ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Das vestes talares
As borlas, os torçais e os alamares dos advogados do mensalão
Daniela Pinheiro | Edição 72, Setembro 2012
De costas, eles podem lembrar um Batman desenxabido. Mas beca é assunto sério para os advogados. É claro que nem todos vão aos exageros do renomado jurista italiano Piero Calamandrei, que queria ser enterrado com a sua porque “se ela me ensinou a abrir os portões de masmorras, me ensinará a abrir a porta dos céus”. Mas aqueles 8 metros de tecido preto, ornado com cordinhas, botões e babados, são bem mais que um acessório quando se trata de livrar do inferno a cúpula do partido do governo no julgamento mais visado da história deste país.
Em oito dias de sustentações orais, 37 advogados envergando suas garnachas foram à tribuna do Supremo Tribunal Federal defender os 38 acusados no processo do mensalão. “É um traje de respeito à tradição, com um significado histórico. Mas, pelo amor de Deus, beca é de advogado e toga é de juiz”, disse, professoral, o mineiro Marcelo Leonardo, defensor de Marcos Valério, corrigindo a ignorância alheia. A sua, com punhos de renda e mangas retas, foi comprada pela internet e entregue no prazo combinado.
Becas e togas são chamadas de vestes talares, em alusão ao talus, calcanhar em latim, até onde chega seu comprimento. Remontam à Roma Antiga, onde eram usadas pelos sacerdotes. Foram incorporadas ao universo acadêmico a partir do século XIII e hoje servem em ocasiões especiais a clérigos, juízes, advogados, promotores, procuradores, reitores, doutores e formandos.
Uma beca pode ter torçal (uma cordinha trançada com fios de seda), borla (o pingente da cordinha em forma de campânula, como de cortinas), rosetas (botões paralelos na altura do peito) e alamares (quando as cordinhas cruzam o peito presas nos botões frontais). Também pode ter mangas bufantes, plissadas, drapeadas ou lisas. Nas costas, pode ser reta, ter elástico na altura do cóccix ou sobrepeliz nos ombros. O punho pode ter renda francesa ou sintética. Ou não ter nada. Pode-se usá-la sobre o terno, com um grosso cinto preto marcando a cintura ou aberta como uma capa. É a gosto do freguês.
Arnaldo Malheiros Filho, defensor do ex-tesoureiro petista Delúbio Soares, exibiu torçal duplo: preto sobre o peito e vermelho com borla de cor idêntica sobre o ombro esquerdo. Paulo Sérgio Abreu e Silva, advogado de Rogério Tolentino e de Geiza Dias dos Santos, foi espartano: manga lisa, cordinha preta, sem mais. Quando terminou a fala, na qual considerou sua cliente uma “funcionária mequetrefe”, tomou o rumo da saída do plenário com a veste arrastando pelo chão e quase caiu. “Isso é uma arma. Tem que dobrar senão a gente tropeça.”
O advogado Leonardo Isaac Yarochewski, que representa a ex-funcionária de Marcos Valério, Simone Vasconcelos, fez o ministro Gilmar Mendes explodir em uma gaitada quando citou uma personagem da novela Avenida Brasil. “Virou moda falar em quadrilha, porque é bonito falar. Até a Carminha disse que ia processar a Rita por bando ou quadrilha.” Duas rosetas, alamares pretos, punhos de renda e elástico nas costas para moldar a cintura, ele tem uma peça única, que fica pendurada na parede do escritório de sua casa, como um troféu. “Gosto do modelo simples, sem muita firula”, afirmou.
Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça e advogado do ex-vice-presidente do Banco Rural, José Roberto Salgado, atravessou o plenário levando sua beca de estimação dobrada sobre o antebraço como um manto sagrado. Manga de punhos de renda, aberta na frente, solta atrás, duas rosetas de seda e um singelo torçal preto em volta do pescoço, que cortava a visão de seu nó de gravata inglês. “Essa beca é dos anos 80. É de uma loja simples, foi muito barata, deve ter custado uns 200 mil réis”, disse. Há alguns anos, recomendaram-lhe um alfaiate em Paris, especialista em trajes em seda. Comprou uma beca de 500 euros, que permanece intocada em seu guarda-roupa. “Tenho medo de mudar e perder a sorte que essa velhinha aqui me dá”, disse.
Supersticioso, em um canto do plenário do STF ele afastou o tecido da beca, desabotoou dois botões da camisa e puxou do peito um cordão de ouro com mais de quinze pingentes pendurados: uma pimenta dedo de moça, um olho grego, vários crucifixos de tamanhos distintos, trevo de quatro folhas. “Vou colocando o que me dão. Durmo com isso, não tiro nunca”, contou. “É isso e a beca. Não tenho coragem de trocar.”
Alberto Toron, advogado do deputado João Paulo Cunha, tinha alamares vermelhos no peito. “É um modelo antigo, que valoriza minha barriga”, falou, dirigindo-se à tribuna do STF, após gargarejar e praticar exercícios vocais antes de sua sustentação oral.
Foi o advogado do ex-ministro Luiz Gushiken, José Roberto Leal de Carvalho, que desfilou o modelo mais formal: gola e punhos de renda, cinto grosso com fivela prateada, mangas drapeadas e torçal vermelho sobre o ombro esquerdo – o que lhe dava a aparência de pertencer a um passado longínquo.
Há 51 anos no mercado das togas, becas, capas e afins, a Maison de Lello, no Centro de São Paulo, é o endereço predileto dos jurisconsultos do mensalão. “A personalidade do advogado está diretamente ligada ao tipo de beca que ele escolhe”, comentou o proprietário, o alfaiate Domingos de Lello, de 72 anos, que acompanha o julgamento pela TV Justiça. “Se é um sujeito discreto, sua beca será a mais comportada. Se é aparecido, vai fazer o mesmo com a roupa”, falou. Há controvérsias. A do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, era uma pretinha básica com suas iniciais bordadas na etiqueta interna da gola.
Grifes italianas famosas como Loro Piana e Ermenegildo Zegna desenvolveram uma tecelagem específica para togas e becas. Na De Lello, uma veste sob medida pode custar de 1 500 a 5 mil reais. É ali que o advogado José Carlos Dias, que representa a dona do Banco Rural, Kátia Rabello, sempre manda fazer as suas. A atual foi confeccionada para o julgamento do jornalista Pimenta Neves, que matou a ex-namorada.
Dias presenteou o sobrinho, o advogado José Luis de Oliveira Lima, que defende o ex-ministro José Dirceu, com uma beca De Lello no dia de sua formatura, há 23 anos. É a única que possui até hoje. Quantas vezes já a lavou? “Sei lá, depois dos júris. Mas não é sempre, a gente não transpira na beca”, disse Lima.
Dentro do plenário do STF, um armário de duas portas em frente ao banheiro masculino guarda dez becas lavadas semanalmente, de tamanhos e tecidos diferentes, para os incautos advogados que, por infelicidade ou pouca memória, se esquecerem de levar. Foi dali que o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que defende Ayanna Tenório, a ex-vice-presidente do Banco Rural, tirou a sua. Desavisado, vestiu-a ao contrário. Foi alertado por uma jornalista a caminho da tribuna. “Eu vim com mala pequena, ia amassar demais se eu tivesse trazido a minha. Beca, para mim, tanto faz. Pego uma daqui mesmo.”