Crianças na estação de Lviv, rumo à Polônia: antes da guerra, atrás dos políticos poloneses de direita tremulava só a bandeira nacional; agora, aparecem as da União Europeia e da Otan CRÉDITO: BYRON SMITH PARA VII ACADEMI_2022
De súbito, tudo mudou
A multidão de refugiados, o medo polonês de ser o próximo na lista da invasão – e o novo curso da direita radical
Bartosz Józefiak | Edição 187, Abril 2022
De Przemyśl
Tradução de Milena Woitovicz Cardoso, Luiz Henrique Budant e Matheus Moreira Pena
Olga[1] normalmente se mantém firme. Ela só fraqueja quando conta o motivo pelo qual deixou Kiev, a capital da Ucrânia. Sua voz falha: “Saímos no primeiro dia… da guerra”, diz ela. Ao terminar a frase, Olga cobre seu rosto com as mãos e começa a chorar. Ela tem 30 anos e três filhos. Trabalha em uma empresa multinacional da área de tecnologia da informação. Fala inglês com fluência. Todos os seus bens, hoje, se resumem a duas malas, uma sacola e um netbook, no qual ela coloca desenhos animados para distrair os filhos. Neste momento, as crianças estão sentadas na cama de campanha, olhando para a tela.
Conheci Olga no dia 27 de fevereiro, o terceiro dia da guerra, em um ponto de acolhimento de refugiados próximo da fronteira entre a Polônia e a Ucrânia. Naqueles dias, o governo polonês previa receber 1 milhão de ucranianos. Em 19 de março, no 24º dia da invasão russa, o número de refugiados passava de 2 milhões. Além disso, a Polônia já tinha recebido mais de 1 milhão de migrantes que deixaram a Ucrânia em busca de oportunidades econômicas na Polônia. No total, estima-se que sejam em torno de 3,5 milhões, mas já existem alguns cálculos apontando que podem chegar a 5 milhões. Em equivalência da população, é como se o Brasil recebesse, entre migrantes e refugiados, 28 milhões de novos habitantes.
Os especialistas vinham mandando seus alertas de que a escalada de tensão do conflito era muito provável. Mas, até meados de fevereiro, os poloneses não acreditavam nisso. A maioria achava que a movimentação das tropas russas na nossa fronteira com a Ucrânia não passava de um jogo político de Moscou, apenas manobras inofensivas para avançar seus interesses. No dia 24 de fevereiro, a invasão começou – e a opinião pública na Polônia ficou chocada.
A imprensa polonesa chama as ações de Vladimir Putin pelo seu nome – “guerra” e “invasão”, sem recorrer a eufemismos. Também chama os ataques aos civis pelo seu nome – “crimes de guerra”. O noticiário é constante, há novidades de hora em hora, e outros temas praticamente desapareceram do espaço público. Os poloneses estão perfeitamente informados dos crimes de guerra cometidos pelos russos. Sabem do bombardeio do teatro em Mariupol, onde se abrigavam mulheres e crianças. Do bombardeio nos corredores humanitários. Do bombardeio da cidade de Merefa, no qual morreram 21 civis. Do ataque às pessoas que aguardavam na fila do pão em Chernigov. Sabem de todos os detalhes.
As mentiras russas são desmascaradas com certa rapidez e certa eficácia. A OKO.press, um portal de jornalismo investigativo e checagem de fatos, iniciou uma série ironicamente batizada de Govorit Moskva.[2] Na série, praticamente em tempo real, os repórteres debulham os malabarismos da propaganda russa, que tenta justificar a “ação militar especial na Ucrânia”, como a imprensa russa é legalmente obrigada a chamar a invasão do país vizinho.
O mundo inteiro, evidentemente, acompanha a guerra na Ucrânia. Na Polônia, no entanto, o conflito tem uma importância excepcional e por dois motivos. Primeiro: a crise dos refugiados em massa. Segundo: o medo de que a guerra se alastre para o território polonês.
A história dos últimos 250 anos ensinou o medo. No século XVIII, a Polônia foi partilhada pela Rússia, pela Áustria e pela Alemanha. No século XIX, aconteceram os levantes incessantes contra a ocupação czarista. Em 1920, veio a guerra polono-soviética. Em 1939, a União Soviética e a Alemanha nazista selaram o Pacto Molotov-Ribbentrop e dividiram a Polônia entre elas. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, a Polônia sentiu-se traída pelos aliados, que a empurraram para a zona de influência da União Soviética. Em seguida, vieram 45 anos de um regime autoritário apoiado por Moscou. É todo um cardápio de medo.
Sem esse breve resumo, talvez seja impossível compreender a relação entre a Polônia e a Rússia, bem como a política polonesa das últimas três décadas. Como há séculos os poloneses enxergam a Rússia como um agressor, a presença de uma força política que expresse simpatia aberta por Moscou é quase inexistente – à exceção, ainda hoje, da direita mais extrema no país. Nem os pós-comunistas chegaram a tanto. Desde a eclosão da guerra na Ucrânia, não surgiu uma única voz na Polônia que conclamasse – abertamente, esclareça-se – que era preciso “entender a perspectiva de Putin”, como tem acontecido em alguns países ocidentais, entre forças de direita radical e em bolsões da esquerda.
A ideia de ingressar na Otan e na União Europeia era uma prioridade para todos os governos democráticos, mesmo para os pós-comunistas que, pouco antes, haviam trabalhado para um regime que mantinha laços evidentes com Moscou. O resultado é que os poloneses são a nação mais pró-Estados Unidos da Europa. Em Varsóvia, cada grupo político se vangloria, um tentando superar o outro, sobre quantos soldados norte-americanos conseguiu trazer para o território polonês.
Os parceiros ocidentais se surpreendiam com essas posições porque, pelo menos até meados de fevereiro, achavam que um ataque russo à Europa era inimaginável. Os poloneses também achavam, mas não esqueceram a história nem as palavras proféticas do presidente Lech Kaczyński, morto em um acidente de avião em 2010. Durante a guerra-relâmpago entre Rússia e Geórgia, em agosto de 2008, Kaczyński fez uma viagem a Tbilisi, a capital georgiana, e disse o seguinte: “Nós sabemos muito bem que hoje é a Geórgia; amanhã, a Ucrânia; depois de amanhã, os países bálticos; e depois, talvez, seja a hora do meu país, a Polônia.”
Com a invasão russa da Ucrânia, os temores poloneses voltaram com força total. A imprensa está tomada de artigos sobre a pergunta do momento: Até que ponto é possível um ataque da Rússia contra a Polônia? A ameaça nuclear de Putin assustou o mundo, mas estarreceu a Polônia. Uma pesquisa da OKO.press revelou que 72% dos poloneses temem por seu futuro e o de seus familiares – “como nunca antes”. A maioria deles – 54% – acha que a Rússia pode deflagrar um ataque armado à Polônia nos próximos anos.
Tudo isso explica o entusiasmo com que a Polônia recebeu a notícia de que uma força da Otan, composta por 5 mil soldados de reação rápida, estava a caminho do país. Festejou-se a presença de mais tropas norte-americanas nos arredores da cidade de Rzeszów, os voos pelos céus poloneses dos caças F-15 e F-35, dos Eurofighters britânicos, dos Rafales franceses, bem como a instalação do sistema norte-americano antimísseis Patriot. Há muito, o governo polonês vinha reivindicando tal proteção armada, que só se materializou agora. Celebrou-se, por fim, os gestos políticos, como a visita da vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, e do secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, que fez a seguinte promessa: “A Otan protegerá e defenderá cada centímetro do território aliado.”
A Polônia destina anualmente 2% de seu PIB para gastos militares. Em um sinal do temor de que a guerra pode estar à espreita, o Parlamento aprovou – em tempo recorde e com extraordinária unanimidade – a chamada Lei de Defesa da Pátria, que prevê aumentar as despesas militares para 3% do PIB e dobrar o atual efetivo militar de 144 mil para 300 mil, incluindo os homens das Forças de Segurança Territorial.
As marcas da guerra na Ucrânia já estão visíveis na Polônia. À chegada dos mais de 2 milhões de refugiados, essa que é a maior onda migratória na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, os poloneses responderam como de costume: com uma mobilização geral.
No segundo dia da guerra, cheguei à cidade polonesa de Medyka, bem na fronteira com a Ucrânia, e fiquei impressionado com Anna, uma psicoterapeuta, que, no meio da multidão reunida diante de um supermercado, conseguiu localizar Oksana – uma ucraniana que conhecera horas antes pela internet. Anna dirigira por cinco horas para buscar Oksana e seus filhos e levá-los para dentro de sua casa. Nos dias seguintes em que fiquei em Medyka, ações semelhantes já não me causavam surpresa, de tão frequentes.
Ali, na fronteira entre a Polônia e a Ucrânia, há duas realidades. A oficial, na qual policiais controlam o movimento e bombeiros transportam refugiados para os pontos de acolhimento, e a outra – a realidade espontânea e voluntária, organizada por pessoas como Kasia, de 25 anos. Ela veio da cidade de Tychy para distribuir roupas em Medyka. Contou-me que pegou o carro de manhã e viajou até a fronteira. Emilia e Robert, ambos de Krosno, encheram o carro de comida e carregadores extras de bateria de celular e pegaram o rumo da fronteira. Em Przemyśl, ali do lado da Ucrânia, outro senhor, também chamado Robert, quase não aparece mais no seu trabalho. Faz duas semanas que distribui sopa na plataforma aonde chegam os trens que trazem refugiados de Lviv, a cidade ucraniana que se tornou a mais movimentada porta de saída do país. Quando fala sobre as crianças, os olhos do cinquentão se enchem de lágrimas.
Em Przemyśl, um dos maiores pontos de acolhimento fica numa loja abandonada do supermercado Tesco. Os refugiados atravessavam a fronteira e simplesmente se reuniam no estacionamento em frente ao Tesco. O prefeito da cidade ligou para o dono dos galpões abandonados e pediu que a loja fosse reaberta. E a ajuda começou a chegar pela mão dos voluntários. E é assim até agora.
Milhares de motoristas de toda a Polônia ficam horas parados na fronteira, oferecendo transporte e pernoite, distribuindo comida, roupas, café e chá. É uma ajuda sincera. Alguém percebe que os refugiados estão esfomeados – e, sem aviso prévio, aparece um food truck de comida vegana. Alguém observa que estão faltando cobertores, sacos de dormir – e, de repente, todos estão trazendo cobertores e sacos de dormir.
A mobilização ignora posição política, classe, idade, grau de instrução, situação financeira, visão de mundo. Cerca de 61% dos poloneses declaram que já participaram de alguma forma de ação assistencial. É uma ajuda em massa – e isso causou um certo espanto nos próprios poloneses. Uma pesquisa indica que 91% dos entrevistados admitem que foram, eles mesmos, surpreendidos pela mobilização de seus compatriotas.
Há razões para uma acolhida tão generosa. A primeira: os poloneses veem a guerra dos ucranianos como uma guerra também sua, travada em sua própria defesa, contra um inimigo em comum. Consideram que os ucranianos são um povo amigo, uma nação parecida com a deles. A segunda: as agitações nacionais são uma especialidade da Polônia, cuja história é abundante em rebeliões armadas, levantes, revoltas, protestos. O Solidariedade, famoso por ter abalado o regime comunista, começou assim, com uma rebelião comum, improvisada, sem planejamento, na cidade portuária de Gdańsk.
A terceira razão é menos lisonjeira. Os poloneses, talvez por instinto, consideram de antemão que seu governo não cumprirá suas funções. A desconfiança tem longa tradição. Em quase meio século de regime comunista, o país aprendeu que o governo raramente age com eficiência. Depois, em trinta anos de neoliberalismo e privatizações em massa, a população aprendeu que só pode contar consigo mesma. Nessas três décadas, a Polônia nunca teve uma política habitacional de verdade, o serviço de saúde está em permanente colapso, o transporte público vive em crise – a lista é interminável. Por isso, os poloneses lidam com a vida por si mesmos: financiam sua moradia, consultam médicos particulares, usam seus próprios carros.
Se somos assim, tão disponíveis e independentes, por que tanta surpresa com a mobilização, espontânea e massiva, em favor dos refugiados ucranianos?
Em 2015, durante a guerra na Síria, mais de 1 milhão de pessoas chegaram às portas da União Europeia. Em junho daquele ano, um levantamento mostrava que 72% dos poloneses eram a favor de acolher os refugiados de países tomados por conflitos armados. A mídia estava repleta de imagens de gente instalada em abrigos na Grécia e na Itália.
Mas a Polônia estava em plena campanha eleitoral. O partido de direita Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês) foi abertamente contra o acolhimento de qualquer número de refugiados da guerra síria – mesmo que fosse apenas simbólico. O líder do PiS, Jarosław Kaczyński, irmão gêmeo do presidente morto no acidente de avião, ainda se empenhava em difamar os imigrantes, dizendo que “disseminavam doenças”. Com sua retórica pesada contra refugiados, o PiS ganhou – e permanece no poder até os dias de hoje. Além da vitória eleitoral, o partido da direita promoveu uma notável inversão na opinião pública. Em fevereiro de 2016, apenas oito meses depois da pesquisa anterior, só 39% dos poloneses concordavam em ajudar os refugiados.
No segundo semestre de 2021, a hostilidade contra refugiados ganhou novo impulso. O presidente da Belarus, Aleksandr Lukashenko, numa manobra pérfida, atraiu imigrantes do Oriente Médio até a fronteira do seu país com a Polônia – e os forçou a entrar em território polonês. O governo de Varsóvia reagiu com brutalidade. Mobilizou o Exército e a Guarda de Fronteira, decretou estado de emergência e enxotou jornalistas e representantes de ONGs de toda a faixa fronteiriça, enquanto a mídia se enchia de fotos de homens, mulheres e crianças passando dias e noites a fio em florestas e pântanos. Os guardas de fronteira empurravam os imigrantes, também à força, de volta para o lado belarusso, sem reconhecer que tinham direito, ao menos, de pedir asilo na Polônia. Pelo menos doze pessoas morreram.
Nesse conflito contra os refugiados, o governo do PiS enxergou uma possibilidade de aumentar seu apoio popular. O Parlamento prorrogou o estado de emergência com enorme prontidão, destinando 2 bilhões de zlótis (o equivalente a 2,2 bilhões de reais) para a construção de um muro junto à fronteira com a Belarus e legalizou as chamadas operações push back, que forçavam os imigrantes a voltar para o território belarusso.
Hoje, essas mesmas unidades militares recebem os refugiados da Ucrânia de braços abertos. Esse mesmo governo do PiSf declara que receberá todos que escapam da guerra. O site da Guarda de Fronteira informa quantos ucranianos foram recebidos nas últimas 24 horas e quantas pessoas do Oriente Próximo foram mandadas de volta para a Belarus. O tratamento diferenciado não é nenhum constrangimento. Uma pesquisa, também realizada pela oko.press, mostra que 52% dos poloneses concordam com o governo em expulsar os imigrantes de volta para a Belarus. Os mais intolerantes são os mais velhos (acima de 50 anos) e os homens na faixa dos 18-29 anos, cuja primeira escolha partidária é o Konfederacja, uma legenda nacionalista e xenófoba. Em contrapartida, 61% apoiam acolher os ucranianos.
De onde surgiram os dois pesos e as duas medidas
O professor Michał Bilewicz chefia o Centro de Pesquisas sobre Preconceitos, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade de Varsóvia. Em entrevista ao semanário Polityka, Bilewicz explica que a Polônia está colhendo os efeitos de uma campanha difamatória, que uniu políticos e a mídia, durante os atentados terroristas ocorridos na Europa Ocidental. Na época, o noticiário gritava que os terroristas agiam por motivação religiosa, e silenciava sobre a comunidade muçulmana que condenava os atentados. Foi um passo para que os refugiados passassem a ser associados a muçulmanos, e os muçulmanos associados a terroristas.
O sentimento é particularmente forte entre os homens menos escolarizados, que constroem sua identidade com base em clichês nacionalistas. É justamente entre eles que surte mais efeito a caricatura promovida pela direita radical segundo a qual a Polônia é o bastião do cristianismo e, nessa condição, deve proteger a Europa da invasão do islã. Os estereótipos repetidos à exaustão pela direita dos países ocidentais também chegaram à Polônia, de tal modo que não é incomum ouvir-se que “os refugiados vêm para viver de auxílios sociais”. Para Bilewicz, a relativa homogeneidade étnica da Polônia “facilita a disseminação do terror”.
É evidente que as circunstâncias dos refugiados na fronteira com a Belarus são diferentes das dos refugiados na fronteira com a Ucrânia. No primeiro caso, eles chegaram como peões de um jogo político do presidente Lukashenko. Não foram aos postos de fronteira para ingressar no país e, em que pese a presença de mulheres e crianças, eram na maioria homens. No outro caso, os ucranianos fugiram de uma guerra, recorreram aos postos de fronteira e pediram asilo, e a maioria era formada por mulheres e crianças. Nada justifica que o governo polonês tenha voltado as costas aos “muçulmanos”, violando o direito internacional.
A grande diferença, no entanto, é outra. Os ucranianos nunca foram confundidos com terroristas pelos poloneses. Mesmo antes da guerra, já havia entre 1 milhão e 1,3 milhão de ucranianos na Polônia. Eles começaram a pegar empregos nos quais os poloneses não querem trabalhar, sobretudo na área de construção e transporte. Com isso, num país com carência de mão de obra, nunca foram acusados de ocupar o mercado dos nacionais. Ganharam fama de povo trabalhador, falam um idioma similar ao polonês, são cristãos e têm a mesma cor da pele.
Na guerra atual, quem imaginava que o acolhimento generoso dos ucranianos pudesse se estender, pelo menos em parte, aos outros refugiados constatou o contrário. Os sentimentos antimuçulmanos e racistas ressurgiram com maior vigor. Alastraram-se pela internet notícias sobre como homens negros, que fugiram da Belarus para a Ucrânia, estavam maltratando mulheres e crianças. As notícias, quase sempre anônimas, coincidentemente surgiam em contas pró-Rússia, despertando a suspeita de que fossem fake news distribuídas por aliados de Moscou.
Os políticos do Konfederacja, o partido da extrema direita, embarcaram na onda racista. Fizeram circular novamente a notícia – essa verídica – do ataque a faca cometido por um homem não branco, numa loja em Medyka, na fronteira com a Ucrânia. Ninguém morreu e o homem foi preso. Mas o episódio serviu para que bandos de nacionalistas mascarados percorressem as ruas de Przemyśl à noite caçando pessoas de pele escura para “defender as mulheres polonesas”. Três negros que estudavam na Ucrânia e fugiram da guerra foram atacados pelos bandos. Um precisou de cuidados médicos. Os agressores não foram capturados.
Tudo considerado, não há nenhum sinal de que as políticas de acolhimento de refugiados deixem de fazer distinções tão preconceituosas. O governo da Polônia, no entanto, cujo partido promove a intolerância abertamente, já não é exatamente o mesmo.
Até a invasão russa, o governo da Polônia permanecia isolado na arena internacional. Estava atolado num conflito com a Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia, por causa das reformas no Poder Judiciário, que amordaçaram as cortes polonesas. O Solidama Polska (Polônia Solidária), aliado do governista PiS, construía seu capital político descendo o sarrafo na União Europeia. O governo tinha se permitido até mesmo entrar em atrito com os Estados Unidos, ao impedir, por meio de uma lei extraordinária, a participação da norte-americana Discovery na tvn, emissora de tevê independente e crítica ao governo. Em dezembro passado, o presidente Andrzej Duda vetou a lei que prejudicava o grupo Discovery – e, com a guerra, todos os embates arrefeceram.
Os políticos do Solidama Polska se calaram. No máximo, disparam uns tuítes aqui e ali. O primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, outro direitista que até pouco tempo fazia discursos contra a unidade europeia no Parlamento Europeu, agora é todo apelos à união e à imposição do maior número possível de sanções à Rússia. Até os símbolos se repaginaram. Antes, no cenário atrás dos políticos da direita tremulava apenas a bandeira branca e vermelha da Polônia. Agora, aparecem também as bandeiras da União Europeia e da Otan. A mudança maior, porém, aconteceu com o próprio Andrzej Duda.
Em seus sete anos de governo, Duda revelou-se um direitista fraco, dependente e incapaz de sair da sombra do PiS. Era um súdito do partido, liderado por Jarosław Kaczyński, que lhe impôs sucessivas humilhações, às quais Duda suportou calado. Isso, até agora. Sua inflexão começou antes da invasão russa, com o veto à lei que impediria a participação majoritária do grupo Discovery na TVN, e ficou mais clara com a proposta de uma nova reformulação do Judiciário, dessa vez destinada a aliviar um pouco o garrote sobre os magistrados. Duda tomou as duas iniciativas sem fazer uma consulta prévia ao PiS.
Com a eclosão da guerra, ampliou–se a metamorfose presidencial. Duda passou a comportar-se como um líder de verdade. Profere discursos sérios e afinados. Está em permanente contato com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e com os líderes da Otan. Promove ideias pró-Ucrânia na União Europeia. Vetou uma controversa lei sobre a educação, declarando que não queria “dividir a sociedade”. Convocou o Conselho de Segurança Nacional, um órgão consultivo formado por representantes do governo e da oposição – que, até então, sangravam em disputas tribais. No aniversário do ingresso da Polônia na Otan, fez um magnífico discurso, exaltando os méritos de políticos de diferentes matizes na conquista desse sucesso histórico.
Parecem coisas banais, mas não para a Polônia, nem para Duda. Ele era um aliado de Donald Trump. Tanto que, entre os líderes europeus, foi o último a parabenizar Joe Biden pela vitória eleitoral. Agora, louva os laços transatlânticos, faz agradecimentos regulares a Biden e teve uma reunião cordial com Kamala Harris, a vice. Duda, que antes chegou a dizer que a União Europeia era uma “comunidade imaginada”, sugerindo que não passava de uma ficção, agora se empenha em frisar o apego da Polônia aos valores ocidentais e à democracia.
No seu novo figurino, Duda, agora no exercício do segundo mandato, não depende mais do apoio do seu partido, pois está proibido pela lei de tentar uma nova reeleição. É possível que essa circunstância tenha lhe dado mais liberdade de atuação. Especula-se que também esteja preocupado sobre como a história registrará sua passagem pelo poder – e um desempenho relevante no plano internacional não é insignificante. A jornalista Dominika Wielowieyska, do diário Gazeta Wyborcza, diz que, nesses tempos difíceis, os norte-americanos procuravam um interlocutor confiável no governo polonês. Sejam quais forem seus motivos, Duda representa um presidente necessário para o momento histórico. Até os adversários apreciam seu papel.
Com a oposição na defensiva, a situação pode favorecer o partido do governo, porque o eleitor polonês tende a se unir em torno do poder em tempos de crise. Além disso, à exceção de um detalhe ou outro, não há muito que criticar no governo. Há uma quase unanimidade na Polônia com os rumos políticos: ajuda máxima aos refugiados (os ucranianos, claro), ajuda militar ao Exército ucraniano, pressão sobre o Ocidente por mais sanções à Rússia, mais tropas da Otan na Polônia. A Platforma Obywatelska (Plataforma Cívica) e a Polska 2050 (Polônia 2050), principais partidos liberais, praticamente sumiram do debate público.
Embora com vento a favor, o PiS tem flancos abertos. Há anos, o partido, na prática, conduz uma política aplaudida pelo Kremlin. Hoje, numa guinada que só a guerra explica, o PiS finge ser um importante jogador político, mas por anos isolou a Polônia na Europa, travou guerras com a União Europeia, hostilizou o Poder Judiciário, sufocou os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+. Tudo o que o Kremlin de Putin admira. Além disso, o PiS apaixonou-se pela direita extremista da França, com Marine Le Pen, e da Itália, com Matteo Salvini, sem falar do seu principal aliado europeu, o húngaro Viktor Orbán, considerado o farol da extrema direita. Todos esses aliados sempre foram abertamente pró-Rússia, chegaram a ser financiados pelo Kremlin de Putin e, agora, tornaram-se aliados incômodos.
Na vertigem das mudanças na Polônia, os líderes do pis agora criticam publicamente Orbán e fazem um esforço para apagar da memória seu amor por Marine Le Pen. O único partido que ainda segue um roteiro abertamente antiucraniano é o radical Konfederacja, o mesmo que convocou os ataques racistas em Przemyśl. O partido é uma mistura de libertários e nacionalistas, com uma retórica antirrefugiados que rivaliza com o PiS. Faz campanha contra as vacinas e apoia o livre mercado irrestrito. É a única força política capaz de expressar simpatia pelos russos. Acusado de ter contato com Moscou, um de seus líderes, Janusz Korwin-Mikke, já fez elogios públicos a Putin.
O trem que parte de Przemyśl rumo a Cracóvia e Wrocław está lotado. Mães ucranianas com seus filhos viajam de graça. Liuda, que deixou a cidade de Vinnytsia, carrega todos os seus bens em algumas malas. Circula com elas pela plataforma em Cracóvia, empurrando o carrinho com seu filho de 2 anos no meio. Ela está esperando por Damian, antigo colega de trabalho de seu marido – que ficou na Ucrânia para lutar contra os invasores russos. Liuda nunca viu Damian pessoalmente. Vai passar alguns dias na casa dele. Depois, não tem a menor ideia do que fará. Uma outra moça carrega um pedaço de papel com uma palavra anotada: Wrocław, cidade que fica no Oeste da Polônia. Ela não tem nem família, nem amigos lá. Alguém na fronteira lhe disse que é uma cidade grande e que vale a pena tentar a sorte nesse lugar.
A cada dia, chegam mais pessoas assim, quase sem destino. Salas de ginásios esportivos ou estádios esperam por elas. Milhares, talvez milhões de pessoas, passarão essa noite na casa de um polonês, ou na casa de familiares que vivem na Polônia. Ou, ainda, em algum lugar como a Missão Eslava na Europa, uma organização cristã cuja sede fica no Centro de Cracóvia. O térreo de seu prédio se transformou em um depósito para armazenar doações. Voluntários montaram beliches nos andares de cima. Lá, moram mães com seus filhos.
“É óbvio que teremos mais ondas migratórias”, conta-me Siergiusz, que administra o local. “De início, vinham até nós famílias que buscavam abrigo por um tempo. Passavam um ou dois dias aqui e seguiam viagem para encontrar seus familiares ou amigos. Agora, cada vez mais temos casos de pessoas que dormem quatro ou cinco noites por aqui e passariam até mais tempo porque não têm para onde ir. Somos nós que devemos procurar moradia para eles. Só que isso está ficando cada vez mais difícil.”
Os jornalistas relatam que as maiores cidades polonesas já estão superlotadas, e tudo indica que a situação ficará pior. Qual a ideia do governo para solucionar esse problema? Pela lei dos refugiados, quem acolher um ucraniano sob seu teto, assegurando-lhe moradia e alimentação, pode receber 40 zlótis por dia, num limite de sessenta dias – o que resulta, no máximo, em um benefício de 1,2 mil zlótis, o equivalente a 1,4 mil reais. O que acontece depois de dois meses, quando cessa o pagamento? Para onde deverão ir as famílias ucranianas que hoje desfrutam da hospitalidade dos poloneses?
Quem tiver dinheiro poderá alugar um imóvel, mas nem todos podem arcar com esse custo. Afinal, o grosso dos refugiados é formado por mulheres com seus filhos, e nem toda mãe terá condições de trabalhar, nem toda mãe poderá deixar seu filho na escola – e, para complicar, nelas já começam a faltar vagas. Beata Eisler, diretora da Escola Fundamental nº 3, em Cracóvia, contou-me que já abriu duas salas especiais para crianças ucranianas. Já não há mais vagas. Em breve, iniciarão as matrículas para mais uma turma. E depois?
Como se sentirão os pais poloneses ao ouvir que a vaga para seu filho acabou sendo ocupada por uma criança ucraniana? Como se sentirão as famílias que há seis anos aguardam na fila por uma casa num conjunto habitacional popular ao saber que o imóvel destinado a elas foi entregue aos refugiados de Mariupol? O que farão os casais poloneses que procuram um imóvel para alugar quando descobrirem que, desde a eclosão da guerra, a oferta de imóveis para aluguel teve uma queda de 60% e os preços subiram 10%?
Seguindo a tradição, o governo polonês aparenta não enxergar todos esses problemas, muito menos eventuais soluções. O agravamento dessas complicações pode pulverizar a mobilização nacional de caridade. Os ressentimentos começaram a surgir. O Twitter polonês já traz comentários de jornalistas e internautas que questionam: Quem arca com os custos dessa ajuda? É claro que essa narrativa está em perfeita harmonia com a propaganda de Putin. Quem reproduz esses questionamentos, por coincidência ou não, são exatamente as contas que se manifestavam contra a vacinação da Covid.
Olga, que conheci no terceiro dia de guerra, teve sorte. Depois de dois dias no abrigo seguiu viagem com seus dois filhos. A empresa onde trabalhava lhe arranjou um apartamento e um emprego em seu setor na cidade de Wrocław.
Ela caiu em lágrimas duas vezes. A primeira foi quando pronunciou a palavra “guerra”. A segunda, quando contava sobre a travessia da fronteira. De súbito, ela compreendeu que sua vida de antes talvez tenha acabado para sempre. “Será que essa vai ser a minha casa agora?” Sua pergunta certamente passa pela mente de milhões de ucranianos na Polônia. Em breve, todos nós descobriremos a resposta.
[1] Todos os cidadãos refugiados, bem como aqueles que os acolheram, são identificados nesta reportagem apenas pelo primeiro nome para minimizar eventuais riscos à segurança pessoal.
[2] A expressão significa “Moscou falando”. É uma referência à frase com que o famoso locutor Yuri Borisovitch Levitan (1914-83) abria seu programa na rádio Moscou, na União Soviética. Levitan fez os principais anúncios de sua época, incluindo o ataque alemão à União Soviética em 1941, a vitória dos aliados em 1945, a morte de Josef Stálin em 1953 e o primeiro voo espacial de um ser humano, o cosmonauta Yuri Gagarin, em 1961.
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