De la Peña e o primo Carlito: “Encontrá-lo reacendeu o clima amistoso que existia entre nós. Carlito acumulou informações sobre a família e, apesar de nonagenário, conserva boa memória” CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL
O retorno
Uma visita à comunidade quilombola de meus antepassados
Helio de La Peña | Edição 187, Abril 2022
Uma chuva fina caía sobre a BR-101 quando avistei a sinalização: Saída 78 – Dores de Macabu. Eram 14h30 do último dia 7 de janeiro, sexta-feira. Parei o carro no acostamento e, a partir de então, flashes do passado me inundaram. Uma placa luminosa na encruzilhada da BR-101 com a RJ-180 indicava o Posto Ideal. Mentira. Para mim, aquele continuava sendo o Posto Planície, referência das viagens que fiz na infância.
Em 1967, à beira dos 8 anos, eu estava a bordo do valente De Soto 53 com meu pai ao volante e tio Renato de copiloto. No banco traseiro, dois de meus quatro irmãos disputavam espaço comigo, minha avó Filó e sacolas do supermercado Casas da Banha. O carro bebia como gente grande. No porta-malas, além das nossas roupas e dos presentes trazidos pela vó, ia o galão de gasolina que matava a sede voraz do De Soto entre um posto e outro. Naquela época, ninguém considerava o risco de incêndio nem sentia falta dos cintos de segurança. A Ponte Rio-Niterói ainda não existia. Saíamos da Vila da Penha, no subúrbio carioca, contornávamos a Baía de Guanabara, passávamos pelos municípios de Magé, Itaboraí, Rio Bonito e Macaé até finalmente desembocarmos no Posto Planície. Não faço ideia de quanto tempo durava o trajeto, mas era gostoso esticar as pernas à medida que meu pai e tio Renato abasteciam o De Sotão. Do Posto Planície em diante, percorríamos uma estrada de terra que cortava um infindável canavial, salpicado aqui e ali por casas modestas. A estradinha nos conduzia a Dores de Macabu, um distrito rural de Campos dos Goytacazes, cidade do interior fluminense.
Em janeiro passado, mal enveredei pela agora asfaltada RJ-180, a comparação se tornou inevitável. O canavial dera lugar a dezenas de pastos. Eu não teria a menor condição de chegar aonde vivia meu primo Carlito sem a ajuda de um GPS. Na verdade, para fazer aquela viagem, precisei de bem mais do que um GPS. Precisei de uma motivação. Ao longo de vários anos – uns 40, 45 – me mantive longe dos meus parentes maternos e só recebia notícias esparsas deles. Guardava uma lembrança carinhosa do distrito em que moravam, mas nada que me mobilizasse a ponto de refazer o caminho até lá. A ideia de reencontrá-los se impôs apenas quando decidi investigar o meu passado. Justo eu, que por bastante tempo evitei olhar para trás. Na adolescência, sentia vergonha de minha própria história. Nascido e criado na Vila da Penha, de repente me vi bolsista numa escola católica de elite, o Colégio de São Bento, em pleno Centro do Rio de Janeiro. Secretamente, tinha inveja dos meus colegas, a maioria garotos brancos da abastada Zona Sul, muitos deles filhos ou netos de gente importante. Se eu não podia ter o mesmo padrão de vida dos caras, podia ao menos esquecer o meu.
Para ir à escola, tomava dois ônibus. Levava uma hora e meia, quando o trânsito na Avenida Brasil ajudava. Já meus colegas chegavam em trinta minutos, ou menos. Vários tinham carro com motorista. Se chovesse, meu pai me dava carona no De Soto. Pouco antes do colégio, eu pedia para saltar. Não queria que os amigos me vissem na lata-velha. Meu pai dizia:
– Deixa de bobagem, garoto! Está chovendo muito! Subo a ladeira e largo você na porta da escola.
– Pelamordedeus, pai, faz isso não! Me deixa aqui mesmo. Subo a pé rapidinho.
Eu preferia chegar como um pinto molhado a pagar o mico de descer do De Soto e me deparar com o Alfa Romeo zerinho de algum colega. Das diferenças gritantes entre nós, bastava a cor da pele.
Desde bem pequeno, sabia que minha vó Filó vinha de Dores de Macabu. Era costureira e gostava de contar histórias sobre a terra natal, que chamava de roça. As primeiras visitas ao lugarejo – como a de 1967 – me marcaram mais do que as últimas. No subúrbio onde morava, eu levava uma vida tipicamente urbana. Tinha luz elétrica e água encanada, pegava ônibus até o Centro ou Madureira e caminhava por ruas de paralelepípedos, que muitas vezes presenciavam partidas de futebol, com chinelos demarcando o gol. Da janela de nossa casa, podíamos ver a Estrada Vicente de Carvalho, onde passavam os ônibus. Mais adiante, ficavam os campos de várzea em que Carlos Alberto Torres, o “Capita” da Copa de 70, jogou antes de se profissionalizar. Apesar das modernidades, a Vila da Penha daquele tempo ainda guardava alguns traços rurais. Um vizinho que morava no segundo pavimento de um sobrado teimava em andar a cavalo. O sujeito amarrava o bicho numa árvore, junto de seu portão e de um DKW Vemag, modelo 1965, o carro popular da época. No bairro, também existiam inúmeros terrenos baldios, que viravam brejos quando chovia, para a felicidade de rãs, sapos e grilos. O primeiro edifício do nosso quarteirão, conhecido como “O Apartamento”, só ficou pronto mais tarde.
Éramos uma família negra de classe média. Minha mãe, professora primária, me alfabetizou na escola pública em que comecei os estudos. Meu pai, escriturário, trabalhava de terno e gravata na extinta Companhia Docas de Santos e carregava a marmita numa pasta 007. Os dois viveram na mesmíssima casa, com quintal e varanda, por seis décadas – de 1958 até 2018, quando morreram (o pai em fevereiro, a mãe em outubro).
Desembarcar em Dores de Macabu significava mudar totalmente de ares. Quando não viajávamos no De Soto, pegávamos o trem noturno na Estação Leopoldina-Barão de Mauá. O balanço suave do vagão nos embalava a noite inteira. De manhãzinha, saltávamos na pequena estação de Dores, rodeada por uma igreja, meia dúzia de vendas e algumas casas mais arrumadas. Um sobrinho de minha avó nos apanhava de carroça, que enchíamos de malas, bolsas e sacolas. Cruzávamos, então, a estradinha de terra. Enquanto nos afastávamos da estação, as moradias escasseavam e o denso canavial tomava conta da paisagem.
Minha avó mostrava intimidade com o povo. Mandava parar a carroça assim que divisava alguém à beira do caminho. “Você é filho de quem?”, perguntava. Se ouvisse o nome de um conhecido, entregava ao interlocutor um presente – quase sempre, roupas usadas ou brinquedos comprados no Saara, tradicional shopping a céu aberto dos cariocas. Em Dores, só havia pessoas pretas, o que destoava de nosso cotidiano na Vila da Penha, constituído por gente de todas as cores.
Lembro-me de admirar os prédios da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, onde meu pai trabalhava. Na Zona Sul, minha fascinação era Copacabana, bairro em que ficava o consultório de meu médico. Por isso, eu torcia para precisar de uma consulta. O curioso é que sentia certo desconforto tanto naqueles pontos invejáveis do Rio quanto em Dores de Macabu, lugares muito distantes da minha realidade. A Zona Sul, apesar de bonita, me causava incômodo maior, já que eu não conhecia ninguém por lá, fora o dr. Del Vecchio. Em Dores, pelo menos, havia uma porção de parentes calorosos. As crianças da família logo me cercavam e puxavam para correr no meio do canavial ou subir nas árvores. Eu adorava comer frutas tiradas do pé, especialmente goiabas. Quando me sentava embaixo das laranjeiras, imaginava estar no Sítio do Pica-Pau Amarelo. “Vou chupar quantas laranjas-limas quiser!”, anunciava. Mas tinha um problema. Eu não sabia descascá-las. Minha avó acabava indo até as laranjeiras comigo. Não dava para disfarçar: era um garoto da cidade… Sempre que nos acompanhava ao vilarejo, meu pai morria de preocupação. Receava que eu pisasse numa cobra, por exemplo. Tio Máximo e seu filho, o primo Carlito, faziam o desajeitado escriturário montar num cavalo para passear por aquelas bandas. Estendiam o convite a mim, mas o pai não deixava, via perigo em tudo. Foi na casa do tio Máximo, aliás, que a vó me introduziu a uma de suas paixões, a fruta-do-conde, chamada de pinha pelos moradores dali.
Para mim, por diversos anos, Quilombo não passava do nome que batizava a comunidade na periferia de Dores de Macabu onde minha avó nasceu e seus familiares viviam. “Vamos visitar o Quilombo”, informava Filó às vésperas de nossas viagens. Eu não associava a região aos antigos refúgios de escravizados que escapavam das fazendas. Esses eram quilombos com “q” minúsculo – enclaves negros que apareciam nos livros de história e nas aulas do professor Márcio no ensino fundamental do Colégio de São Bento. A simples menção daqueles redutos me causava um tremendo embaraço. Não havia outro preto em minha turma. Mesmo assim, eu queria parecer com os demais meninos da classe. Sonhava em me vestir do jeito deles e ter os cabelos compridos até os ombros. Ingenuamente, pensava que poderia me mimetizar. Mas a ilusão se quebrava toda vez que o professor falava em escravos ou abolição: “Pronto, vão notar que sou preto!” Desde 2017, a Fundação Cultural Palmares reconhece a comunidade da vó como remanescente de um quilombo, o de Lagoa Fea.
Uma das recordações mais vivas que guardo das visitas ao tio Máximo é o cheiro do feijão no fogo. Não me lembro de chegar à casa dele sem que o fogão a lenha estivesse aceso. Os cômodos ficavam gostosamente defumados. A casa humilde, mas ampla, tinha paredes de pau a pique, rebocadas e pintadas de branco. O teto alto não tinha forro nem goteiras. Da janela de madeira que arejava a sala, via-se o caminho que terminava na estradinha de terra. Era preciso subir alguns degraus para alcançar a porta de entrada. A cozinha, nos fundos, dava acesso ao quintal, onde havia um moinho de cana e um depósito para enxadas, pás e ancinhos. No quintal, também estava a parte da casa que mais me atraía: o poço. Um balde amarrado numa corda retirava a água. Tio Máximo e os familiares a usavam para tudo, inclusive beber. Um grande filtro de barro deixava a água pura e fresquinha.
Como não havia luz elétrica, o breu da noite realçava as estrelas. Eu sempre esticava o ouvido na tentativa de acompanhar a conversa noturna dos mais velhos, mas eles baixavam a voz quando o assunto esquentava. Para me botar medo, falavam de mula sem cabeça e outras figuras assombradas que poderiam vir do canavial. Um lampião a querosene iluminava os cômodos com uma luz tênue e amarelada. O “durma bem” – repelente verde, em espiral, que queimava num canto da sala – afugentava os mosquitos. Numa das viagens, minha avó levou um presente valiosíssimo: um lampião Aladim, mais moderno e eficiente que os da casa. Também a querosene, sua base de alumínio se encaixava numa longa cúpula de vidro. O Aladim emitia uma luz tão forte e clara quanto a das lâmpadas fosforescentes. A parentada ficava deslumbrada.
Trocar um colégio público suburbano por outro de elite despertou em mim o complexo do preto-pobre-que-mora-longe, mas me trouxe indiscutíveis vantagens. A mudança de ambiente ocorreu no ensino fundamental. Desesperada com o baixo nível da escola estadual que eu frequentava na Vila da Penha, minha mãe me transferiu para o São Bento, depois de convencer o reitor a me dar uma bolsa parcial. Permaneci lá até concluir o ensino médio. Sempre imaginei que tivesse sido bolsista o tempo inteiro. No entanto, pouco antes de morrer, meu pai revelou que, a partir de certo momento, pagou a mensalidade integral. Ele e minha mãe ainda bancaram a educação de meus quatro irmãos, que estudaram em escolas particulares (sou o mais velho dos cinco filhos). Por isso, levávamos uma vida franciscana. Só podíamos frequentar bons colégios porque a família abdicava de outros luxos.
O São Bento acabou me dando uma ótima formação – tanto que consegui ingressar na disputada Universidade Federal do Rio de Janeiro quando ainda não havia cotas raciais. Cursei engenharia de produção e virei funcionário de uma empresa que tocava um projeto relacionado à usina hidrelétrica de Itaipu. Com o tempo, abandonei a profissão e abracei definitivamente a carreira artística. Entrei na Rede Globo em 1988, como redator do programa tv Pirata. Participei do Casseta & Planeta, Urgente! por quase duas décadas e ganhei uma inesperada fama nacional. Em 1979, adotei o pseudônimo que uso até hoje. Eu tinha 20 anos e já escrevia uma página de humor ao lado de Beto Silva e Marcelo Madureira no tabloide O Repórter. Assinava os textos com meu nome de batismo, Helio Antonio do Couto Filho. Acontece que a página era uma deliciosa baixaria. Meu pai não gostou e exigiu: “Helinho, tire o sobrenome de nossa família daquela lama!” Nasceu, assim, o De La Peña – uma alusão à Vila da Penha, à pena (no sentido de escrita) e à Praça Saens Peña, na Tijuca, onde sonhei morar durante a adolescência.
O ensino rigoroso num colégio distante cortou meus laços com os amigos de infância. Arranjei outras amizades e comecei a frequentar a Zona Sul. Mas meus colegas nunca se despencavam de Copacabana para o subúrbio. Eu nem sequer os convidava. O que eles iriam fazer tão longe, num bairro sem praia, sem cinema, sem uma boa loja de sucos? Eu cobiçava o universo dos meus novos amigos e desvalorizava o de minha família. Não era uma atitude consciente. Em casa, nunca falávamos de questões raciais ou do preconceito de classes. Meus pais só queriam que os filhos se adaptassem ao mundo das oportunidades. Eles provavelmente não achariam respostas para as perguntas que nenhum de nós ousava fazer. Eu sabia que não havia nascido na Zona Sul, que não tinha a pele do poder, mas imaginei que, lutando com minhas armas, poderia me infiltrar. Vai que dá certo… E deu! O sucesso me ajudou a varrer para baixo do tapete o desconforto do percurso. Fingi esquecer o tratamento às vezes desdenhoso que recebia dos brancos, a demora em ser atendido num shopping, o olhar desconfiado dos policiais quando passeava na orla. Eu simplesmente evitava pensar nas coisas que tinham me machucado. Não estava tudo bem agora, afinal?
A decisão de mexer nesse baú veio à tona lentamente, sobretudo depois que alcancei estabilidade financeira e emocional. A morte súbita, precoce e trágica do meu amigo e parceiro Bussunda, em junho de 2006, também contribuiu para a alteração de rota. De repente, saquei que nós, do grupo Casseta & Planeta, não éramos imortais nem tão poderosos. Já não formávamos o bloco único e coeso que invadiu anarquicamente a maior emissora do país e garimpou um espaço fixo na grade de programação. Agora éramos apenas seis indivíduos. Nosso programa continuava um sucesso, mas a ausência do Bussunda nos feria diariamente. Resolvi, então, tentar um caminho solo. Aceitei convites para outros projetos, escrevi livros, fiz novas parcerias.
Em consequência, criei uma relação diferente com o público, que não experimentara antes devido à blindagem do grupo. Jovens negros, fãs do programa, passaram a me abordar. “Você é uma referência”, diziam, para a minha absoluta surpresa. Eu me tornara o único comediante preto no horário nobre da Globo. Existiam outros negros famosos na emissora, mas nenhum estrelava o próprio programa nem liderava a audiência. Como autor e intérprete, evitei me restringir a papéis de bandido, traficante do morro, jogador de futebol ou neguinho esperto, tão comuns entre atores da minha cor. Preferi fazer paródias de Pelé ou Barack Obama e mesmo versões humorísticas de personagens vividos por atrizes brancas, como Malu Mader. Na época, ela interpretava a Maria Clara na novela Celebridade e eu, a Maria Escura em Famosidade.
Paralelamente à minha ascensão na tevê, o debate sobre racismo cresceu no Brasil. Não por acaso, senti necessidade de estudar o assunto, ler relatos biográficos de negros e ouvir ativistas com quem tive contato depois de me engajar em ações sociais. Aos poucos, fui me aproximando de iniciativas como a Central Única das Favelas (Cufa), o Grupo Cultural Afro-Reggae e o jornal Voz das Comunidades. Estreitei relação com as rodas de samba cariocas, o Zeca Pagodinho, o Arlindo Cruz e outros tantos músicos geniais.
Há uns quinze anos, começaram a me perguntar sobre negritude: “O que você acha das cotas raciais nas universidades públicas?” Eu, de início, defendia que as cotas sociais bastavam para garantir uma presença maior de pretos nos cursos superiores. Se boa parte dos pobres é negra, selecionar alunos pelo nível socioeconômico abrandaria tanto a desigualdade de classes quanto a étnica. Eu tirava essa conclusão a partir de minha experiência pessoal, sem perceber que se tratava de uma exceção.
Só depois de analisar os argumentos de defensores das cotas raciais é que mudei de opinião. Eu não levava em conta que cresci num lar estruturado, com pais que davam valor à educação e dispunham de recursos para me proporcionar um ensino de qualidade. Essa, infelizmente, não é a situação em muitas famílias de pretos e pardos. Quantas têm a sorte de matricular os filhos num colégio como o São Bento? Entendi que, por meio das cotas sociais, os estudantes brancos acabam conquistando mais vagas que os negros. Hoje reconheço que as cotas raciais mudaram as salas de aula nas universidades brasileiras. São um mecanismo necessário para a criação de ambientes mais plurais.
Em 2019, lendo o primeiro volume de Escravidão, livro do jornalista Laurentino Gomes, soube dos exames de DNA que rastreiam ancestrais humanos. Fiz um deles e descobri que meus antepassados maternos se originavam de Camarões, na costa ocidental da África – mais especificamente, do povo Ticar. Já minha linhagem paterna remonta à Espanha, o que talvez explique meus olhos verdes. Os resultados do teste me deixaram tão intrigado que senti vontade de conversar com os anciãos da família. Tenho três parentes que passaram dos 90 anos. Um é justamente o primo Carlito. No começo de 2020, decidi visitá-lo, mas a pandemia me obrigou a adiar o plano. Só viajei para Dores de Macabu quando tomei a terceira dose da vacina contra a Covid. Pela primeira vez, encarei o Quilombo como um quilombo com letra minúscula e admiti que meus familiares são quilombolas.
O Carlito que conheci na infância e na adolescência chamava a atenção pelo corpo musculoso, daqueles difíceis de esculpir mesmo quando se passa o dia levantando ferro na academia. Ele havia carregado dormentes para a antiga Rede Ferroviária Federal e trabalhara de estivador no porto do Rio. Gozador, esbanjava simpatia e não dispensava um papinho. Encontrá-lo novamente reacendeu o clima amistoso que existia entre nós. Como sempre gostou de escutar os mais velhos, Carlito acumulou informações sobre a família e, apesar de nonagenário, conserva boa memória.
Eu sempre chamei o pai dele de tio, ainda que não soubesse exatamente qual era a relação do Máximo com minha avó. Carlito esclareceu. Na verdade, Máximo não era meu tio, mas meio-irmão de meu bisavô materno, o pai da vó Filó. Os dois tinham a mesma mãe, uma ex-escravizada de nome Leocádia. Acredito que minha avó nunca me falou dela. Se chegou a falar, esqueci totalmente.
Carlito também confirmou que a mãe da vó Filó morreu cedo, com 32 anos. Por isso, Carolina – avó de minha avó – criou a neta. Era uma negra alta e forte, que ajudava muita gente e fazia o papel de Samu no quilombo de Dores. Quando uma pessoa adoecia, Carolina a recebia em casa e tentava curá-la. Caso não desse certo, levava o paciente nos ombros até o posto de saúde. Ela impunha moral e, se preciso, enfrentava as autoridades.
Diz a lenda familiar que, uma vez, rolou um baile noturno na sala de Carolina. Enquanto os convidados dançavam e cantavam à luz de lampião, um delegado apareceu e mandou parar o fuzuê. Carolina estava longe da sala. Assim que notou o silêncio e a escuridão (o delegado apagara a luz), voltou para checar o que havia acontecido. Furiosa, reacendeu o lampião e reiniciou o baile. Em seguida, correu até a porta e gritou: “Se tu é homem, Juca, entra aqui de novo e apaga essa luz!” O delegado, que se afastara da casa, não retornou.
Carolina nunca foi escravizada porque se beneficiou da Lei do Ventre Livre. Já Manoel Moço e Epifânia, avós maternos de Carlito, tiveram que trabalhar cativos na Fazenda Machadinha, em Quissamã, município vizinho de Dores. Erguida no século XIX e hoje desativada, a propriedade é famosa na região. Pertenceu a Ana de Loreto Viana de Lima, filha do Duque de Caxias, o patrono do Exército brasileiro. Em 1979, o governo estadual a tombou com o intuito de honrar a memória dos escravizados que ali penaram.
Como a notícia da minha visita a Dores de Macabu correu pelas redes sociais, recebi um convite para conhecer o Complexo Cultural Fazenda Machadinha, que funciona dentro da propriedade. Fui em companhia de Fabiano, Rivany e Zé Ricardo, filhos e genro de Carlito, respectivamente. Nenhum dos três havia pisado lá. No complexo, batemos um papo com dona Dalma. Ela integra um grupo de duzentos quilombolas que ainda moram na fazenda e num sítio contíguo, o Santa Luzia, doado a um casal de ex-escravizados. Dona Dalma nos disse que, depois de libertos e sem saber aonde ir, vários negros lutaram para permanecer nas senzalas da Machadinha, que se tornou um “quilombo de resistência”. Eles e seus descendentes preservaram a história, os costumes e mesmo os objetos do tempo da escravidão. Os quilombolas de Dores, em contrapartida, habituaram-se ao silêncio. Afinal, seus antepassados chegaram àquelas terras de difícil acesso para se esconder, depois de fugirem dos senhores. Traziam unicamente a roupa do corpo e fundaram um “quilombo de refúgio”. O silêncio fazia parte da estratégia de sobrevivência. Daí a dificuldade de conseguir informações mais detalhadas sobre meus ancestrais.
Deixamos a fazenda muito impressionados com o que aprendemos. Na volta, Fabiano, Rivany e Zé Ricardo me mostraram os restos da estação ferroviária de Dores, onde desembarquei tantas vezes. Perto de um lugarejo chamado Rela, os filhos e o genro de Carlito pediram para eu estacionar o carro. Contaram, então, um “causo” de que já não me recordava. A população local considerava aquela área mal-assombrada. Criaturas sobrenaturais apareceriam à noite, diante de uma árvore centenária, e assustariam os passantes. Meus parentes lembraram que, numa das últimas vezes em que estive na roça com a família, peguei a Variant de meu pai e dei um giro noturno pelas redondezas. Filó e Carlito me acompanhavam. Quando chegamos à zona fantasmagórica, parei a Variant, desliguei o motor e o farol, abri a porta, saí e berrei: “Vem, boitatá! Vem, mula sem cabeça!” Enquanto eu desafiava os mitos, a vó se apavorava: “Helinho, não faz isso! Volta já para o carro! Vamos embora daqui!” É bem possível que a travessura tenha acontecido. Desde pequeno, me amarro em zoar amigos e familiares. Aprendi justamente com a vó Filó…
A viagem me reaproximou não apenas de Carlito, mas também dos filhos mais velhos dele, que brincaram comigo na infância – Genivaldo, Rivany e Carminha. De quebra, conheci melhor os mais novos, Rodrigo, Kelly e Fabiano. É grande a minha alegria por estar me apaziguando com o passado. Não vou levar outros quarenta anos para voltar ao quilombo de Dores de Macabu.