ANDRÉS SANDOVAL_2018
Crivella no gogó
Uma noite de aplausos para o prefeito
Luiza Miguez | Edição 142, Julho 2018
O folheto distribuído na entrada estampava a enseada de Botafogo repleta de barcos, com o Pão de Açúcar ao fundo. Um elemento insólito chamava a atenção em meio à paisagem familiar: em primeiro plano, um imenso obelisco despontava do topo do morro do Pasmado. Trata-se do Memorial às Vítimas do Holocausto, a ser erguido no Rio de Janeiro até 2020. Naquela noite de junho, cerca de 2 mil pessoas foram ao Centro de Convenções Sul-América, no Centro da cidade, para assistir a um show que arrecadaria fundos para a construção do monumento. Marcelo Crivella, prefeito da cidade e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, era a estrela do espetáculo.
Gabriel Lopes dos Santos, um camelô de 16 anos de Del Castilho, na Zona Norte da capital, não se arrependia dos 100 reais empenhados no ingresso. “Melhor que ficar em casa olhando para o teto ou gastar o dinheiro com crédito de celular”, argumentou. Quando Crivella entrou no palco e se pôs a pregar, antes de exibir seus dotes de cantor, Santos apontou o smartphone para ele e, agarrado a uma bandeira de Israel que recebera ao chegar, acompanhou emocionado o discurso sobre Abraão, “o pai dos judeus”.
Marcelo Crivella é o prefeito carioca com maior reprovação nos últimos 25 anos – 58% da população considera sua gestão ruim ou péssima, segundo a mais recente pesquisa do Datafolha. Naquela noite, porém, o político não ouviu os gritos de “Fora, Crivella!” que o perseguem por onde passa: eram só aplausos e gritos entusiastas, de um público majoritariamente negro e evangélico.
“A gente não vai pagar o memorial todo nesta noite”, ponderou o prefeito ao microfone. “Cada um está aqui hoje fazendo suas primícias”, continuou, referindo-se aos primeiros frutos que, conforme o Antigo Testamento, deveriam ser ofertados a Deus. A obra, orçada em 15 milhões de reais, será bancada por recursos privados. Além de promover o espetáculo beneficente, Crivella tem dito que doará 100 mil reais do próprio bolso. A organização do “Show da Solidariedade” não divulgou a arrecadação do evento.
Proposto originalmente em 1997, o projeto do monumento ficou na gaveta até que Crivella o ressuscitasse. A prefeitura doou o terreno do Parque Yitzhak Rabin, no topo do morro do Pasmado, em Botafogo, para a construção do obelisco de 22 metros, que simbolizará os dez mandamentos – com destaque para o terceiro, “Não matarás”. Longe de ser unânime entre os cariocas, a realização da obra foi criticada por interferir na orla da Baía de Guanabara. “É uma ameaça à preservação da paisagem como nós conhecemos”, disse recentemente a O Globo o geógrafo Rafael Winter Ribeiro.
Marcelo Crivella, o músico, tem mais de duzentas composições registradas no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, e já lançou dezesseis álbuns desde 1992. Sucesso entre o público consumidor de música gospel, suas vendas estão no mesmo patamar de outros fenômenos do gênero, como Thales Roberto e Aline Barros. Seu parceiro musical mais conhecido é Michael Sullivan, que assina com o bispo várias canções inspiradas no pop de louvor de grupos americanos como o Casting Crowns.
Aquele era o primeiro show de Crivella desde que assumiu a prefeitura, em 2017. Para a apresentação de quase duas horas, foram realizados sete ensaios, comandados pelo maestro peruano Lito Figueroa – que, antes de sua conversão evangélica, atuou com músicos como Mercedes Sosa, Sandra de Sá e Tim Maia. “O Crivella é mandão”, confidenciou o maestro à piauí. “Quando quer as coisas de um jeito, tem que ser do jeito dele.” Seu maior desafio é a afinação, segundo a avaliação do peruano: “Ele sempre teve ritmo, mas sai muito do tom.” Parece que melhorou bastante desde que começou a tomar aulas de canto, por recomendação sua.
Não é preciso ser maestro para entender as ressalvas de Figueroa. Apesar de acompanhado de um coro de cinco vozes, o prefeito desafinou em várias canções. À frente de uma banda com guitarra, violão, baixo, teclado, bateria e percussão, ele vestia um terno azul-marinho e camisa branca – o mesmo figurino que usava há mais de doze horas, num dia cheio de compromissos políticos.
O repertório combinou antigos sucessos e lançamentos mais recentes. Quem não tivesse familiaridade com as canções podia acompanhar as letras pelos telões nas laterais do palco. Graças à cola, o camelô Gabriel dos Santos entoou Altar do Holocausto, que ele nunca ouvira: “Deus proverá/Para quem lutar e mesmo exausto/Entregar a própria vida/No altar do Holocausto”.
Durante a apresentação foram projetadas imagens de judeus em campos de concentração nazistas – afinal, a noite era um tributo às vítimas do Holocausto. “Louvável!”, comemorou Herry Rosenberg, presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro, que ocupava uma cadeira logo à frente do palco, em meio a rabinos e outras autoridades judaicas.
Não é de hoje que as igrejas evangélicas neopentecostais vêm incorporando elementos do judaísmo a seus cultos. O Templo de Salomão – a sede da Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo – está repleto de símbolos judaicos. Por ocasião de sua inauguração, em 2014, o bispo Edir Macedo, ostentando vasta barba branca, usava quipá e talit. Pode-se estranhar que uma igreja cristã se aproprie de elementos de uma religião que não reconhece Jesus Cristo como filho de Deus. Os evangélicos, porém, veem os seguidores da Torá como o “povo escolhido” e exaltam a origem judaica de Cristo. O alinhamento de interesses foi celebrado por Rosenberg: “Existe também entre eles o respeito por Israel e a tudo que aconteceu conosco.”
O ponto alto da noite foi Vai Arrebentar, maior hit do prefeito, que a plateia cantou em uníssono. Empolgado, Crivella abandonou o microfone e deu pulinhos no ar. Quando, já no final do show, puxou a canção Aleluia Porque a Luta Continua, achou por bem incluir um comentário político: “Ainda mais nessa crise que estamos vivendo.” Anunciou que os espectadores ganhariam um broche com arame farpado e um ramo, uma clara referência ao Holocausto. Antes de se despedir, lembrou que os folhetos entregues antes do espetáculo informavam os dados de uma conta bancária, caso alguém quisesse contribuir ainda mais para a concretização do obelisco. “Esta noite vai estar registrada no céu”, arrematou.