ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
De madame a xerife
Na ativa aos 68 – e sem dar tiro
Claudia Antunes | Edição 90, Março 2014
Dos viadutos e vias expressas que ligam a Zona Sul do Rio de Janeiro a Nova Iguaçu avistam-se os campanários de mais de dez igrejas. Teresa Maria Rocha de Lima Pezza conhece de cor o trajeto e não precisa interromper a conversa para fazer o sinal da cruz quando passa por cada uma delas. O gesto nada tem a ver com possíveis riscos que enfrentará no destino. “É um hábito que eu tenho desde criança”, explica. Baixinha, loquaz e vaidosa, a católica praticante Teresa Pezza tem 68 anos e é delegada da ativa. Há quase sete anos comanda a unidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, a Deam.
Numa quarta-feira de fevereiro, enquanto rumava para o trabalho num vestido tubinho e de sapatilhas, Teresa não estava lá muito satisfeita com a silhueta. Dias antes, tinha dado uma entrevista à Rede Globo, e a lente exagerara uns quilinhos a mais. “Da próxima vez vou pedir para aparecer no escuro, que nem aquelas testemunhas. Mas não precisa distorcer a voz”, cogitou, rindo, com o erre arredondado do sotaque de Curitiba, onde nasceu. Ela não hesita em cravar como injúria se uma mulher vai dar queixa de que foi chamada de gorda. “É ofensivo. Mexe com a autoestima da pessoa.”
Teresa entrou na polícia aos 48 anos. Formada em biblioteconomia sem exercer a profissão, ela levava “vida de madame”, criando os três filhos que teve com o marido engenheiro, quando decidiu realizar um sonho antigo de cursar direito. No final da faculdade, estagiou no primeiro núcleo de assistência à mulher vítima de violência doméstica do estado. Era 1985, o governador era o gaúcho Leonel Brizola, e o serviço funcionava no Palácio Guanabara, a sede do governo estadual. Como na época só existia no Rio uma delegada – hoje são 133, e 389 homens –, o núcleo era dirigido por uma defensora pública. Teresa guarda um caderno em que colou reportagens sobre a novidade; uma delas anunciava “o fim das Amélias”. Ali botou na cabeça que iria entrar na polícia.
Ela teria que advogar em causa própria para atingir o objetivo. Os primeiros concursos externos para delegado no estado estabeleciam o máximo de 35 anos para o ingresso na função, e Teresa passava dos 40. Na primeira tentativa, ela conseguiu uma liminar para fazer a prova, mas perdeu a ação. Na segunda, levou o caso ao Superior Tribunal de Justiça e venceu. “Eu firmei jurisprudência”, orgulha-se. Na época, um procurador do estado escreveu que na idade dela ser delegada, atividade que exigia “vigor físico”, equivalia a uma mulher operar uma britadeira. Já na polícia, ela cobrou o procurador. “Ele pediu desculpas, disse que não era pessoal. Havia um despacho-padrão e eles só mudavam nome, endereço.”
Quarta-feira não é dos dias mais agitados em delegacias de mulheres. O movimento cresce na segunda e na terça: quando a violência acontece no fim de semana, a mulher espera o agressor sair de casa para ir dar queixa. Mesmo assim, quando Teresa chegou à Deam – um prédio novo perto da rodoviária de Nova Iguaçu – três jovens, duas com os filhos pequenos, faziam registros de ocorrência, e um homem de cara fechada esperava para prestar depoimento.
A “doutora”, como é chamada pelos 25 subordinados, foi se inteirando da programação de “gatos pretos” – o nome da empresa de mudança apelida a operação em que policiais acompanham vítimas para recolher em casa documentos e outros itens essenciais. Depois foi conversar com seu fiel escudeiro, o inspetor Jaime da Costa Morais. “Ele veste a camisa”, avisou.
Uns três palmos mais alto que a delegada, o subchefe Morais lembra um ator de cinema dos anos 50, com seu nariz quadrado e os olhos claros. Ele fala em “empoderamento” da mulher e “desconstrução” do machismo. “Já aconteceu aqui de eu falar com o cara: ‘Você diz que bateu nela porque ela te chamou de veado. Se eu chamar você de veado, você vai fazer o quê? Será que você vai bater? Não vai.’ Então está caracterizado que é covardia.”
Morais já trabalhou em muita delegacia de “enfrentamento”, mas, pai de três filhas, diz que “se descobriu” na atual função. Sua constatação empírica é de que a Lei Maria da Penha, do final de 2006, vem mudando o perfil das ocorrências na Deam. “No início o plantão parecia de hospital: era dente quebrado, braço quebrado, olho roxo. Era sempre lesão corporal, a mulher só vinha reclamar quando era agredida fisicamente. Hoje ela vem registrar ameaça, injúria. Tem mulher que diz: ‘Meu marido está botando as asinhas de fora e eu vou cortar.’”
A lei proibiu que a violência doméstica contra a mulher seja tratada como infração menor, punida com multa ou pagamento de cesta básica, como acontecia antes. Também estabeleceu medidas de proteção à vítima, e determinou que ela só pode desistir da denúncia depois da conclusão do inquérito policial e diante da Justiça. O que acontece com alguma frequência, admitiu a delegada: “É típico isso: ‘Eu só queria dar um susto, não queria que ele fosse preso, não.’ A gente até brinca: polícia não é fantasma.”
Teresa já foi titular das delegacias de Atendimento ao Turista e do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (ela fala inglês, francês e alemão). Em vinte anos de polícia, colecionou a miscelânea que lota sua mesa. Caixas em forma de joaninha (que ganhou com chocolates de uma consulesa), um santo Antônio e uma pomba do Espírito Santo convivem com objetos mais afeitos à corporação, como um cinzeiro em forma de granada, presente de um colega. Contra a previsão do tal procurador, porém, Teresa nunca precisou entrar em tiroteio. “Só dei tiro em curso, em gente nunca.”
O único assunto que a derruba é a aposentadoria. A dela será compulsória em maio de 2015, quando completa 70 anos. Teresa torcia pela PEC da Bengala, o projeto de emenda constitucional que elevaria para 75 anos o limite de idade no funcionalismo. A votação foi congelada pela Câmara em 2013. “Mas eu ainda tenho esperança”, disse, depois de dar um beijinho no ombro para a dieta e saborear um prato respeitável numa churrascaria ali perto.