“Quando o portador do distúrbio começa a perder o controle de si mesmo e das coisas, sua primeira reação é negar o que está acontecendo. A segunda é culpar a pessoa mais próxima por tudo o que dá errado”, diz o marido de uma doente FOTO: MEGHANANDREWSPHOTO.COM_HUNTINGTONSOCIETY.CA
Dançando no escuro
Um retrato da doença de Huntington – rara, hereditária e incurável
Mônica Manir | Edição 135, Dezembro 2017
Dinha mora na roça, mas já não parece ter noção disso. Deitada sobre uma poltrona reclinável, na varanda de uma casa térrea, mostra-se alheia às rosas púrpuras que se espalham pelos arredores. Também não reage às galinhas-d’angola que ciscam por lá nem ao cachorro Paçoca. Embora conserve a face corada sob os cabelos levemente grisalhos, está magra – pesa 50 quilos, se tanto, e mede 1,65 metro de altura, se muito. O braço direito e a perna esquerda permanecem rigidamente dobrados. As mãos se fecham em garra. Mal começa o alarido das visitas que chegam à fazenda, Dinha se agita. Irritada, emite sons guturais e franze o cenho, procurando Maria Paulino com o olhar. Quer silêncio. A madrasta limita-se a ajeitar a blusa de lã vermelha que recobre o corpo da enteada. O pai, na sala tomada por retratos de família, lamenta: “Essa é uma doença que anula a pessoa, mas não liquida. Tira a vida, mas não mata.”
Claro que o agricultor José Silva, de 86 anos, não deseja a morte da filha. Deseja, isso sim, a cura da doença de Huntington – enfermidade hereditária que atingiu sua primeira mulher e quatro dos seis herdeiros que teve com ela. Todos manifestaram cedo os sintomas tradicionais do distúrbio: tiques, dificuldade de fala, movimentos involuntários, depressão, agressividade, demência. O agricultor costuma dizer que não se morre de Huntington. No entanto, Dinha é a única entre os doentes da família que passou dos 50 anos. Fez 51 em outubro. Os demais morreram antes, em decorrência de complicações trazidas pela moléstia, como infecções e asfixia.
Um dos filhos de Silva – Luiz Fernando, o Gaúcho – liquidou o infortúnio por conta própria. Às vésperas de completar 35 anos, se matou tomando carrapaticida para gado. Estudos norte-americanos e europeus demonstram que o gesto extremo não é incomum. O número de suicidas nas famílias com Huntington revela-se até dezessete vezes maior que o da população em geral.
Batizada Aída, como a mãe, Dinha não mora numa roça qualquer. Ela vive na zona rural de Ervália, cidade mineira de 18 mil habitantes que se transformou num enclave da doença. A Associação Brasil Huntington – entidade privada, sem fins lucrativos – estima que o país registre, em média, 0,5 caso do distúrbio por 10 mil pessoas. No mundo, a taxa é um pouco maior: 1 por 10 mil, o que confere à enfermidade o selo de rara. Pelo critério da Organização Mundial da Saúde, consideram-se raros os males que acometem até 6,5 pessoas em 10 mil. Na pequena Ervália, a “terra do café”, a patologia afeta 7,2 habitantes por 10 mil.
Ali o Huntington assombra famílias numerosas, a maioria de ascendência lusitana. Os colonizadores portugueses, aliás, são provavelmente os responsáveis por trazer para o país o gene defeituoso, aquele que dispara o gatilho dos sintomas. A hipótese consta da tese de doutorado que o neuropsiquiatra Walmir Galvão defendeu na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. O médico concluiu que a moléstia se faz bastante presente nas localidades do Sul e Sudeste por onde os bandeirantes passaram. Ele não descarta, porém, a possibilidade de italianos, holandeses, espanhóis e alemães também possuírem um naco de participação nessa bagagem, já que a doença é mais comum entre os europeus ocidentais. Alguns ervalenses, principalmente os mais antigos, chamam o distúrbio de coreia. Não à toa. Em 1872, o norte-americano George Huntington descreveu o problema pela primeira vez num artigo intitulado “On Chorea” [Sobre a coreia]. Khoreía, em grego, significa “dança”. O médico de East Hampton, no estado de Nova York, assim nomeou a patologia por causa dos movimentos corporais aleatórios e involuntários que advêm dela. As vítimas observadas pelo especialista em sua cidade natal demonstravam “ações irregulares e espasmódicas de certos músculos”, que aumentavam gradualmente até se disseminar por quase todo o corpo. Um bailado incessante e descoordenado. “Um espetáculo que pode ser tudo, menos agradável de testemunhar”, resumiu Huntington, numa linguagem pouco afeita aos padrões acadêmicos atuais.
Publicado no prestigioso periódico Medical and Surgical Reporter, da Filadélfia, o artigo dizia que a coreia tende a aparecer tardiamente, em geral entre os 30 e os 40 anos do paciente. Também afirmava que a evolução da doença é lenta e se estende por cerca de duas décadas. Ressaltava, ainda, a propensão das vítimas “à insanidade e ao temperamento nervoso”. Por fim, apontava, “catastroficamente”, a impossibilidade da cura – o que prevalece até agora. George Huntington, seu pai e seu avô, todos médicos, nunca viram alguém se recuperar dos sintomas em East Hampton. “Uma vez iniciada, a doença se agarra a seu fim amargo”, lamentou o mais jovem dos Huntington.
O estudo do século XIX salientava um aspecto muito peculiar da moléstia: aqueles que a manifestavam poderiam passá-la aos descendentes. Já quem escapava da “maldição” livraria os próprios filhos (e consequentemente os netos) da sina. O médico norte-americano acertou quanto à primeira aposta. Hoje a ciência sabe que, se o pai ou a mãe apresenta os sintomas do distúrbio, seus rebentos possuem, cada um, 50% de risco de ter a doença de Huntington – conhecida pela abreviatura DH ou HD, Huntington’s disease, em inglês. No entanto, e essa é uma descoberta recente, quem não desenvolve sintoma algum ao longo da vida também pode transmitir a enfermidade aos filhos.
A família de José Silva exibe uma particularidade que foge à descrição do médico de East Hampton. Tanto a primeira mulher do agricultor, Aída Helena Fontes, quanto os herdeiros afetados apresentaram os sintomas iniciais quando ainda estavam na casa dos 20 anos.
Criança, Aída Fontes ganhou do irmão a alcunha de Lenquinha – homenagem à paulistana Maria Lenk, recordista mundial de nado de peito. Cognomes, por sinal, são uma marca de Ervália. No catálogo telefônico local, há 456 assinantes identificados pelo apelido: João do Culeca, Tonin do Café Hillux, Lidinha do Dim, Preto do Açougue…
A Lenquinha do Zé Silva era moça de missa diária. “Estudou, formou, tudo normal”, relembra o viúvo. O pai dela morrera de coreia, mas a jovem imaginava que havia escapado da sina. Até o nascimento do quarto filho, não desenvolvera nenhum dos sintomas paternos. No entanto, lá pelos 27 anos, os dedos de suas mãos começaram a mexer sozinhos, as pernas fraquejaram, a comida passou a se espalhar em volta do prato, a memória falhou e a raiva explodiu. Quando Lenquinha deu de sair sozinha, a esmo, o marido autorizou que lhe operassem a cabeça. “Ligaram um cano do pulmão ao cérebro, mas não adiantou nada”, conta o agricultor, sem conseguir explicar a cirurgia em detalhes. Cada vez mais debilitada, Lenquinha ficou dependente da cuidadora, Maria de Lourdes Paulino, que virou companheira de José Silva enquanto a paciente ainda vivia.
Com Paulino, o agricultor teve mais seis filhos, todos sem o distúrbio. O casal acabou acolhendo as três filhas de Lenquinha que sofriam de Huntington, incluindo Dinha, após os maridos as abandonarem na residência do pai. “Casamento deveria ser na saúde e na doença, mas…”, suspira a madrasta.
Em 2007, quatro pesquisadores da Universidade de Newcastle, na Austrália, analisaram o impacto da DH na rotina familiar. Eles notaram que, quando os sintomas da enfermidade despontam num dos cônjuges, o casal costuma estar na faixa dos 40 anos, com a carreira em ascensão e os filhos na pré-adolescência. Não raro, à medida que vai perdendo a independência, o parceiro afetado se mostra depressivo, ansioso ou agressivo e sucumbe ao consumo excessivo de álcool ou cigarro. “Famílias coesas se unem, mas as desorganizadas se tornam ainda mais caóticas”, conclui o estudo.
O jornalista britânico Phil Dourado viveu esse drama de perto. No livro Learning to Live with Huntington’s Disease: One Family’s Story [Aprendendo a Viver com a Doença de Huntington: Uma História de Família], ele conta que se separou da mulher doente, Sandy Sulaiman, por seis meses. Foi o tempo que levou para neutralizar a “sensação de pânico” e entender melhor o cenário de discussões infinitas, pratos quebrados no chão da cozinha, frustração e tristeza em que sua casa havia se transformado enquanto o distúrbio avançava insidiosamente sobre o cérebro de Sulaiman. Diagnosticada aos 40 anos, a também jornalista britânica – que hoje tem 57 – herdou a moléstia do pai. “Quando o portador da DH começa a perder o controle de si mesmo e das coisas”, explica Dourado, “sua primeira reação é negar o que está acontecendo.” A segunda é culpar a pessoa mais próxima por tudo o que ocorre de errado: dificuldades profissionais, contas no vermelho, caos doméstico. “O companheiro saudável não só precisa lidar com as consequências da doença como se converte em bode expiatório”, diz o jornalista.
Num artigo sobre a enfermidade publicado em 2015 e centrado em Ervália, a biomédica carioca Luciana de Andrade Agostinho constatou o retorno de muitos dos afetados às suas famílias originais depois que os respectivos parceiros – sobretudo maridos – os deixaram. O comportamento se repete em outras comunidades onde a coreia vigora.
Coordenadora do curso de biomedicina na Unifaminas, a cientista acompanhou pacientes de Ervália entre 2011 e 2016, enquanto integrava o projeto acadêmico Apoio Multidisciplinar aos Portadores da Doença de Huntington na Zona da Mata. Com a ajuda de alunos voluntários, ministrou palestras no município, orientou cuidadores e colheu o sangue de quarenta habitantes sintomáticos que aceitaram participar de um estudo genético. As amostras permitiram analisar o gene que desencadeia a enfermidade: o Htt. “Quando cheguei à cidade, tinha doente que falava comigo normalmente. Mas, ao me despedir, a única coisa que sobrou dos nossos contatos anteriores foi o olhar”, recorda Agostinho.
Descoberto em 1993, o gene Htt codifica a huntingtina, proteína essencial para os humanos por garantir o bom funcionamento do cérebro. Quando se comunicam uns com os outros, os neurônios – células do sistema nervoso central que conduzem impulsos elétricos – podem gerar produtos tóxicos. Daí a necessidade de substâncias protetoras fabricadas pelo próprio cérebro, como o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF, em inglês), cuja produção é facilitada pela huntingtina. Essas substâncias anulam a toxicidade resultante dos diálogos neuronais.
O gene Htt é formado pelo encadeamento de uma “matéria-prima” conhecida como trinucleotídeo CAG. A sigla CAG refere-se à citosina, à adenina e à guanina, compostos químicos que contêm nitrogênio. Considera-se normal o gene Htt que possui até 26 repetições CAG. O portador de genes que exibam entre 27 e 35 repetições não terá o Huntington, mas pode conceber um filho que o desenvolva. “Isso explica o primeiro caso em famílias sem histórico de DH”, afirma Mônica Haddad, neurologista no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Quando os genes apresentam entre 36 e 39 repetições, seu portador fica numa zona de penumbra. Pode manifestar o distúrbio em idade muito avançada ou nem chegar a tê-lo, mas amargará a possibilidade de legá-lo às gerações futuras. Quem dispuser de genes com quarenta ou mais repetições enfrentará a moléstia, exceto se morrer antes de os sintomas aparecerem. Quanto maior o número de sequências a partir de quarenta, aumentam as chances de o mal se pronunciar precocemente. Caso o portador seja do sexo masculino, maior será a tendência de ele passar mais repetições aos filhos e de estes desenvolverem a doença antes dos 20 anos (DH juvenil).
Um teste preditivo é capaz de medir com segurança o número de sequências CAG no gene Htt. Depois de fazê-lo, o historiador norte-americano Kenneth Serbin descobriu que se encontra no fio da navalha. “Quarenta. Eis o número de repetições gravado em cada célula do meu corpo. Lenta, mas inexoravelmente, causará danos às células do meu cérebro e me conduzirá ao momento em que ficarei parecido com minha mãe”, escreveu no blog At Risk for Huntington’s Disease [Sob o Risco da Doença de Huntington].
Durante sete anos, o professor da Universidade de San Diego se abrigou no espaço virtual com um pseudônimo em latim: Gene Veritas – “a verdade em meus genes”. Ali militou por mais visibilidade para a moléstia e, ao mesmo tempo, se esquivou do preconceito. Em 1995, quando comprovou que a mãe sofria do distúrbio, Serbin ainda não deslanchara na profissão. Era professor-assistente e não usufruía da estabilidade garantida aos professores-associados. Com medo de perder o emprego (e o plano de saúde), revelou para pouquíssimas pessoas que estava em xeque: “O que meus colegas pensariam se soubessem que um acadêmico tinha o cérebro geneticamente comprometido?”
Já beirando os 40 anos, em 1999, Serbin decidiu encarar o teste. Pretendia averiguar se um eventual filho dele com a historiadora Regina Barros, mineira de Itabira, correria o risco de desenvolver a patologia. O casal se conheceu há quase três décadas, num restaurante do Rio de Janeiro, por insistência de uma amiga em comum. O norte-americano, especializado em história brasileira contemporânea, fazia doutorado sobre o papel do clero durante a ditadura militar de 1964. O assunto, mais tarde, serviu de mote para alguns de seus livros, como Diálogos na Sombra. Tomar consciência de que seus genes possuem quarenta repetições CAG devastou o pesquisador.
“Muita gente realiza o exame na esperança de um resultado negativo”, diz Maria Gorette Nunes Marques, uma das fundadoras da Associação Brasil Huntington. Como ainda não existe tratamento preventivo nem cura para a doença, defrontar-se com o teste equivale “a consultar um oráculo sobre o futuro, mas sem nenhuma possibilidade de intervir nele”, compara Mônica Haddad, a neurologista do Hospital das Clínicas. Daí haver protocolos internacionais com recomendações para pessoas pré-sintomáticas que desejam se submeter ao exame. Aconselha-se, por exemplo, que não ajam por impulso e que, antes, consultem um geneticista. O médico deverá lhes informar não só as características da doença como suas implicações sociais e psíquicas. As diretrizes também sugerem acompanhamento psicológico dos candidatos ao teste. Apenas os maiores de idade podem recorrer à avaliação sanguínea.
Tais precauções passaram bem longe de Thirteen, personagem do seriado House, interpretada pela atriz Olivia Wilde. No último episódio da quarta temporada, abatida com a morte iminente de uma jovem colega, a médica é encurralada pelo chefe. O misantropo Gregory House a acusa de não encarar o fato de estar em risco para a DH, já que a mãe dela morreu em consequência do distúrbio: “Você lida com isso não lidando com isso!” Thirteen resolve colher o próprio sangue e realizar o exame, que dá positivo. A doutora amassa o resultado, apaga a luz da sala onde o imprimiu e destrambelha nos capítulos seguintes.
Desde que assumiu a enfermidade publicamente, em 2012, Kenneth Serbin enfatiza a importância do teste preditivo. Hoje, aos 57 anos, o historiador continua assintomático e ressalta que saber da doença o levou a cuidar mais da saúde. Ele caminha e nada com frequência. “Atividades aeróbicas já se mostraram capazes de retardar o mal de Alzheimer e o de Parkinson. Por isso, recomendo às pessoas com risco de DH que as pratiquem”, diz Mônica Haddad. Serbin também medita, toma suplementos, não exagera no álcool e faz psicoterapia há quase vinte anos. Tudo para estar o mais inteiro possível se os sintomas eclodirem e para acompanhar o crescimento de Bianca, a filha que resolveu ter com Regina Barros.
Aos quatro meses de gestação, o casal autorizou testarem o feto. O aborto, permitido nos Estados Unidos, passou pela cabeça dos pais. Na loteria dos 50%, porém, seu “bebê milagre”– como chamam a garota – nasceu saudável.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não propicia o exame genético para a doença de Huntington. O que existe de graça é a oferta limitada do teste em certas faculdades públicas, como a Unicamp, normalmente com fins de pesquisa. Escudados por um pedido médico de qualquer especialidade, alguns laboratórios privados aceitam colher a amostra sanguínea e chegam a franquear o resultado para o paciente pela internet, sem nenhum suporte psicológico, o que contraria os protocolos internacionais. Em São Paulo, os preços do exame variam de 320 a 3 400 reais.
Nascido e criado em Ervália, Francisco José de Mattos Godinho, o Chicão do Godinho, fez o teste por conta própria. Sem pedido médico, conseguiu que um laboratório particular do Rio analisasse seu sangue. Com o resultado em mãos, disse à irmã que tinha uma boa e uma má notícia. A má é que possuía 41 repetições CAG. A boa é que a irmã “já estava treinadinha” e podia cuidar dele mais para a frente. Aos 48 anos, Chicão – funcionário da Prefeitura de Ubá, a 65 quilômetros da cidade natal – já sente que dois dedos da mão esquerda não respondem como antes e que seu andar ficou um tanto trôpego. Ele também se percebe mais impaciente.
“Não existe boa notícia para as famílias com Huntington”, diz Maria de Lourdes Mattos Godinho, a Maria Godinho, irmã de Chicão, enquanto pinça com um palito as fatias de batata-doce que assou com páprica. Por quase uma década, a mineira de 57 anos zelou pela mãe acamada, que dividia o leito com o marido, doente do coração. “Minha mãe foi a única, entre os nove irmãos, que aceitou a DH logo de cara”, conta a filha. “Tinha uns 45 anos, caía de vez em quando e sentia dificuldade para se alimentar, mas os parentes insistiam que era tudo coisa de sua cabeça.” Ela morreu em 2014, cinco meses depois do parceiro.
Maria Godinho – cujo pai a chamava, meio brincando, meio a sério, de “escrava da mais alta qualidade” – aprendeu na prática o que poderia amenizar a deterioração física da mãe. Para evitar o mau cheiro nas mãos constantemente fechadas, criou uma mistura à base de neomicina, cetoconazol e acetato de dexametasona, que aplicava nas dobras. Para refrear escaras, besuntava o corpo franzino da paciente com muito hidratante e óleo de girassol. Também comprou uma esteira massageadora, que ajudava a soltar a secreção acumulada nas vias respiratórias. Queria proteger a mãe de pneumonias recorrentes.
Professora de educação física aposentada, Maria Godinho não se encontra na mira da doença. Seu teste preditivo acusou baixíssimas repetições. Isso, no entanto, está longe de animá-la. Estudos franceses com indivíduos cujos exames para Huntington deram negativo demonstram que 28% deles apresentaram depressão após o resultado. “Quem se sentiria feliz sendo o remanescente de uma catástrofe familiar?”, indaga Mônica Haddad. Esse quadro depressivo ganhou o nome de síndrome do sobrevivente.
Em 2010, 33 pessoas com chance de portar a DH responderam questionários sobre o teste para uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia. Dessas, apenas duas aceitaram realizar o exame e somente uma buscou o resultado. “Na América Latina, seja por motivos culturais ou religiosos, seja pela falta de informação ou dificuldade de acesso a bons laboratórios, o número de indivíduos em risco que se submetem ao teste pré-sintomático é menor do que na Europa e América do Norte”, aponta Haddad.
Se antigamente havia profissionais que diagnosticavam a DH como “doença dos nervos”, muitos médicos de hoje apostam no mal de Parkinson quando batem o olho nos movimentos involuntários dos pacientes. “Não tem nada a ver uma coisa com a outra”, alerta o neurologista Luís Furtado, especialista em patologias raras.
O Parkinson, ele explica, se caracteriza por tremores localizados, normalmente nas extremidades das mãos, e conduz à rigidez muscular ou à paralisia – por isso, a “face em máscara”, o semblante sem expressão dos atingidos pelo distúrbio. Já o Huntington provoca movimentos musculares constantes e aleatórios, além dos tiques no rosto e de um riso sardônico, que parece desconectado de sentido.
Frequentemente, nos consultórios, também se confunde a DH com o mal de Alzheimer. “Ambos trazem demência, ambos são neurodegenerativos, mas é só”, esclarece Furtado. Enquanto no Alzheimer a perda da memória recente se manifesta desde o começo, na doença de Huntington as lembranças se mantêm até as fases mais avançadas do declínio cognitivo. Os sintomas motores, por sua vez, percorrem caminho inverso. Costumam ser exuberantes nos primórdios da doença de Huntington e tendem a surgir tardiamente no Alzheimer.
Por causa dos diagnósticos desencontrados que alguns de seus familiares receberam no início dos sintomas, José Silva não acredita na possibilidade de a medicina vencer a DH. Prefere apostar no escapulário com fio de náilon que carrega no pescoço e no oratório que montou sobre uma cômoda, no quarto de dormir. São Geraldo, santo Expedito e Nossas Senhoras se espalham pelo altar, que ainda carece de um santo Antônio, em quem o agricultor também crê fervorosamente.
Silva arrasta os chinelos até a cabeceira da cama para mostrar a mais nova aquisição do seu acervo: um terço de rosas que ganhou de Maria Auxiliadora de Mattos Lopes, a Dorinha, tia de Maria Godinho por parte de mãe. O rosário veio diretamente do Vaticano.
Com três sobrinhas, uma delas portadora da enfermidade, Dorinha esteve na audiência dedicada à DH que o papa Francisco ministrou na Santa Sé, em 18 de maio passado. O historiador Kenneth Serbin também compareceu, junto da mulher, da filha e da sogra. A cerimônia reuniu aproximadamente 1 500 pessoas, oriundas de 26 países – todas em solidariedade à América do Sul, onde o alto número de casos vem intrigando a comunidade científica. Na região do lago de Maracaibo, na Venezuela, são cerca de 70 por 10 mil habitantes. Na província peruana de Cañete, registram-se 40 por 10 mil. No Brasil, a cidade alagoana de Feira Grande exibe a taxa de 11 por 10 mil. Uma das hipóteses para o fenômeno é a grande ocorrência de casamentos consanguíneos em parte desses redutos. Até agora não está claro se tais uniões acontecem por desinformação sobre a amplitude do distúrbio ou pelo fato de não parentes evitarem se ligar às famílias “marcadas”.
Como a maioria dos presentes na audiência papal, Dorinha usava um lenço branco nas costas, com a frase “Oculta nunca mais” em três idiomas: inglês, espanhol e italiano. Além de congregar doentes e seus familiares, o encontro pretendia chamar a atenção para um mal quase invisível. “A doença de Huntington é uma aflição terrível. Seus sintomas e sua natureza genética a tornaram uma das enfermidades mais devastadoras já conhecidas pela medicina”, escreveu a senadora italiana Elena Cattaneo na carta dirigida ao papa em que pleiteava o evento. “Durante séculos, as famílias afetadas vêm suportando um peso a mais: […] a vergonha de admitir a existência da patologia. Como resultado, são ignoradas pelo mundo e, não menos importante, pela própria Igreja.” Neurobióloga, a senadora vitalícia leciona na Universidade de Milão, e seu foco de estudo é justamente a DH.
A audiência de maio se deu pela manhã, na Sala Nervi, um auditório do Vaticano. O papa falou em italiano, com tradução simultânea: “Eu os encorajo a sentir que não estão sozinhos e a não ceder à tentação da vergonha ou da culpa.”
Segundo a neurologista Mônica Haddad, muitos dos atingidos direta ou indiretamente pelo Huntington procuram escondê-lo não apenas por receio do preconceito, mas por alimentar o pensamento mágico de que “a doença deixará de existir se não falarmos dela”. Vários parentes das vítimas esquivam-se de mencionar o assunto à mesa e nas reuniões de domingo ou mesmo revelar aos filhos os riscos que estão correndo. Cultivam um silêncio que pode atravessar gerações.
Na Sala Nervi, assistindo à audiência de Francisco, também se encontrava o geneticista Michael Hayden, um dos retratados no livro 50 Canadians Who Changed the World [50 Canadenses que Mudaram o Mundo], do jornalista Ken McGoogan – a lista inclui o ex-primeiro-ministro Pierre Elliott Trudeau, o compositor Leonard Cohen, o pianista Oscar Peterson e o economista John Kenneth Galbraith. Além de atuar como pesquisador no Centro de Medicina Molecular e Terapêutica e dar aulas na Universidade da Colúmbia Britânica, ambos em Vancouver, Hayden trabalha para uma indústria farmacêutica israelense, a Teva, onde é diretor científico. Seis semanas antes da cerimônia no Vaticano, a empresa festejou a aprovação da deutetrabenazina pela Food and Drug Administration, agência que regula o consumo de alimentos e remédios nos Estados Unidos. A droga de uso oral, que a companhia registrou sob o nome comercial de Austedo e que acabou de entrar no mercado norte-americano, promete diminuir os movimentos involuntários da coreia sem os efeitos colaterais trazidos por medicamentos similares, especialmente a depressão.
Outra droga que anima os portadores do distúrbio – essa em fase de análise – se chama Ionis-HttRx. Trata-se de um oligonucleotídeo antisentido (ASO), molécula que transporta material genético modificado diretamente para o sistema nervoso central. A proposta é que o ASO altere o gene Htt, neutralizando as repetições CAG excessivas. Os 36 pacientes monitorados na primeira fase da experimentação, todos sintomáticos, receberam injeções da substância diretamente no liquor, fluído cristalino que ocupa o espaço entre o cérebro e o crânio, além de banhar a medula espinhal. Vinte e sete deles carregavam no corpo o produto ativo e nove, o placebo. A segunda etapa do estudo, deflagrada há pouco tempo, engloba 144 pacientes. Cientistas do Reino Unido, Canadá e Alemanha participam da iniciativa.
A CHDI Foundation – organização sem fins lucrativos bancada por três filantropos que preferem o anonimato – repassou 10 milhões de dólares para a empresa californiana Ionis, responsável pela pesquisa. Ao longo de quase duas décadas, a fundação já aplicou 700 milhões de dólares em estudos sobre a patologia.
“Trabalho com a DH há mais de trinta anos e nunca vi uma época tão promissora”, vibra Mônica Haddad. É a primeira vez, informa a neurologista, que terapias de modificação genética relacionadas à doença conseguem chegar a testes em seres humanos. Ela lembra que a clínica Wave Life Sciences, de Massachusetts, deverá iniciar em breve novos experimentos com terapias do gênero: o Precision-HD1 e o Precision-HD2.
No prédio envidraçado do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, na Universidade de São Paulo, o sol tênue de junho aquece a rampa interna que leva à sala de Mayana Zatz. Para a geneticista israelense, radicada no Brasil desde 1955, uma das experimentações mais auspiciosas na luta contra o Huntington é a CRISPR-Cas9. A técnica lança mão de uma enzima fabricada pelo Streptococcus pyogenes, bactéria conhecida por causar infecção na garganta. Tal enzima, a Cas9, tem a capacidade de funcionar como uma tesoura e encurtar os genes Htt das pessoas sob risco de manifestar a doença, eliminando deles as repetições CAG que os tornam daninhos.
Apresentada na revista Science por duas mulheres, a norte-americana Jennifer Doudna e a francesa Emmanuelle Charpentier, a técnica também poderia cortar o mal pela raiz. Ou melhor: ser empregada diretamente nas células-tronco embrionárias, em casos de reprodução assistida, o que impediria a transmissão da DH para outras gerações. “Qual a alternativa hoje em dia? Descartar o embrião que traz a mutação”, argumenta Zatz, referindo-se a uma prática comum nas fertilizações in vitro. “Graças à nova técnica, será possível evitar o descarte. Teremos a chance de consertar o que está errado no embrião com problema. Concorda que a Igreja Católica vai gostar dessa ideia?”
Não se sabe se a CRISPR-Cas9 faz parte do repertório de Francisco. Mas, durante seu pronunciamento na Sala Nervi, o Sumo Pontífice não pareceu muito simpático às terapias com células-tronco embrionárias nem à fertilização in vitro, independentemente do uso que se lhes dê. Quando se dirigiu aos cientistas presentes, rogou: “Deus ilumine a missão de vocês.” Em seguida, advertiu: “Eu os encorajo a persegui-la [a missão], mas sempre com meios que não contribuam para alimentar essa ‘cultura do descarte’ que às vezes se infiltra até no mundo da pesquisa científica.” Sem meias-palavras, completou: “Sabemos que nenhum fim, mesmo nobre […], pode justificar a destruição de embriões humanos.”
Trinta e seis dias após a declaração de Francisco, Vita Aguiar de Oliveira – presidente da Associação Brasil Huntington – perguntava ao microfone, meio que falando consigo mesma, como encarar o desígnio do papa. Era dia de assembleia na ABH. Seis pessoas presenciavam a reunião; outras a acompanhavam online. Sediada num sobrado cor-de-rosa, em São Paulo, a entidade ocupa uma pequena sala do segundo piso. “Não sabemos ainda que recomendação passar aos associados. É algo a debater”, tergiversou a presidente quando mencionou a utilização das células-tronco em pesquisas. Irmã, filha, sobrinha e tia de portadores da coreia, ela estava ciente da influência que a Igreja exerce sobre boa parte das famílias cadastradas na associação. Não por acaso, mostrou-se bem mais assertiva ao abordar outros tópicos.
Falou, por exemplo, a respeito da briga para incluir a DH no rol das enfermidades raras do Instituto Nacional do Seguro Social, o INSS. Isso aliviaria um pouco o caminho de quem reivindica o auxílio-doença ou a aposentadoria por invalidez. Não são incomuns os relatos de pacientes que recorreram a avaliações médicas do governo e enfrentaram a animosidade dos peritos, desconfiados de que os tiques e a falta de controle motor tinham mais a ver com a dependência alcoólica do que com um distúrbio genético.
“Precisamos abandonar o terreno das emoções e partir para a prática”, exorta Maria Gorette Nunes Marques, uma das criadoras da ABH. Magra e elétrica, com olhos verdes expressivos, ela relaciona o número de afetados pela patologia em sua árvore genealógica, a partir da bisavó materna: quinze. “Com o tempo, a gente desenvolve um olho clínico para a doença”, queixa-se, dando a entender que percebe sintomas incipientes nos familiares quando a maioria dos observadores diria se tratar apenas de um traço de personalidade. Festas de casamento a deixam melancólica. “Penso no futuro, nos filhos que os noivos irão conceber…” Embora não tenha o gene defeituoso, Marques – que mora em Joanópolis, no interior paulista – optou por não ser mãe.
Um de seus sobrinhos, Matheus Danilo Nunes Garcia Lemos, de 25 anos, ajustava a câmera que registrou a reunião da ABH. Professor de geografia, o rapaz nunca enfrentou o teste preditivo. “Para quê? Melhor evitar o trauma”, justifica. Ele não parece sofrer da ansiedade que persegue muitos dos jovens em risco. Há quem enxergue no próprio jeito atrapalhado de passar batom um prenúncio da doença. Ou descarte virar cirurgião com medo de, mais tarde, perder a destreza das mãos. Quando adolescente, já praticante de natação, Lemos afirmou numa reportagem sobre a coreia que não haveria problemas caso desenvolvesse a enfermidade: iria competir nas Paralimpíadas.
Na família de Maria Gorette Nunes Marques, os portadores da DH começam a “repuxar” por volta dos 32 anos. Na da carioca Priscilla Ferraz Fontes Santos, o mal vem à tona mais precocemente. Tudo indica que o Fontes de seu sobrenome carrega a mesma raiz genética dos Fontes de Ervália. Durante a adolescência no Rio, a moça começou a se revelar um tanto distraída e estabanada. Ainda assim, tornou-se jogadora de futebol sub-17 no Flamengo, tirou fotos para um book e fez teste para o seriado Cidade dos Homens, da Globo. Conseguiu terminar a faculdade de jornalismo, mas empacou na de turismo. A dificuldade de concentração a impediu de concluir o segundo curso.
Seu pai exibia alguns tiques. No entanto, não houve tempo de bater o martelo em Huntington. Ele morreu aos 40 anos, de câncer na garganta. A jovem continuou manifestando os sintomas até que uma neurologista pediu o exame específico. Ligia Maria Chaves Ferraz, a mãe, se desestruturou quando entendeu o que significavam as 58 repetições CAG da filha. “Chorava tanto, mas tanto…”, recorda. A árvore genealógica da família apresenta dezenove retângulos escuros emoldurando o nome dos doentes – e quatro interrogações.
Em setembro de 2013, conheci mãe e filha durante o Congresso Mundial sobre a Doença de Huntington, que aconteceu no Sheraton Rio Hotel. Priscilla Santos, à época com 31 anos, chamava atenção pelo movimento constante das pernas para a frente e para trás, pelas mãos que teimavam em deslizar sobre o rosto e pela gargalhada ininterrupta. Era o distúrbio em estado puro. Até hoje, tanto a paciente quanto a mãe persistem em não recorrer aos medicamentos alopáticos contra a DH. Optaram por caminhos alternativos, como “o exercício para sossegar o corpo”, que aprenderam com uma fonoaudióloga. Quando dá a si mesma cinco ordens sequenciais – “pare cabeça, pare ombro, pare braço, parem pernas, pare pé” –, a doente consegue ficar imóvel durante alguns segundos. Ela, que também se submeteu a uma cirurgia espiritual, produz pão integral em casa e o vende na vizinhança, pinta as próprias unhas e roga de mãos juntas, ao lado da mãe, por nada menos que a cura.
Nas farmácias caseiras de Ervália, o azul de metileno é “o pura”. A expressão, muito usada na cidade, significa algo como “da hora”. Alguém disse que, se o produto não faz bem, tampouco faz mal. Por isso, os cuidadores ministram entre três e dez gotas diárias da solução às vítimas do Huntington.
Chicão do Godinho prefere a apiterapia. Valendo-se de sua expertise na roça, aperta o ventre da abelha enquanto o inseto lhe aferroa o braço. Deseja que a bichinha solte a bolsa de veneno sobre a pele dele. O funcionário público jura que, agindo assim, livrou-se de uma inflamação no nervo ciático. “Quem sabe o veneno também paralise a evolução da coreia…”
A neurologista Mônica Haddad acha compreensível e legítimo que os portadores da moléstia nutram esperanças de cura. Mas, por enquanto, considera mais prudente falar em tratamentos que desacelerem o curso da doença e aumentem a qualidade de vida dos pacientes. Aos que sugerem estancar a progressão do distúrbio com a não procriação, a médica recomenda calma. Uma coisa é informar os casais sobre os riscos que correm e lhes apontar alternativas como a seleção de embriões. Outra é indicar que não se reproduzam. “Aí enxergo um quê de eugenia”, pondera.
A historiadora norte-americana Alice Wexler dedica algumas páginas do livro The Woman Who Walked Into the Sea [A Mulher que Caminhou para o Mar] a ações eugênicas envolvendo a doença de Huntington. De 1933 a 1939, a Alemanha teria esterilizado entre 3 mil e 3 500 vítimas da coreia. Nos Estados Unidos, em períodos como a Grande Depressão e o pós-Segunda Guerra Mundial, as políticas de esterilização chegaram a atingir crianças de lares onde havia dh. Mesmo durante os anos 70, pacientes reportaram abordagens do gênero por parte de médicos e conselheiros espirituais. A recomendação aos integrantes de famílias marcadas pelo “diabo de todas as doenças” era não se casar nem procriar. No entanto, por causa do silêncio sepulcral que encobria o tema, muitos acabaram consumando o matrimônio e procriando sem saber que a enfermidade os espreitava. “Justamente porque a eugenia encorajava o segredo, inúmeras famílias não conheceram a própria história”, escreve Wexler.
Lançado pela Yale University Press, o livro ainda não foi traduzido no Brasil. Seu título remete a uma mulher doente de East Hampton que se suicidou em 1806, mergulhando no oceano Atlântico. A irmã da autora, a geneticista Nancy Wexler, assina o prefácio. Ela – que ajudou a descobrir o gene Htt em 1993, trabalhando na equipe do pai, o psicanalista Milton Wexler – tem 72 anos e demonstra sinais do distúrbio, herdado da mãe. Já a historiadora, aos 75 anos, aparentemente não exibe a patologia. Nenhuma das duas quis realizar o teste preditivo. “Aqueles em risco como nós aprenderam o valor da relação precária com o mundo à nossa volta”, afirma a escritora no livro. “Não há dúvidas de que apreciamos a criatividade e as conexões que a doença nos desafia a perseguir, embora preferíssemos ganhar esse conhecimento de outra maneira.”
Para Mônica Haddad, tentar varrer a coreia da Terra reflete certa ignorância. Com base em estudos norte-americanos, a neurologista explica que entre 7% e 12% dos casos de DH são os primeiros em determinadas famílias. “O aumento de repetições CAG faz parte da evolução natural desse gene tão antigo e essencial ao desenvolvimento do cérebro.” Casos de Huntington, diz Haddad, acontecerão sempre – e talvez em faixas etárias mais avançadas, o que significa que as vítimas provavelmente já terão se reproduzido. Por outro lado, a DH juvenil, hoje com prevalência em torno dos 10%, não vem aumentando no mundo.
Quando perguntei à escocesa Marianna Palka se almeja ter filhos, ela respondeu: “E quem não?” A atriz de 36 anos roteirizou e produziu o documentário The Lion’s Mouth Opens [A Boca do Leão se Abre], dirigido por Lucy Walker e exibido pela HBO em 2014. No filme de 27 minutos, acompanhamos as reações dos participantes de um jantar que Palka ofereceu na véspera de saber o resultado de seu exame preditivo. O envelope já se encontrava nas mãos de sua médica, à espera de que a paciente tomasse coragem para confrontá-lo.
O pai da atriz começou a demonstrar os sintomas da enfermidade quando a filha tinha 8 anos. “Saímos do paraíso para o inferno”, relata Palka no documentário. Ainda criança, ela ouviu, numa fita cassete, um poema de 1963 que Bob Dylan recitava em homenagem a Woody Guthrie, cantor e compositor de canções folk, morto em 1967, aos 55 anos, por complicações trazidas pela doença de Huntington. Encomendaram a Dylan um parágrafo de 25 palavras dedicado ao colega. Os versos que escreveu ultrapassaram em muito o limite.
No filme, enquanto a atriz declama um trecho do poema, veem-se as imagens de pacientes com a doença avançada, incluindo o pai dela. No dia seguinte, Palka recebeu o resultado positivo do teste, para seu desespero e das amigas que a acompanharam até a clínica. O nome do curta foi inspirado num dos versos de Dylan: E a boca do leão se abre, e você encara seus dentes/E as mandíbulas dele começam a se fechar com você dentro/E você está preso em sua barriga com as mãos amarradas para trás/E você deseja nunca ter seguido aquela placa de desvio.