O músico, trabalhando em sua casa: “Para desamassar a cara em tempo recorde, fiz umas boas caretas, coisa que aprendi no teatro. Tendo uma camisa bonita, é só gravar e postar” CREDITO: PAULA GUIMARÃES_2020
De feira e de live
As agruras de um músico sem palco
Moyseis Marques | Edição 167, Agosto 2020
Mineiro de Juiz de Fora, MOYSEIS MARQUES, de 41 anos, foi criado no subúrbio carioca da Vila da Penha e virou um daqueles músicos com mais prestígio do que seguidores nas redes sociais. Gravou com Chico Buarque e João Bosco, compôs com Aldir Blanc, Moacyr Luz e Yamandu Costa. No começo do ano, vinha comandando uma roda de samba, um trio de forró, um quarteto de MPB e uma banda mista – até que foi pego pela pandemia e passou a precisar do que nunca teve: seguidores nas redes sociais. Em casa, Marques, como tantos outros músicos, obrigou-se a tocar nas lives, durante as quais, com um certo constrangimento, passa seu chapéu virtual porque “a fonte secou”.
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11 DE JULHO, SÁBADO_Porque hoje é sábado! Não que isso faça muita diferença. Com ou sem quarentena, para quem vive de música o fim de semana não é muito diferente dos outros dias. Além disso, eu e a Paula, minha esposa, já estávamos de certa forma quarentenados antes da quarentena. É que nossa caçula, a Yara, tem agora 5 meses. A vida nesse último período já vinha girando em torno dela, em uma levada bem mais reclusa.
Hoje foi dia de faxina pesada. Não que eu tenha dia certo para a limpeza (não tenho dia certo para nada), mas aprendi que, se não varro a casa todo dia, se não arrumo a cama e se deixo a louça e a roupa acumularem, o dia demora muito mais a passar. Acordo e executo logo essas funções, às vezes botando a voz no lugar com uns exercícios de aquecimento vocal ao mesmo tempo em que varro e lavo. Assim vou ritmando a faxina, trazendo algum prazer para esse compromisso tão necessário quanto ingrato.
Depois da limpeza, treinei capoeira Angola pelo Zoom. Fora o jogo da capoeira com o oponente, todo o resto é perfeitamente possível: aquecimento, tonificação, gestual, ritmo e alongamento. Conheci meu mestre, o Ferradura, em 2014, quando fiz o musical Ópera do Malandro. Ele fazia a preparação física do elenco. De três anos para cá, treino quase todos os dias – agora pelo aplicativo, às vezes sozinho, às vezes com meu mestre, às vezes com outros. Isso tem me ajudado nesses tempos bicudos. Sinto um certo alívio quando reencontro meus parceiros de treino, mesmo que pelo quadradinho do computador.
Adoraria mesmo era voltar para a casa dos meus sogros, em Getulândia, no interior do Rio de Janeiro, onde passamos duas semanas depois de cem dias trancados aqui com duas crianças (temos também a Rosa, a mais velha, que está com 8 anos). Lá tem cerca de 2 mil habitantes e meia dúzia de casos de Covid (na época em que a gente foi, ainda não tinha nenhum). Não fosse pelos carrapatos e pela internet, que pega mal e me impossibilita de fazer minhas lives, teria ficado lá até isso tudo acabar.
No fim do dia, fechei por telefone um trabalho legal, que aceitei sem saber que tinha cachê. Logo depois anunciaram uma verba disponível. Empolgado, pedi uma comida e umas cervejas para comemorar, e terminei gastando mais do que podia. Esse vírus de classe média é realmente uma merda.
12 DE JULHO, DOMINGO_Acordei ao meio-dia. Não que eu tenha dormido bem, até porque faz mais de uma década que isso não acontece. Adoraria conseguir fingir que sou rico, para ninguém zombar de mim, como disse Noel Rosa. Mas a falta de perspectiva profissional me assombra, sobretudo com a chegada de nossa pequena Yara. Ontem, pela primeira vez em tempos, um respiro de oportunidade massageou a minha dor. Como gastei demais pedindo comida pelo telefone, hoje fui logo ao mercado catar o que cozinhar. Levei a Rosa, contrariado por expô-la, mas com muita pena de vê-la dentro de casa. Além disso, um misto de culpa e irritação me invade quando reparo que ela passa tempo demais vendo tevê ou mexendo no celular (a Rosa estuda numa escola pública, que não tem essa coisa de aula online; recebemos só uns deveres, por e-mail, para ela fazer em casa). A rua estava bem vazia.
Voltando para casa, fritei uns bifes de contrafilé e parti para uma aula de tambor, pelo Zoom, com Mestre Santo Amaro da Bahia, com quem às vezes também treino capoeira. Esta semana pretendo postar um vídeo de quarentena, cantando um ponto de Ogum, o orixá que cuida de mim, segundo as coisas em que acredito. O tambor vai ser em ritmo de ijexá, que ainda não domino muito.
Terminada a aula, me preparei para entrar numa live da cantora Diana do Sertão. Joguei um pano maneiro, afinei o violão e apoiei o celular na estante de partitura, para dar um ângulo legal. Também peguei emprestado o celular da Paula e liguei a lanterna para ter uma luz adicional. Como ainda tinha meia hora, abri uma Stellinha que tinha sobrado de ontem e esfriei a cabeça, que o tambor tinha esquentado. Batemos um papo de duas horas, toquei um pouco, cantamos juntos, lentamente, para tentar driblar aquele delay da live compartilhada do Instagram. Diana me perguntou como está minha situação de músico em quarentena, e rimos bastante quando eu disse que tinha saudades da minha “voz de boletos pagos”.
Lá por 2011, até 2015, cheguei a ganhar bem, me preocupar menos com grana, o que me ajudou a manter aquela voz flexível, tranquila, brilhante, descansada. Até a insônia melhorou. Rosa estudava numa creche particular, eu tinha um Peugeot vermelho da bunda grande, comia fora com a Paula algumas vezes na semana. De 2016 para cá, tivemos que baixar o padrão. Saímos da Zona Sul para o Maracanã, Rosa foi para uma escola pública, e o Peugeot ficou parado na Praia do Flamengo, esperando aquele cachê maneiro para eu tirá-lo de lá. Ele está quebrado e pendurado nas dívidas, mas ainda custo a admitir que devo me desfazer dele.
Encerrada a conversa virtual, assumi um pouco a bebê, para Paula preparar uns sanduíches para nós. Fiquei curtindo o sorriso babado e banguela, mas com a cabeça na letra que o João Martins me mandou para musicar: “Eu levanto esperançoso pra tomar um bom café, varro a casa, molho a planta, lavo a louça sem migué.” Talvez vire um xote.
Deu vontade de uma Brahma, mas não quero continuar o massacre de ontem. Talvez eu compre umas quatro latinhas no posto. Ou latões.
13 DE JULHO, SEGUNDA_Mais uma segunda-feira de isolamento, e a pilha de louça suja se impõe na paisagem da cozinha feito aquele episódio dos mortos-vivos de Game of Thrones: quando você acha que acabou, ela logo renasce. Impossível vencê-la com quatro pessoas em casa. Já relaxei. Ontem não varri nem lavei, porque um dia de “não planejamento” está dentro do planejado.
Não rendi muito no treino físico de meio-dia do Mestre Ferradura. Stellas no sábado, Brahmas no domingo. Mas alonguei bem e tive tempo de cozinhar um lombinho com abóbora, já que meu aluno das 14 horas cancelou a aula. Antes da pandemia, eu sempre preferia indicar algum professor quando alguém me perguntava se eu poderia ensinar canto. Agora não, peguei três alunos, mas não divulguei nas redes sociais, não é o meu foco. Faço um pacote de dez aulas, duas por semana, por um valor bacana que ajuda no orçamento da casa. Um dos alunos, aliás, renovou o pacote pela quarta vez, então hoje deu para pagar um condomínio atrasado. Finalmente quitei as contas de junho, com um mês e meio de atraso.
Até que não estou indo mal para quem tinha 80% da renda vinda de bilheterias que não existem mais. Mas, claro, teve uma queda pesada no orçamento da casa. Tenho passado um chapéu virtual nas lives, contrariando meu empresário, que, como eu, morre de medo da generosidade das pessoas. No começo eu tive muita vergonha. Agora eu tenho menos. Foi uma coisa a que os fãs me convenceram. Eles diziam que eu estava ajudando a salvar a quarentena deles, que numa situação normal pagariam para me ver tocar no Beco do Rato ou em qualquer outro lugar. Mas não é uma coisa que me deixa confortável, não. Uma pessoa chegou a me oferecer cesta básica. Agradeci, mas respondi que não era o caso.
Ao mesmo tempo que disponibilizar a conta te ajuda, te fragiliza como artista perante o mercado. A verdade é que muitos fãs projetam em você o que gostariam de ser. Eles gostam de nos ver na rede social, numa escuna em Paraty, num aeroporto em Dubai, numa praia paradisíaca do Nordeste. É mais fácil cultuar o impalpável. É meio babaquice, mas meu produtor acredita – e acho que eu também – que, quando um fã te vê no metrô, ele acha maneiro, mas metade do encantamento se esvai.
Artisticamente, não tenho do que reclamar. Continuo gravando meus discos, tenho mais seguidores nas redes e sou parceiro de gente que eu admiro na música. Fiz seis discos, um DVD, música para novela, gravei umas cem canções e compus mais de duzentas. Capitalizar é que tem sido difícil. As pessoas já não queriam pagar por música; agora não temos nem mais os shows. A fonte secou. Às vezes pinga uns centavinhos do Spotify, do YouTube, das rádios. Mas centavinhos multiplicados pelos milhares de views às vezes viram centavões.
A minha geração, entre 40 e 50 anos, ficou numa espécie de limbo. Ela ainda vem do mercado do disco, só que de um mercado que já não vendia mais aqueles milhões de cópias como nas gerações anteriores. Já a geração que veio depois da minha, a maioria nem grava mais disco: faz um single, produz um vídeo bacana e ganha dinheiro com o número de views. É claro que é preciso uma quantidade bem expressiva de plays e views, e uma conscientização maior dos ouvintes sobre a necessidade de se compensar o trabalho do artista. Trabalho de formiguinha. Hoje o disco virou só um cartão de visitas. Se eu não me engano, o último disco que o Almir Guineto fez antes de morrer se chamava justamente Cartão de Visita.
Estou aprendendo a lidar com o mundo digital agora. Uma das coisas boas da pandemia, se é que há algo de bom, é que a gente foi obrigado a entender mais disso. Hoje mesmo estava acertando com outra cantora mais um duo para as redes. Vou tocar violão e cantar Sem Fantasia, do Chico Buarque. Canção delicada e difícil, começa no tom dela, muda de tonalidade para a minha entrada e retorna para o tom anterior com duas vozes cantando melodias diferentes em cima da mesma harmonia. Terei bastante trabalho para essa semana.
Treinei de novo capoeira à noite, com Mestre Santo Amaro, já que não tinha rendido durante o dia. Do treino fui direto para o banho, não sem antes arrancar a barba com máquina, fingindo não estar puto com a quantidade de cabelos brancos, que aumenta com as preocupações. Baixei um aplicativo de meditação que também tem me ajudado a aceitar a realidade, sobretudo quando não há uísques, Stellas ou Brahmas. Tenho que segurar a onda de bebida esta semana, pois quinta-feira tenho live no Instagram e a voz tem que estar boa. A Paula está pesquisando no Mercado Livre um “kit youtuber” para mim, com tripé, luz, microfones e afins. Material de trabalho importantíssimo, já que o meu celular anda meio churriado. Pedi a ela, que também é designer, para fazer o flyer virtual da live. Sou o pior cliente. Quero rapidez na entrega, peço para trocar fotos, cores, fontes, decido quem são os convidados depois que a arte está pronta. E não pago.
16 DE JULHO, QUINTA-FEIRA_Hoje é dia de live e de feira. Depois de um café forte, preparo a lista de compras enquanto penso num vídeo de divulgação para a live de mais tarde. Para desamassar a cara em tempo recorde, fiz umas boas caretas, coisa que aprendi no teatro. Tendo uma camisa bonita, é só gravar e postar.
Parti para a feira livre da Rua Moraes e Silva, aqui no Maracanã, dando aquela passada no começo e no fim na barraca Nota Dez, onde encomendo as carnes do jeito que eu quero. Lá eles me dão um mole de trazer os bifes de frango já cortados, a alcatra em cubinho para estrogonofe, o lagarto redondo já limpo, com calabresa e tudo. Como vou toda semana, ainda ganho uns ovos de codorna.
Saí da casa dos meus pais cedo, com 19 anos, e desde então aprendi a cozinhar. Modéstia à parte, tenho a mão bem boa. Acho que herdei da minha mãe. É com prazer que eu faço um bom feijão para os amigos, escolho as frutas na feira, preparo uma peça de carne. Também aprendi a me planejar, porque cozinhar todo dia é uma barra muito pesada. Faço uma panela de arroz e uma de feijão, que duram uns cinco dias. As carnes também já esperam na geladeira, fatiadas e temperadas. O legume é a única coisa que faço diariamente, que é mais perecível. Pode ser batata, abóbora, cenoura, abobrinha.
Depois do almoço, dei aula pelo Zoom para o Mestre Cueca, um israelense, mestre de capoeira e meu aluno de canto e musicalidade. Capoeira e música andam lado a lado, desde sempre. Toda vez que viajo cantando, faço um treino avulso quando tem uma brecha. Conheci o Mestre Cueca no Brasil, mas treinei com ele em Moscou, em fevereiro deste ano, quando fiz minha última viagem pré-pandemia. Como a capital russa foi muito afetada pela Covid-19, Cueca voltou para a casa dos pais, em Israel. Trabalhamos técnica vocal, percepção e harmonia, usando o berimbau. Já saí da aula aquecido.
Por falar em berimbau, vou usá-lo hoje à noite, durante a live. Também pretendo tocar tambor, tamborim, talvez até uma caixa de fósforos. Ainda não preparei o set. Como o tripé e a lâmpada que a Paula encomendou ainda não chegaram, vou ter que recorrer de novo à velha estante de partitura para apoiar o celular. Como o microfone do iPhone não anda muito bom, vou gravar com o headphone mesmo, fora da cabeça, apoiado na estante. Preciso de um apoio para os instrumentos todos, de forma que fiquem ao alcance da mão e fora da tela, assim como a água e a toalha. Também preciso direcionar a luz, que anda insuficiente aqui no meu pequeno escritório. Pego o celular da Paula para usar a lanterna e reforçar a iluminação direcionada, e apago a luz da cozinha, que é o cômodo ao lado. Pronto! O “Gambiarra Set” está montado e iluminado. Que Nossa Senhora das Conexões nos proteja.
17 DE JULHO, SEXTA-FEIRA_Minha sexta-feira começou cedo, fazendo valer não ter bebido uma gota de álcool durante a live de ontem. Deu umas 150 pessoas – menos que as quinhentas que dava no começo. Acredito que, com a flexibilização do isolamento, o público das lives tende a cair um pouco. De toda forma, ando aproveitando o espaço para testar um repertório inédito, quase todo autoral. Recebi o pianista Cristóvão Bastos e os cantores Pedro Miranda e Liz Rosa, num terceiro set que nem estava programado. Fiz três horas de som.
Terminei às 23 horas, com a energia lá em cima, sem chance de pegar no sono. Primeiro bati um panelão de sopa de ervilha, que eu tinha cozinhado mais cedo, depois fui para o quarto da Rosa, que pegou a mania feia de não deitar enquanto eu não vou. Depois do nascimento da irmã, deu para ter medo de escuro e argumentar que acha injusto eu, Paula e a bebê dormirmos juntos na mesma cama e ela ficar sozinha no quarto – coisa que sempre foi assim, desde que nasceu. Me tornei o que eu mais temia: sou eu que apago as luzes, boto as meninas na cama, recolho os copos espalhados pela casa e observo minhas filhas dormirem. Depois, faço algumas escalas de violão assistindo tevê, às vezes tomando um uísque que me deixa inteligente – ou pelo menos me faz pensar que sou –, à procura de uma boa ideia para sair dessa lama.
Às oito da matina eu já estava treinando com Mestre Itapuã – mais um dos mestres que se tornaram grandes amigos de agora. De vez em quando, filmo uma movimentação após o treino e faço um vídeo para as redes. Dessa vez não fiquei satisfeito com o resultado. Ainda estou pensando no conteúdo de hoje para o Instagram.
Depois do almoço, tenho duas aulas para dar: uma adolescente que me dá o cano algumas vezes, e um cantor já profissional, meu aluno mais velho, mais assíduo e mais dedicado. Conversamos bastante sobre música brasileira, e sempre tenho que tomar cuidado para não ficar duas, três horas de papo. Às vezes nem dá tempo de passar o conteúdo proposto e ele me libera, dizendo que tudo é aula.
Tem muito músico se virando dando aula. Um outro mercado que surgiu nesse período foi o do músico que grava bases para a live alheia, de quem canta mas não toca. Fora isso, tem também muito músico pedindo auxílio emergencial do governo. Eu não me enquadro, porque em 2018 ganhei mais do que o teto de corte, que é de 28 mil reais. Mas só sobrevivo, acredito eu, porque ataco (ou atacava) em várias frentes: tenho um trio de forró, uma roda de samba, um quarteto de MPB e uma banda mista, autoral. E 21 anos de quilômetros rodados. Vários músicos pegaram auxílio do governo, até onde eu sei. Alguns foram para a casa dos sogros, para economizar. A galera de esporte está dando aula pelo Zoom, a galera da dança também. No teatro é que deve estar mais difícil. Acho que a barra para eles está mais pesada.
Escrevo um pouco, toco atabaque, toco violão, tomo uma sopa de ervilha e bebo cerveja, e de vez em quando vou lá na sala dar um beijo nas meninas, que assistem televisão. Permaneço nesse moto-contínuo por algumas horas.
Estou preocupado com os dois vídeos de quarentena que estou devendo: o ijexá de Ogum, cantando e tocando atabaque, e o samba-canção do Chico Buarque. Hoje não durmo enquanto não puser esse trabalho em dia. Daqui a pouco elas vão dormir, apago as luzes da sala, pego meu violão desplugado e faço uns exercícios de escala que me relaxam, ao mesmo tempo que assisto a CNN internacional. Na manutenção simultânea do inglês e dos dedos, penso se vamos liberar a Rosa para dormir na casa de uma amiguinha nesse fim de semana.
20 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_Chegou o equipamento que a Paula comprou: um tripé para segurar o celular e um ring light, aquela luz que fica em volta do aparelho, como uma auréola, para dar uma caprichada no visual. Isso para mim representou uma aceitação de que a gente ainda vai ficar assim por um tempo, de que vai ter que se virar com essa realidade.
Quando a quarentena começou, eu estava com o astral lá em cima: a gente tinha alugado um apartamento novo e tinha um bebê novo. Achei que ia aproveitar esse tempo para colocar as coisas em dia. Meu primeiro baque de quarentena foi com a morte do Aldir Blanc. A gente tinha feito duas músicas juntos, e eu estava para fazer a terceira antes de ele partir. O mais absurdo dessa história era que o Aldir já estava quarentenado fazia uns cinco anos, porque andava deprimido, com síndrome do pânico. Aí teve uma infecção urinária, foi parar no hospital e lá pegou Covid. As pessoas ficaram muito abaladas, não só pelo que ele representa, mas pela maneira estúpida como morreu. Eu chorei muito.
Hoje é dia de dar um rolê pelas lives dos amigos. Passo pela live do Samba do Trabalhador, entro na do Samba da Gávea e termino lá na Teresa Cristina. Quase sempre dou uma canja, troco ideia, mato a saudade. Nessas horas, a gente procura sempre o lugar onde se sente acolhido, compartilhando dores e delícias da nossa frágil vida de artista.
Cada vez tenho visto mais músico disponibilizando a conta bancária nas redes. Artistas grandes, tipo a Angela Ro Ro; saiu até notícia sobre isso. Não sei se fui eu quem inaugurou esse procedimento na quarentena, mas, no meio da minha galera, acho que fui o primeiro. Tenho um pouco de vergonha, mas faço. No meu caso, não fixo o número da conta na live; ela fica num post, caso as pessoas queiram procurar. Cada um faz de um jeito. O pessoal do Samba da Gávea dá o número da conta por inbox, caso alguém peça. Não sei direito como é o sentimento deles em relação a isso. O meu melhorou, mas ainda não é legal. Você se fragiliza, se expõe.
Com a flexibilização da quarentena, eu e meu empresário começamos a pensar se é o caso de fazer uma live em outras locações, tipo um bar, com a banda reduzida, um pequeno deslocamento – e sem público, obviamente. Ele está indo atrás de patrocínio, QR Code para arrecadação, aí é outra história. Também ando com esperança de retomar o projeto de gravar um disco duplo só com canções do Chico Buarque. Estava tudo agendado para abril, com vários convidados, gravadora e o escambau, quando fomos atravessados por essa pandemia.
22 DE JULHO, QUARTA-FEIRA_Quarta-feira, para mim, sempre foi o dia mais bunda. Como terça é a ressaca de segunda, e a segunda é o sábado do músico, quarta acaba sendo o dia em que você realmente faz as coisas que deveria ter feito no início da semana.
Hoje não tenho como fugir do treino nem da faxina. E ainda estou finalizando um trabalho no computador, competindo com uma máquina de lavar e com uma criança chorando na sala, enquanto a Paula fala no telefone com a bebê acoplada ao seio feito um HD externo. A verdade é que a rotina aqui não tem sido das mais tranquilas. Hoje falamos de fé em dias melhores e de reinvenção, que é a palavra da moda. Normalmente, quando falam que você tem que se reinventar, é porque você está, digamos assim, fodido.
A preocupação com grana, por mais raça que se tenha, por mais meditação que se faça, é inevitável. É uma pedra rolando na ribanceira da desilusão, para citar Pedro Caetano e sair por cima. Sorte minha ser inquilino de um amigaço, um notável escritor e compositor que conhece bem a nossa realidade e tem me aliviado no aluguel. Vamos ver até onde a paciência dele aguenta.
Este ano não tem Festa Junina, por causa da pandemia, o que representa mais um baque nas contas, porque minha banda de forró não vai ter onde tocar (além disso, não vou ganhar direitos de uma música minha chamada Fino Trato, que volta e meia toca por aí, nessas festas enormes do Nordeste).
A notícia boa é que o vídeo do Ogum de Ronda ficou pronto e lindo, e já está reverberando nas redes. Outra é que o Instagram me deu um selinho de verificação – aquela bolinha azul que fica do lado do nome da pessoa. Agora eu sou oficialmente uma pessoa pública! Outra besteira moderna que importa.
Antes, o artista era avalizado, seguido e admirado pela sua capacidade técnica, artística, poética e performática. Hoje, o critério é o número de seguidores, views, likes. Garoto suburbano, vira e mexe eu penso nas escolhas que fiz desde que saí de casa. Com todas as dificuldades, não me imagino fazendo outra coisa. Tenho um grupo de WhatsApp com o pessoal da Escola Técnica Federal de Química, onde estudei no ensino médio. Foi ali que meu caminho pragmático e aparentemente seguro fez uma bifurcação. Hoje, quase todos aqueles amigos são engenheiros, farmacêuticos, pesquisadores, nutricionistas, a maioria com seus salários em dia. Pagariam para ver meus shows. Mas que shows? Nem tão cedo vai ter show presencial. E mesmo que libere, quem é que vai?
Amanhã é dia de feira e de live.
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