, seus filhos, jogaram os originais pela janela, para ver o movimento das folhas pelos ares. Bosi as recolheu, assustado, e teve que reescrever ao menos uma delas, que se perdeu. Não havia ainda computadores ou nuvem.
A cena foi lembrada recentemente pela filha, num pungente testemunho durante a missa de sétimo dia transmitida pelo Facebook da Paróquia São Domingos, no bairro de Perdizes, dos mesmos dominicanos que acolheram Alfredo e Ecléa na sua volta ao Brasil.
Quando me contou da opção por ensinar literatura brasileira a partir dos anos 1970, Bosi se confessou dividido. Como o crítico literário Antonio Candido, que dizia ser casado com a sociologia e amigado com a literatura, ele zombou, dizendo que, “não muito casto, eu era casado com a literatura italiana, mas tinha minhas seduções…”.
Enquanto pesquisava a história da literatura brasileira para escrever o livro, preparou sua livre-docência sobre Giacomo Leopardi, paixão que trazia dos tempos de estudante em Florença. A tese seria defendida em 1970 e daria o diapasão da nova fase profissional, voltada entretanto ao Brasil. O tema – mito e poesia em Leopardi – é o esteio das reflexões sobre a literatura como resistência, que marcariam suas aulas a partir dali e dariam uma primeira forma aos ensaios que viriam a compor, vinte anos depois, a Dialética da Colonização.
Os versos de Leopardi que mais o cativavam eram os da giesta, a flor que sobrevive próxima ao Vesúvio, “amante de lugares do mundo abandonados, e de infelizes fados companheira”. Quando recebeu o título de professor emérito da USP, em 2009, leu um texto que intitulou Gratidão e Memória, e cujo último parágrafo resume o que venho tentando dizer até aqui:
Machado não encontrou, como Pascal, que ele tanto admirava, o caminho da esperança transcendente, nem, como Leopardi, a flor da giesta rebrotando no deserto. Quanto a mim, descendo verticalmente de tamanhas alturas, confesso que fiz a aposta na crença de Pascal, e também que pedi a Ecléa que plantasse um pé de giesta em nosso jardim. A giesta ainda está lá, florindo e, espero em Deus, que por muito muito tempo.
Eu estava nesse dia no salão nobre da USP, completamente lotado. Sua voz quase desapareceu quando citou a giesta plantada no jardim de Cotia. Na primeira fila, toda a família o olhava, comovida.
O compromisso com o Brasil, modulado pelas inspirações italianas, seguiria vivo na sua forma de pensar e agir. No plano institucional, foi fundamental o trabalho junto ao Instituto de Estudos Avançados da USP, cuja revista (sua “menina dos olhos”, me disse) ele dirigiu por muito tempo. E não se pode esquecer a Academia Brasileira de Letras, que ele via com bastante ceticismo, mas à qual se juntou graças ao economista Celso Furtado e ao jurista Raymundo Faoro, que lhe rogaram que se candidatasse.
Lembro de um jantar que ele me ofereceu no antigo Hotel Glória, onde se hospedava no Rio de Janeiro quando ia às sessões de quinta-feira da Academia. Bosi conhecia todos os garçons e gostava especialmente de um deles, com quem costumava conversar sobre poesia.
A última vez que o vi foi em 2017, quando o visitamos no pequeno sobrado em que viveu com Ecléa desde que deixaram a chácara de Cotia, e onde esteve até que fosse internado com Covid-19, vindo a falecer no dia 7 de abril último.
O encontro, num desses dias frios e ensolarados de inverno paulistano, foi emocionante. Ecléa morrera praticamente em seus braços, semanas antes. Ele nos contou que ela preparava o filme a que assistiriam pela enésima vez, sobre os carbonários. Creio que era Nell’Anno del Signore, de Luigi Magni, com Nino Manfredi e Claudia Cardinale. Ela se sentiu mal, ele a levou ao quarto, ainda tentou fazer-lhe uma massagem cardíaca, mas foi em vão.
Bosi lembrava de Ecléa cantando naquela mesma manhã, com uma voz que ele descreveu como maviosa. Conversávamos no sofá e de repente ele prorrompeu num choro, cobrindo o rosto com as mãos. Abracei-o, minha esposa se aproximou de nós, e ali ficamos até que, recomposto, ele nos convidou a caminhar pela casa e subir para tomar sol. “Velho precisa de sol”, disse com o ar maroto que sempre me divertia.
No seu escritório, sobre os vidros de um velho armário, vimos os posters de uma homenagem que lhe prestou um colégio, que deu seu nome à biblioteca local. Num dos cartazes, um Bosi todo colorido nos olhava.
Sentamo-nos num pátio meio improvisado, no teto da casa. Com os olhos muito abertos e aflitos, Bosi nos falou sobre a distinção entre o Reino evocado nos Evangelhos e o Mundo. Ele perguntou como eu entendia a expressão “está no meio de vós”, com que Jesus, segundo Lucas, anunciou o reino divino aos fariseus. Estaria “no meio”, ou de fato “dentro” de nós? Busquei no Google a clássica versão King James da Bíblia, e vimos que nela se lê within you, expressão que acolhia ambas as interpretações.
Falou também da emoção ao ouvir Louvar, música de Zé Miguel Wisnik sobre poema de Cacaso, que o próprio Wisnik cantara na missa de sétimo dia de Ecléa. Ela adorava a canção, que termina com estes versos:
Louvar a chuva de criar
a água de beber
o tempo de viver
a casa de morar
Bem-vinda minha senhora
bendita nossa senhora
bem-vinda minha senhora
bendita.
Demorei a perceber que Bosi falava de uma ausência que era ao mesmo tempo presença: o reino distante e prometido, que talvez já esteja no meio de nós, e o desejado reencontro com Ecléa. Era para mim difícil entender, mas havia uma preocupação literal com a possibilidade de encontrá-la um dia, quando ele mesmo partisse.
Em breve ele não responderia mais aos e-mails e às mensagens que eu deixava na secretária eletrônica, que ficou ainda muito tempo com a voz de Ecléa, pedindo a quem a ouvisse que deixasse uma mensagem aos dois.
Como disse Viviana na missa dos dominicanos, ele se retirou aos poucos da vida, fechando seus sentidos, encolhendo o corpo e silenciando, numa espécie de ascese, num lento despedir-se. Morreu na pandemia, como que integrado a um “doloroso destino coletivo”.
Muitas coisas passaram pela minha cabeça naquele dia de agosto de 2017. Vê-lo sozinho era doloroso. O sino de Cotia, as lembranças, as risadas, tudo ficara para trás. Quando íamos embora, olhei pelo retrovisor e enxerguei Bosi ainda próximo, no portão, erguendo lentamente o braço para se despedir de nós, com lágrimas nos olhos. Eu não podia imaginar, mas ele sabia que era a última vez que nos víamos.
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