Semprún, no ano passado, no campo nazista: “Permitam-me lembrar, serena e fraternalmente, aquele jovem de 22 anos” FOTO: ULY MARTÍN_EL PAÍS_2010
De bazuca em Buchenwald
Afundaremos em breve em trevas gélidas: Adeus, vivo clarão de um verão fugaz
Jorge Semprún | Edição 58, Julho 2011
Filho de republicanos, Jorge Semprún vivia no exílio, na Paris ocupada pelos nazistas, quando se engajou na Resistência e no Partido Comunista Espanhol. Aos 19 anos, foi delatado, torturado e internado no campo de Buchenwald, na Alemanha, onde mais de 50 mil presos perderam a vida. Depois da guerra, se instalou em Madri para militar clandestinamente contra a ditadura franquista. Rompeu com o stalinismo nos anos 60 e – em romances, memórias, ensaios e roteiros cinematográficos – compôs uma obra cujo assunto é a fricção entre a épica do engajamento e a lírica da intimidade.
Jorge Semprún morreu agora, em 7 de junho passado. Em abril de 2010, ele foi a Buchenwald participar da cerimônia do 65º aniversário de libertação do campo. E fez o seguinte discurso:
Em 11 de abril de 1945, por volta das cinco da tarde, um jipe do Exército americano apresenta-se na entrada do campo de concentração de Buchenwald. Dois homens descem do jipe.
De um deles não se sabe grande coisa. Os documentos disponíveis são pouco explícitos. É evidente, em todo caso, que se trata de um civil. Mas por que ele está lá, na vanguarda da 6ª Divisão Blindada do 3º Exército americano do general Patton? Qual sua profissão? Qual sua missão? Será um jornalista? Ou, o que é mais provável, um especialista ou conselheiro civil de alguma agência militar de inteligência? Não se sabe ao certo.
No entanto, lá está ele, presente, às cinco horas da tarde de um dia memorável, diante do monumental portão de entrada do campo de concentração. Lá está, acompanhando o segundo tripulante do jipe.
Esse, sim, devidamente identificado: é um tenente, ou melhor, um primeiro-tenente, um oficial da inteligência militar a serviço da unidade de guerra psicológica do Estado-Maior do general Omar N. Bradley.
Também não sabemos o que pensaram os dois americanos ao sair do jipe e ver a inscrição em letras de ferro forjado que há na grade do portão de Buchenwald: Jedem das Seine [A cada um o seu].
Não sabemos se tiveram tempo de tomar nota, mentalmente, de tamanho cinismo, criminoso e arrogante. Uma divisa que alude à igualdade entre seres humanos, na entrada de um campo de concentração, lugar mortífero, lugar consagrado à injustiça mais arbitrária e brutal, onde para os deportados só existia a igualdade perante a morte. O mesmo cinismo estava expresso na divisa inscrita no portão de Auschwitz: Arbeit macht frei [O trabalho liberta]. Um cinismo típico da mentalidade nazista.
Não sabemos o que pensaram os dois americanos naquele momento histórico. Mas sabemos que foram recebidos com entusiasmo e com aplausos pelos deportados insurgentes que montavam guarda na entrada de Buchenwald. Sabemos que foram festejados como libertadores. O que, de fato, eles eram.
Não sabemos o que pensaram, não sabemos quase nada de suas biografias, de sua história pessoal, de seus gostos ou desgostos, de seu entorno familiar, de seus tempos de universidade, se é que os tiveram. Mas sabemos seus nomes. O civil se chamava Egon W. Fleck, e o primeiro-tenente, Edward A. Tenenbaum.
Vamos repetir aqui, em Buchenwald, 65 anos depois, neste espaço dramático, estes dois nomes esquecidos e ilustres: Fleck e Tenenbaum.
Aqui, onde retumbava todos os dias da semana a voz gutural, mal-humorada, agressiva, do oficial de campo, distribuindo ordens ou insultos; aqui, onde ecoava também, pelo circuito de alto-falantes, em certas tardes de domingo, a voz sensual e ardente de Zarah Leander,[1] com suas sempiternas cançõezinhas de amor, vamos repetir aqui em voz alta, gritando, se preciso, aqueles dois nomes: Egon W. Fleck e Edward A. Tenenbaum.
A inscrição Jedem das Seine [A cada um o seu], no portão de Buchenwald. “Um cinismo típico da mentalidade nazista”.
Assim, ironia maravilhosa da história, incrível revanche significativa, os dois primeiros americanos que chegam à entrada de Buchenwald, naquele 11 de abril de 1945, com o exército da libertação, são dois combatentes judeus. Como se não bastasse, dois judeus americanos de ascendência germânica mais ou menos recente.
Sabemos, mas não custa repetir que na guerra imperialista de agressão desencadeada em 1939 pelo nacional-socialismo, cujo fim era a instauração da hegemonia totalitária na Europa e talvez no mundo inteiro, sabemos que nessa guerra o propósito constante e consequente de exterminar o povo judeu constitui um objetivo essencial, prioritário, de Hitler. Sem rodeios ou concessões a nenhuma restrição mortal, o antissemitismo racial integra o código genético da ideologia nazista, desde os primeiros escritos de Hitler, desde suas primeiríssimas atividades políticas.
Para a chamada “Solução final da questão judaica” na Europa, o nazismo organiza o extermínio sistemático no arquipélago de campos especiais do conjunto Auschwitz–Birkenau, na Polônia.
Buchenwald não integra tal arquipélago. Não é um campo de extermínio direto, com seleção permanente para o envio às câmaras de gás. É um campo de trabalhos forçados, sem câmaras de gás. A morte, em Buchenwald, é a decorrência natural e previsível das árduas condições de trabalho, da desnutrição sistemática. Consequentemente, Buchenwald é um campo Judenrein [livre de judeus].
Por razões históricas concretas, no entanto, Buchenwald passa por dois diferentes períodos de presença maciça de deportados judeus. Um desses períodos ocorre nos primeiros anos de existência do campo, quando, depois da “Noite dos Cristais” e do pogrom geral organizado, em novembro de 1938, por Hitler e Goebbels, milhares de judeus, particularmente de Frankfurt, são mandados para Buchenwald.
Em 1944, comunistas alemães veteranos ainda se lembravam da brutalidade mortífera com que aqueles judeus de Frankfurt foram maltratados e assassinados em massa, para depois os sobreviventes serem mandados para os campos de extermínio do Leste.
O segundo momento de presença judaica em Buchenwald acontece em 1945, já no final da guerra, nos meses de fevereiro e março. Naquele momento, diante do avanço do Exército Vermelho, dezenas de milhares de sobreviventes judeus dos campos do Leste foram transferidas para a Alemanha central pela SS.
Chegaram a Buchenwald milhares de deportados esquálidos, transportados em condições desumanas, em pleno inverno, vindos de longe. Muitos morreram durante a viagem interminável. Os que conseguiram chegar a Buchenwald, já superpovoado, foram instalados em barracões do kleine Lager, o campo de quarentena, ou em tendas de campanha e barracas montadas especialmente para o seu precário alojamento.
Entre aqueles milhares de judeus que chegaram então a Buchenwald, e que nos forneceram informação direta, testemunho vivo e sangrento do processo industrial, barbaramente racionalizado, do extermínio maciço nas câmaras de gás, entre aqueles milhares de judeus havia muitas crianças e adolescentes.
A organização clandestina antifascista de Buchenwald fez o que pôde para ajudar as crianças e os adolescentes judeus sobreviventes de Auschwitz. Não era muito, mas era arriscado: foi um gesto importante de solidariedade e fraternidade.
Entre aqueles adolescentes judeus estava Elie Wiesel, futuro Prêmio Nobel da Paz. Também estava lá Imre Kertész, futuro Nobel de Literatura.
Quando o presidente Barack Obama, há alguns meses, visitou Buchenwald, fez-se acompanhar por Elie Wiesel, hoje cidadão americano. Pode-se supor que Wiesel aproveitou a ocasião para informar o presidente dos Estados Unidos da experiência daquele passado indelével, de sua experiência pessoal de adolescente judeu em Buchenwald.
Considero oportuno lembrar aqui, neste momento solene, neste lugar histórico, a experiência daquelas crianças e adolescentes judeus que sobreviveram ao campo de Auschwitz, último círculo do inferno nazista. Lembrar tanto os que se tornaram célebres, como Kertész e Wiesel, por seu talento literário e sua atividade pública, como aqueles que permaneceram, simples heróis, no anonimato da história.
Como eu já disse há cinco anos, no Teatro Nacional de Weimar: “A memória mais duradoura dos campos nazistas será a memória judaica. E esta não se restringe à experiência de Auschwitz ou de Birkenau. Pois em janeiro de 1945, com o avanço do Exército soviético, milhares e milhares de deportados judeus foram evacuados para os campos de concentração na Alemanha central. Assim, na memória das crianças e dos adolescentes judeus que certamente ainda estarão vivos em 2015, é possível que persista uma imagem global do extermínio, uma reflexão universalista. Isto é possível e acredito mesmo que é desejável: neste sentido, cabe uma grande responsabilidade à memória judaica… Todas as memórias europeias da resistência e do sofrimento só terão, como último refúgio e baluarte, daqui a dez anos, a memória judaica do extermínio. A memória mais remota daquela vida, justamente por ter sido a mais jovem vivência da morte.”
Voltemos, por um momento, ao dia 11 de abril de 1945. Voltemos ao momento em que Egon W. Fleck e Edward A. Tenenbaum param o jipe diante do portão de Buchenwald.
Se eu tivesse muitos anos a menos, provavelmente empreenderia, agora, uma indagação histórica, uma pesquisa sobre esses dois personagens, pesquisa que abriria caminho para um livro sobre aquele 11 de abril de mais de meio século atrás, para um trabalho literário no qual ficção e realidade se apoiariam e se enriqueceriam mutuamente.
Mas não tenho mais tempo para semelhante aventura. Então, vou apenas lembrar algumas frases do relatório preliminar que Fleck e Tenenbaum redigiram duas semanas mais tarde, em 24 de abril, para seus comandantes, relatório que integra os Arquivos Nacionais dos Estados Unidos.
“Ao desembocar na estrada principal”, escrevem os dois americanos, “vimos milhares de homens, esfarrapados e de aspecto famélico, em marcha para o Leste, em formações disciplinadas. Esses homens estavam armados e tinham chefes que os lideravam. Alguns destacamentos portavam fuzis alemães. Outros levavam no ombro Panzerfausts. Riam e gesticulavam com uma alegria furiosa enquanto caminhavam. Eram os deportados de Buchenwald, marchando para o combate, enquanto nossos tanques os ultrapassavam a 50 quilômetros por hora.”
Esse relatório preliminar é importante por várias razões. Em primeiríssimo lugar, porque os dois americanos, testemunhas imparciais, confirmam contundentemente a realidade da insurreição armada, organizada pela resistência antifascista de Buchenwald, e que foi alvo de polêmica nos tempos da Guerra Fria. Mas o mais importante, ao menos para mim, do ponto de vista humano e literário, é uma palavra desse relatório: a palavra alemã Panzerfaust.
De fato, o relatório escrito por Fleck e Tenenbaum está, é lógico, em inglês. Mas quando mencionam a arma individual antitanque, que se denomina bazooka em quase todos os idiomas do mundo, inclusive em inglês, recorrem à palavra alemã.
Isso sugere que Fleck e Tenenbaum, o civil e o militar, são americanos de ascendência germânica recente. E abre um novo capítulo da pesquisa que eu gostaria de empreender.
Mas outra razão, mais pessoal, suscita meu interesse na palavra Panzerfaust, que significa, literalmente, “punho antitanque”. Acontece que, naquele dia de abril de 1945, eu estava na coluna que marchava para Weimar, naquela coluna de homens armados, furiosamente alegres. Eu estava entre os que portavam bazucas.
O deportado 44 904, no peito o triângulo vermelho estampado em preto com a letra “S” de Spanier, “espanhol”, esse era eu, entre os entusiasmados portadores de uma bazooka ou Panzerfaust.
Hoje, tantos anos depois, nesse espaço dramático de Buchenwald, na última fronteira de uma vida de certezas destruídas, de esperanças mantidas à contracorrente, permitam-me lembrar, serena e fraternalmente, aquele jovem de 22 anos que empunhava uma bazuca.
Muito obrigado pela atenção.
[1] Zarah Leander (1907–81), cantora e atriz de origem sueca, grande estrela na Alemanha nazista.
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