"Fui colocado à prova antes do jantar. Eu era de confiança? Os meus desenhos eram esquisitos, estranhamente europeus aos olhos dos americanos. Vai ver eu era um comunista" FOTO: ANNA STEADMAN
Delírio da era Gonzo
Como um repórter e um ilustrador malucos curtiram a porra-louquice dos anos 70
Ralph Steadman | Edição 20, Maio 2008
Segundo definição do New York Times, o ilustrador Ralph Steadman, nascido no País de Gales, é um bravo: conseguiu sobreviver a mais de três décadas de colaboração com o repórter mais encrenqueiro de sua época – o lendário Hunter S. Thompson. Eles formaram a dupla improvável e alucinada que criou o jornalismo gonzo. O traço ácido e impiedoso de Steadman traduz à perfeição a prosa insanamente feroz de Hunter.
“Não se meta a escrever, Ralph. Se você o fizer, manchará o nome de sua família”, advertiu Hunter. Steadman, de 72 anos, não só deixou o conselho de lado como usou a frase como epígrafe do seu livro de memórias, do qual foi extraído esse diário.
Hunter S. Thompson se suicidou, em 2005, com um tiro na cabeça. Suas cinzas foram disparadas de um canhão, ao som de Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan.
SETEMBRO DE 1970_A America’s Cup
Recebi uma carta de Hunter, datada de 18 de julho de 1970. “Prepare-se”, escreveu, “acho que topamos com um filão incrível, cheio de possibilidades.” Um de seus amigos tinha visto uma reportagem que havíamos feito juntos e sugeriu a Hunter que viajássemos pelo país afora, dando uma sacaneada em tudo. “Vocês dois podiam ir de Nova York até a Califórnia e jogar o veneno de vocês em cima de tudo o que o povo respeita!” Hunter listava possíveis pautas e lugares:
O campeonato nacional de futebol americano, o Times Square na noite de Ano-Novo, o Mardi Gras, o torneio nacional de golfe, a America’s Cup, o Natal com o chefe da polícia de Chicago, o concurso de Miss América em Atlantic City, o Grande Rodeio Nacional em Denver… Vamos encher o pé e chutar o balde!
Hunter queria começar imediatamente. Estava intoxicado com a idéia e acabou me contagiando. E continuava:
A gente pode ir a praticamente qualquer lugar & mandar uma série de artigos tão anárquicos & aterradores que o mundo jornalístico jamais será o mesmo. Ficará zonzo. Já pensou nas possibilidades alucinantes de uma empreitada como essa? Pura loucura… numa escala nunca vista até hoje… a gente pode viajar com cortesãs e com carregadores de bagagem, voando de um lugar para o outro, num delírio de drogas e de bebida. Já pensou?
As possibilidades artísticas são fantásticas, mas terei uma certa dificuldade na hora de escrever – o projeto exigirá pesquisa, citações etc. Como reportagem, acho que pode render algo forte. E muito oportuno, em termos de política americana. Do jeito que as coisas vão, acho que estamos mesmo precisando de um troço assim. Ciao… Hunter.
Eu deveria ir ao encontro de Hunter em Nova York e depois seguiríamos para Newport, em Rhode Island, onde, todo ano, velejadores musculosos fazem de tudo para não deixar o seu barco virar, enquanto competem com as tripulações de outros barcos. Juntos, avançam em ziguezague por um percurso determinado, e cada grupo tenta levar a melhor, usando o vento, táticas diversas e força bruta. Cada barco custa o equivalente a uma universidade nova. Todos são observados por marmanjos com pinta de iatista e encharcados de gim – são homens e mulheres de quepe de capitão que ficam esparramados em espreguiçadeiras, dentro de uns cercadinhos cobertos de acrílico transparente, na proa de verdadeiras casas de campo flutuantes, e que são pura e simplesmente a expressão vulgar e chique da riqueza deletéria. A isso se chama de America’s Cup.
No ônibus para o aeroporto, Hunter engoliu uma ou talvez duas pílulas amarelas, não muito diferentes do Diazepam. Imaginei que estivesse fazendo algum tratamento – o tipo de tratamento a respeito do qual você não pergunta nada a quem não conhece bem. Achei que ele talvez estivesse angustiado. Até então, eu ainda não tinha intimidade alguma com nenhum americano, e imaginei que talvez todos tomassem pílulas para agüentar a responsabilidade de serem os guardiões do Mundo Livre.
Chegamos ao aeroporto La Guardia, em Nova York, para embarcar num vôo para Boston, e dali seguiríamos num avião pequeno até Newport, o local da regata. Antes de todo e qualquer vôo, curto ou longo, fico nervoso e um ou dois drinques, em geral, alcançam o mais íntimo do meu ser, dando-me a coragem que não consigo extrair da religião. Logo ficou claro que Hunter também estava disposto a beber e foi assim, com os nossos corações mais leves, que embarcamos no vôo A157.
– Você gosta de barcos? – perguntou Hunter.
– São legais – respondi –, mas só quando estão em água rasa, que dá pé, e se eu puder andar até a margem sempre que tiver vontade.
– Não esquenta a cabeça, Ralph. Se a gente se ferrar, incluímos o desastre na reportagem, certo? Ah, também vamos ter uma banda de rock a bordo para animar todo mundo.
Fiz que sim com a cabeça e olhei pela janelinha do avião. Quando se está em início de carreira, é melhor não fazer perguntas.
Em Newport, Hunter localizou sem dificuldades a nossa embarcação. Era de madeira velha bem envernizada, com tábuas gastas no convés. Seguro como uma casa, pelo que diziam. Tinha 15 metros de comprimento e cortava a água de um modo extremamente elegante. Tratei de descer até a cabine e, sentado no meu beliche, relaxei. Mas mantive todas as minhas coisas dentro da maleta. Na verdade, elas não saíram dali a semana inteira. Hunter, por sua vez, já havia caído no sono, no beliche ao lado, e roncava suavemente.
Resolvi subir ao tombadilho e dar uma sacada no ambiente, tentando imaginar qual é a sensação de ser um velho lobo-do-mar. Me plantei na proa do barco, acendi um cigarro e enchi o peito de ar. Pus as mãos nas costas e fiquei parado, de pé, de pernas abertas, olhando para o oceano – para muito além da frota de iates de luxo atracados na baía. Tentei imaginar o ambiente social que deveria reinar dentro das saletas desses iates. Haveria homens de quepe e jaquetão marinho com adereços dourados, homens da cidade paramentados para a ocasião, empunhando charutões e segurando copos cheios de gim. Mulheres lânguidas de todo tipo e formato, piranhudas, chiques, peitudas, despreocupadas, bem como outras que tinham conseguido enfrentar a passagem dos anos com o auxílio de esticamentos faciais e plásticas diversas.
Esse cenário bastante previsível era parte da razão de estarmos ali. Somados aos marinheiros hercúleos que manejavam os dois barcos participantes da regata – o Intrepid, dos Estados Unidos, e o Gretel II, da Austrália –, todos seriam nossos inimigos. De fato, me sentia um estranho naquele ninho, o que foi bom. Eu precisava do estímulo do confronto “eles” versus “nós” para tornar ferozes os desenhos que viesse a produzir sobre a America’s Cup.
Enquanto eu aguçava a lâmina das minhas inclinações sediciosas e as aquecia até o ponto de fervura, um novo grupo havia embarcado. Quatro caras cabeludos, no rigor da moda, içavam a bordo suas malas e o que pareciam ser instrumentos de uma orquestra. Em meio a um turbilhão de apertos de mão e de saudações, fui apresentado à tal banda de rock. Lembro que achei que eles deviam ter tanta familiaridade com a proa de um barco quanto com a popa. Eles compunham o resto da nossa tripulação – o entretenimento.
E lá se foram os músicos, aos trambolhões, para a cabine abarrotada. Isso reacendeu minha inquietação. Hunter, agora, estava acordado e a cerveja passava de mão em mão enquanto nos conhecíamos melhor. Ficamos encarcerados naquela toca infernal durante uma semana, tempo em que tentamos entreter o público das regatas com música em volume alto, e eu – sim, eu! – tocando bongô. Transformamo-nos num barco de idiotas perigosos, que se revelaram como a única distração existente na baía.
Em mar aberto, na região conhecida como Estreito de Rhode Island, onde as regatas estavam sendo disputadas, o vento havia baixado a quase zero e a competição se arrastava. Quase nada acontecia. Sobretudo para a turma do gim, que fora seduzida a acompanhar o evento com promessas de bebida infinita – o que era verdade – e empolgantes demonstrações de destreza náutica pelas feras do esporte – o que não era. A menos, é claro, que você estivesse disputando a regata. Para um espectador, era tudo um saco. Hunter permaneceu na cabine, dormindo. O balanço do barco parecia não ter o menor efeito sobre ele. Continuava devorando pílulas amarelas como se fossem balas.
No dia da regata final, não se percebia nenhuma ação frenética nos dois barcos em disputa. Alguns dos iates de luxo tinham até começado a se mandar. Hunter apareceu e sugeriu um passeio pelo cais e pelas enseadas da marina para batermos um papo sobre qual seria a nossa matéria. Como ainda não tínhamos nenhuma reportagem em vista, uma caminhada à toa em terra firme e uma inspeção do local onde o Intrepid e o Gretel II ancoravam à noite poderiam nos dar alguma grande idéia. Ademais, o nosso dinheiro estava acabando e um telefonema para a redação do Scanlan’s nos pareceu oportuno. Acabou sendo a pior idéia possível, pois nos informaram, muito calmamente, que a revista estava fechando as portas e aquele seria o seu último número. A nossa reportagem – se é que tínhamos alguma – seria também a última.
Decidimos então andar à toa pelas lojinhas do cais, examinando todo tipo de artigos. Foi numa dessas lojas que Hunter comprou um canivete grande, com lâmina de ponta arredondada, daqueles usados por escoteiros para extrair pedrinhas de cascos dos cavalos. Eu conhecia muito bem essa lâmina.
– Por que você comprou isso? – perguntei.
– Sei lá, pode servir – respondeu.
– Servir para quê? – insisti.
– Não sei, Ralph, comprei num impulso.
Não insisti. Demos o nosso passeio e registramos o local onde os barcos ficariam atracados quando retornassem da regata. Hunter tomava nota de tudo cuidadosamente, ao mesmo tempo que perguntava se no dia seguinte haveria uma exposição pública dos barcos, antes de serem empacotados até a America’s Cup do ano seguinte. Aprendi, na ocasião, que cada barco media 12 metros de comprimento e o americano Intrepid era não só o favorito, como também um barco revolucionário. Era o primeiro “Doze”, como o chamavam, a ter leme e quilha separados. O projetista, Olin Stephens, mundialmente conceituado, tinha construído aquela embarcação com pranchas duplas de mogno sobre um arcabouço de carvalho branco, sem medir custos. Era o supra-sumo, a última palavra, sim, senhor! Tinha vencido a America’s Cup de 1967 e esperava-se que desse um baile no desafiante australiano, o Gretel II, também naquele ano.
Voltamos ao lugar das lojinhas.
– Que tal um drinque? – falei. – Ainda estou meio enjoado, e às vezes um uísque e uma cerveja resolvem.
– Topo.
– Aliás, que pilulazinhas são essas que você vive tomando?
– Elas me conservam são e esperançoso. Por quê?
– Pensei que você estivesse com algum problema de saúde.
– Nada disso, porra! Estou forte feito um touro.
– Será que elas curam o meu enjôo?
– Pode ser – respondeu Hunter. – Mas, para você, basta uma.
– Tudo bem – respondi. – Vou experimentar.
– A responsabilidade é sua – disse ele, e me entregou uma pílula.
Engoli e perguntei:
– O que acontece agora?
– Durante a primeira hora, nada – disse Hunter. – Depois, você pode se sentir meio esquisito.
– Tudo bem – falei. – Vamos lá tomar um drinque.
Comecei a me sentir esquisito. O irmão de Richard Nixon – pelo menos acho que era o irmão dele – estava encostado ao piano, com o corpo na diagonal; conversava com ar indiferente com uns outros caras de olhos vermelhos com pinta de iatistas, e não dava a menor bola para uns cachorros que rosnavam e também tinham olhos vermelhos – cachorros dos quais eu tentava me esquivar. As pessoas começavam a derreter e eu me sentia incrivelmente bem. Para onde quer que olhasse, eu via iatistas que, por mais parrudos que fossem, derretiam e sumiam no ar. Naquele momento, eu era o rei do pedaço. Hunter estava ali comigo, me vigiando. Me seguia feito uma babá.
– Acho que está na hora da gente voltar para o nosso barco. A gente precisa conversar – disse Hunter.
Embora de estilo meio desajeitado, Hunter era bom no manejo de remos e embicou um pequeno bote em direção ao nosso barco. A água batia mansa no casco e tudo estava sossegado. Na verdade, a baía inteira parecia sossegada. A lua brilhante penetrava no mar como cacos e os meus sentidos estavam num estado de alerta anormal. Fiquei muito ligado em detalhes de todas as superfícies que via. Passei a observar as cabeças dos pregos no casco do bote, que luziam ao luar. Peças de metal do barco brilhavam feito faróis, e os cabos náuticos reluziam como fios elétricos em chamas. Tocar em qualquer superfície me dava a sensação de mexer em pele de dinossauro. Quando olhei para o cais, imaginei estar vendo a face de um penhasco afundando no mar.
Não lembro quanto tempo essa sensação durou, mas aos poucos comecei a me dar conta de que eu tinha embarcado numa tremenda viagem, que nada tinha a ver com bebida. Eu sabia que a minha mente tinha sido seqüestrada e que eu estava nas mãos de uma fera assassina.
– Ralph. Ainda temos uma matéria para fazer – comentou Hunter.
– Então vamos fazê-la logo, agora, de uma vez. Estou aí para o que der e vier – respondi.
– O que der e vier?
– O que der e vier – respondi com entusiasmo.
– Bom… Você lembra que a gente andou pelo cais hoje à tarde, vendo o lugar onde os barcos ficam atracados, não é?
– Lembro, e daí? O que é que vamos fazer?
– Você! Ralph! O que você vai fazer?
– Eu? Mas sou só um artista!
– Mas você é cheio de idéias – Hunter me encarou de frente.
– E daí…? – Eu estava confuso.
Foi naquele momento que Hunter pegou duas latinhas de spray – uma preta e a outra vermelha.
– Comprei isto aqui enquanto esperava você lá em Nova York. Eu não sabia que íamos precisar disto, mas como até agora a gente não tem nenhuma idéia de reportagem…
– E daí? Para que são essas latinhas de tinta?
– O artista é você, Ralph. O que sugere?
–Algo pirado, numa parede! – sugeri.
– Tudo bem – respondeu Hunter. – Mas, o quê? Você é o ilustrador que veio da Inglaterra. Talvez alguma coisa sobre o IRA?
– Nem pensar! – retruquei. – Que tal uma pichação com os dizeres FODA-SE O PAPA na lateral de um dos iates?
– Caramba, Ralph! Você é católico?
– Nada a ver. Foi só algo que me veio à cabeça.
– Se você está mesmo falando sério, vamos lá. Garanto que posso remar este botezinho no meio dos píeres até chegarmos aos dois barcos da regata. O resto é por sua conta. De manhã, quando a tripulação levar o barco para a enseada, vão perceber o ato escroto de vandalismo e blasfêmia que você perpetrou. – Um sorriso sacana atravessou o seu rosto.
Conseguimos chegar ao local em que estavam atracados o Gretel II e o Intrepid. Uma corrente fechava o acesso entre os dois píeres e uma tabuleta avisava: “Não entre.” Hunter agia no maior silêncio e me sinalizou, com o dedo nos lábios, para também não fazer barulho. A lua era uma mera bola branca, mas os reflexos cintilantes nas ondulações do mar me pareciam estranhamente vermelhos. Um dos barcos estava na sombra lunar e Hunter dirigiu o bote em sua direção. Avançamos silenciosamente entre aquelas duas formidáveis máquinas que agora me pareciam canivetes flutuantes, iguais ao que Hunter tinha comprado à tarde.
– É agora ou nunca – ele me sussurrou.
Peguei a lata preta de spray, levantei na altura da minha cara e sacudi, como todo mundo faz, para misturar bem a tinta. Soou um chocalho tremendamente barulhento dentro da latinha.
Uma voz do alto do píer berrou:
– Ei! Quem está aí embaixo?
Hunter rosnou um palavrão e sussurrou, com voz abafada:
– Caralho! Essa não, Ralph! Fracassamos. Num minuto, isto aqui vai estar infestado de policiais. Temos de dar o fora!
Uma lanterna lá em cima nos localizou e uma voz gritou:
– O que estão fazendo aí embaixo? Essa área está isolada, não viram a tabuleta na corrente?
– A gente estava só dando uma olhada nos barcos – respondeu Hunter.
Em seguida, cochichou para mim:
– Temos de cair fora, Ralph. Isto aqui logo vai ficar infestado de policiais e cachorros farejadores. Temos de cair fora!
Hunter sacou uma pistola de cano largo de sua mochila.
– Para que diabo é isso? – perguntei.
– É uma pistola de sinalização, usada quando um barco está em perigo – respondeu. – Vai iluminar o cais inteiro e o pessoal vai ficar tão estarrecido ao ver um desses foguetes que nem vai ter cabeça para nos procurar. E enquanto isso a gente dá no pé!
De fato, clarões vermelhos e verdes dispararam da arma em rápida sucessão. Um deles, depois de alcançar o topo do seu arco, caiu em cheio, ainda flamejante, no tombadilho de madeira de um iate que, até aquele momento, não corria o menor perigo. A baía inteira virou um hospício. Incêndios em barcos são coisa séria, sobretudo numa enseada fechada, e mais ainda quando um sinal de S.O.S alerta uma cidade como Newport de que alguma coisa está acontecendo. Essas engenhocas são capazes de iluminar uma área de vários quilômetros quadrados em pleno oceano Atlântico, e representam uma questão de vida ou morte. Em meio ao pânico geral – um carro de bombeiro já tinha chegado ao local –, Hunter acenou para um barco pesqueiro retardatário que voltava do mar, como se fôssemos sobreviventes desesperados. Felizmente, ninguém fez nenhuma pergunta. Estavam todos muito atarefados e nós dávamos a impressão de estarmos de fato em apuros.
A idéia era sairmos logo de Newport, e Hunter alugou um avião Cessna com o seu cartão de crédito para irmos a Boston. Só que eu ainda estava aterrissando da minha horrenda experiência mental. Na pressa da partida, tinha perdido os sapatos e a maior parte das coisas da minha maleta, mas a viagem de avião para Boston transcorreu dentro dos limites da razão. Eu cochilava de vez em quando, e acordava assustado toda vez que o avião entrava em uma turbulência. Só que a paranóia crava fundo no coração da gente e, quando o avião pousou, comecei a olhar em volta em busca de sinais da presença de patrulhas policiais atrás de dois malucos que tinham acabado de tentar pichar “FODA-SE O PAPA!” no casco de um iate de muitos milhões de dólares. Eu espreitava atrás das colunas e me escondia dentro dos banheiros.
Hunter, enquanto isso, disparava telefonemas para a redação da Scanlan’s tentando arranjar alguém para me buscar no aeroporto de Nova York quando eu lá chegasse. Será que fiquei mesmo doidão por noventa horas? Hunter me garantiu que sim. Pediu desculpas por ter de me abandonar em Boston para pegar um vôo para Denver, rumo à sua casa, mas me tranqüilizou dizendo que alguém iria me esperar em Nova York.
– É a sua bagagem, senhor?
– É… mais ou menos. Tive um problema num iate… a água subiu, levou a maior parte. Uma mala novinha foi embora também.
– Primeira vez?
– Primeira vez o quê?
– Num iate.
– Ah, sim, e nunca mais. Não nasci para isso, eu acho. Estou louco para chegar em casa.
– Dá para ver. Tenha um bom vôo.
Quando embarquei, insisti em ficar de pé, na traseira, perto da cozinha, agarrado ao dorso de um assento. Hoje, o meu comportamento me levaria a ser preso ali mesmo e conduzido para fora do avião, sob escolta. Mas isso aconteceu em 1970 e Laila Khaled mal tinha acabado de realizar um dos primeiros seqüestros aéreos. Ainda era possível se comportar de um modo estranho dentro de um avião sem que se fizessem associações. Tampouco existiam normas de segurança que proibissem os passageiros de ficar em pé durante a viagem inteira. Aleguei ter uma doença rara, que me impedia de sentar quando estava em movimento. Meus olhos injetados de sangue e minha fisionomia aterrorizada garantiram à aeromoça que eu estava sendo sincero. A aeromoça sorriu nervosamente e demonstrou uma preocupação solidária.
Boston-Nova York foi um vôo curto e permaneci agarrado àquele assento o tempo todo. Na verdade, não tive nenhum problema. Minha mala entrou na esteira rolante na mesma hora que cheguei à sala de bagagens, e fui logo ver se havia alguém da Scanlan’s me esperando. Ninguém apareceu, é claro.
Peguei um táxi e perguntei o preço da corrida até a cidade. Eu estava com sorte: seriam 23 dólares e eu tinha 25 no bolso, o que só podia ser uma dádiva de Deus. Cheguei à redação da revista e ela estava fechada. Desci para o Bar Irlandês, no térreo, que felizmente estava aberto. O garçom, de quem tinha ficado amigo anteriormente, fez um comentário sobre a minha aparência.
– Eu sei – respondi – e estou meio enrolado. Será que você pode me emprestar 25 centavos para eu dar um telefonema local?
Ele emprestou, Deus o abençoe, e liguei para o único número que conhecia em Nova York, o da casa de uma adorável senhora chamada Ann Beneduce. Eu a havia conhecido um ano antes, em Bolonha, na Feira do Livro Infantil. Ela se lembrava de mim por ter ido parar no hospital quando forcei uma curva e fiz despencar numa vala o carro em que a levava de volta ao hotel, depois de uma festa. Ela fraturou algumas costelas, mas já estava bem. Tentei lhe contar a minha situação e sua resposta foi certeira:
– Pegue um táxi. Eu pago a corrida na chegada.
Quando cheguei, Ann estava parada na porta da sua casa.
– Meu Deus! – exclamou. – Você está quase roxo! Vou chamar um médico.
Desabei num sofá e só lembro que depois disso havia um médico sentado ao meu lado com uma seringa na mão.
Devo ter apagado por 24 horas, porque quando acordei já era domingo à tarde. Ann salvou a minha vida e lhe serei grato para sempre. Mais calmo, contei o que tinha acontecido e ela não pareceu surpresa. Naquele mesmo dia, desenhei um barco de competição que parece uma faca cortando a água, com a inscrição FODA-SE O PAPA brilhando contra o luar.
VERÃO DE 1971_Medo e delírio
Foi Bill Cardoso, um jornalista do Boston Globe, que cunhou a expressão que ficaria famosa. Numa carta a Hunter, ele escreveu: “Cara! Aquela sua reportagem sobre o Derby estava fantástica! Puro GONZO!” Era a primeira vez que Hunter, ou eu, ouvimos a palavra “gonzo”. Hunter a adotou imediatamente e a transformou em coisa sua. Mas, ao mesmo tempo, racionalizou o conceito, definindo-o como um “estilo” de “reportagem”, baseado na idéia de William Faulkner de que a melhor ficção é, de longe, mais verdadeira do que o jornalismo.
Na concepção de Hunter, bastava comprar um bloco de anotações bem grosso, de espiral, anotar tudo à medida que ia acontecendo, e publicar o todo exatamente em sua forma original – como um fac-símile –, sem revisar. Ele queria transmitir a sensação de que a sua mente e olhos operavam simultaneamente, como uma foto de Cartier-Bresson – nada de cortes –, o negativo por inteiro, sem a costumeira manipulação na câmara escura. Hunter almejava conseguir retratar o que ocorria na sua mente. Para tanto, fundiu os talentos de um jornalista afiado, o olho de um fotógrafo de arte e os colhões de um ator.
No início de 1971, recebi outra carta de Hunter. Junto veio um manuscrito delirante no qual ele andava trabalhando. “Uma coisa experimental”, explicou. Queria saber se eu podia ilustrar um texto dele, de modo a exprimir o horror pelo qual passara em companhia de um homem chamado Oscar Acosta, um “advogado de Samoa”, pé-de-chinelo, que defendia os direitos dos chicanos.
O caso era o seguinte: Ruben Salazar, locutor de uma rádio hispânica e jornalista do Los Angeles Times, tinha terminado a cobertura de um conflito numa área pobre de Los Angeles e foi tomar cerveja com um colega num bar das redondezas. Alguém alertou a polícia que um dos dois estava armado. Intimados a saírem dali com as mãos para o alto, eles não se mexeram. A polícia, então, disparou algumas bombas de gás através da porta e uma delas acertou a cabeça de Salazar, matando-o. A polícia tentou pôr a culpa nos chicanos amotinados, mas como havia várias testemunhas, foi obrigada a admitir que um dos seus tinha disparado o tiro fatal. A partir daí, a comunidade hispânica passou a usar o nome de Salazar para turbinar a sua causa, e “Lembrem-se de Ruben Salazar” virou um grito de guerra.
O ressentimento de Hunter contra o governo de Richard Nixon, que estava às vésperas de ser reeleito, somado à rejeição de um de seus textos pela Sports Illustrated conspiraram para encher a sua cabeça do ódio necessário para pirar de vez na cidade mais artificial do mundo, Las Vegas. E também para violar a lei e deixar em seu rastro uma lista de atos hediondos que colocaria qualquer outro atrás das grades. Foi uma derradeira e desesperada tentativa de reviver a liberdade desenfreada dos anos 60, antes que convenções e senso comum dessem cabo dela de uma vez por todas. Hunter chamou o experimento de “esquizofrenia conceitual”, capturada no estreito limbo entre “jornalismo” e “ficção”.
O caso Ruben Salazar estava praticamente encerrado, e Hunter e Oscar puderam cair no delírio mais absoluto. Rumaram para Vegas a bordo de um conversível vermelho, rabo-de-peixe, e confabularam um plano muito louco do qual pretendiam sair com vida.
Hunter me telefonou para contar mais detalhes:
– Oscar anda meio puto da vida. Sofre de úlcera e de dúvidas sobre si mesmo. E não tem muitos clientes… bem, tem um, na verdade um ator que caiu da minha motocicleta e quebrou a perna… Pois é, Ralph! Foi por minha causa!
– Sei. E daí?
– Conversa vai, conversa vem, pedi que ele me acompanhasse nessa viagem rumo ao Coração do Sonho Americano. Eu ia convocar você, mas achei que desde aquela investida em Rhode Island, para a America’s Cup, você devia estar cheio. E eu precisava de um advogado, mesmo que fosse de Samoa. Bom, ele é hispânico, Ralph, mas para temperar a reportagem escrevi que era de Samoa. Soa melhor. Enfim, o motivo do meu telefonema é saber se você topa fazer uns desenhos daqueles bem pirados para essa reportagem.
Meu coração bateu mais depressa e borboletas esvoaçaram dentro da minha barriga.
– Pode mandar! – falei, num tom falso de destemor. – Vou ver o que dá para fazer. Para quem é?
– Essa revistinha de música, Rolling Stone. Nunca ouviram falar de você, mas garanti que ninguém mais podia fazer o que tenho em mente.
– Então é melhor eu não decepcionar essa turma!
Era como se eu já soubesse como seria a reportagem. Como se já tivesse estado lá antes. Não era o mesmo lugar, não era o mesmo assunto, eu não estava na mesma pele, mas houve um choque de reconhecimento vindo de uma fonte reprimida. Uma ressonância estimulante com algo meio suicida emergiu dentro de mim, e meti a cara na prancheta manchada de tinta em frente à janela dupla da nossa casa na New King’s Road, número 103, Fulham, Londres SW6. Encharquei a minha pena de aço – agora convertida numa arma letal – num caldeirão de bile e, acompanhado por cerveja e uns golinhos de conhaque, comecei o exercício terapêutico de expurgar da minha mente todos aqueles demônios aprisionados que aguardavam convocação para vir à tona. Eu estava ali para dar vida a eles, no papel que eles quisessem desempenhar, como um figurinista de teatro que tem, de prontidão, perucas, máscaras, roupas colantes rudimentares, para que cada um possa representar o seu personagem de forma adequada. Depois fiz o mesmo para Medo e Delírio em Las Vegas – Parte II.
Um dia, talvez, vão botar uma placa azul na parede externa daquela casa, com os dizeres: “Nesta casa, no verão de 1971, o artista Ralph Steadman (1936-2036) espremeu a alma pelos poros para liberar no papel os demônios de um manuscrito de Hunter S. Thompson intitulado Medo e Delírio em Las Vegas. Res ipsa loquitur [A coisa fala por si mesma].”
1970-72_Rumo a Washington
Ralph
Tenho de ir para Washington, DC (vou ficar um ano, alugar uma casa e tudo o mais) no dia 1º de novembro de 1971. Vou escrever uma coluna para a Rolling Stone, uma em cada edição, até novembro de 72, quando haverá a eleição para presidente.
Hunter me convidava para me juntar a ele imediatamente. Tinha alugado uma casa de frente para o Rock Creek Park; eu podia me hospedar lá. Acrescentou que meu único problema seria a compra da passagem aérea. Havia também outras coisas, mas de importância menor. A Rolling Stone ainda hesitava um pouco em relação ao novo gênero de reportagem proposto por Hunter, e a contratação de um ilustrador da Inglaterra não era exatamente uma prioridade.
1972 foi o ano em que terminei as ilustrações para o livro Alice Através do Espelho. Além disso, fazia desenhos quinzenais para a seção “Notícias ao redor do mundo”, da própria Rolling Stone, e tinha planos para “alguma coisa ecológica”. Esperava envolver Hunter nesse trabalho e, juntos, publicarmos um livro. Seria um livro fora do comum, contrário a tudo o que se dizia sobre o meio ambiente. Eu não detectava nada de realmente sério naquela nova mania ecológica e, em retrospecto, tudo o que se conseguiu foi a proibição de fumar em bares e restaurantes. Ainda hoje, a gasolina reina soberana. Os carros rodam livremente, em especial esses tanques de guerra 4 x 4 que bebem gasolina feito bombas hidráulicas submergíveis e vomitam fumaça feito dragões. Em geral, são dirigidos por mamães conscienciosas, obcecadas pela idéia de levar os seus rebentos para a escola que fica a uns 100 metros de suas casas. Assim como os seus filhos, elas mal conseguem enxergar acima do painel de instrumentos. Elas gostam de colocar uma
tabuleta no vidro de trás com os dizeres: CRIANÇA A BORDO.
Hunter respondeu ao meu apelo:
Ralph
Seu sacana analfabeto. Mandei a sua carta para um tradutor para conseguir entender de que tipo de “livro de ecologia” você estava falando. É óbvio que gostaria de trabalhar com você – mas qualquer coisa que exija um texto longo está fora de questão, pelo menos durante os próximos seis meses. Tenho de entregar no dia 1º de janeiro um livro sobre a campanha eleitoral de 1972, e depois disso outro livro para a editora Random House etc… Mas gostei da idéia do seu livro sobre ecologia pelo avesso, então por que não me manda mais detalhes? Ou pelo menos um só. HST.
Mandei-lhe então o rascunho tosco do desenho de um mecanismo emperrado e cheio de óleo, funcionando em alta rotação e vomitando uma fumaça preta e grossa. Tinha apenas um botão, o de “ligar”. Mostrava a Terra sobrevivendo por meio de aparelhos, com um feto humano no útero. Outra charge: um rei da Arábia Saudita segurando um testículo em forma do mundo, preso a uma bomba de gasolina em forma de pênis, e a legenda: “O mundo é de uma bola só.” Ainda outra: uma longa fila de carros numa paisagem desértica, semelhante a Las Vegas. Cadáveres sentados ao volante ou prostrados, agonizando no solo, agarrados a galões de gasolina. No horizonte, um imenso outdoor: ACABOU A GASOLINA. PARA SEMPRE. Hunter gostou dessas idéias, mas apesar de nossas entusiásticas discussões o projeto não vingou.
Enquanto estávamos em Newport para a America’s Cup, Hunter tinha começado a traçar planos para concorrer ao cargo de xerife em Aspen. Em 1970, o ocupante do cargo era um democrata que defendia a lei diante de um bando de refugiados da década de 60 – hippies, sonhadores, artistas, músicos e uma galera de republicanos das antigas e duros na queda, que tinham crescido e envelhecido ali mesmo e não queriam saber de mudanças.
No final dos anos 60, quando Hunter foi morar perto dali, em Woody Creek, a 3 800 metros de altitude, com a esposa Sandy e o filho Juan, pensei que ele tinha encontrado o seu Jardim do Éden; que tinha se apaixonado não só pelo estilo de vida livre da cidade, como também pela sua beleza natural. Mas foi ali que ele fez a sua única tentativa de ingressar na política e “bater no adversário como se fosse num gongo”. Hunter queria saber se eu podia fazer ilustrações sacanas dos oponentes que enfrentaria na campanha para xerife. Mandou-me três fotos em preto-e-branco do bando de opositores mais sem graça que se pode imaginar em qualquer tempo ou lugar, exceto num comício nazista dos anos 30.
Fiz três desenhos com base em legendas que diziam: “Não vote antes que eles comecem a salivar”; “Vote em Bestas Pré-Históricas (se é isso o que você quer)”; “Dê mais uma boa olhada no seu xerife, e vote antes que ele atire.” Hunter concorria em uma chapa que se auto-intitulava “Poder Pirado” e planejava devolver Aspen à sua vocação passada de cidadezinha decente e honesta. Lançou um manifesto que conclamava a população a picar todas as ruas com britadeiras e derreter os pedaços de asfalto para construir um enorme complexo de estacionamentos nos arredores da cidade – de preferência entre a central de esgotos e um shopping novo chamado McBride. Também pretendia instalar uma central de dejetos e um depósito de lixo na área reservada à memória da senhora Walter Paepcke, que vendera suas terras para empreiteiras. Em seguida, todas as ruas seriam restauradas à sua forma original de pradarias e trilhas campestres. Os únicos veículos permitidos na cidade seriam os de entrega e de outros serviços essenciais, como o correio. Uma frota de bicicletas estaria à disposição do público e seria vigiada pela polícia.
Hunter também prometia mudar o nome de Aspen para Cidade da Gordura. Não existiria mais o nome Aspen nos registros postais, e as placas de estrada e os mapas teriam de se adequar. As enormes empresas que começavam a se mudar para a região – para ferrar todo mundo, comprar barato, vender caro e depois ir embora – sofreriam um golpe terrível. Os gananciosos e os empresários de resorts de esqui ficariam desestimulados. Como Hunter ressaltava delicadamente, aqueles chacais humanos não podiam continuar a capitalizar o nome de Aspen e tinham de ser “fodidos, arruinados e postos para correr desta região”. Conseguiu 34% dos votos.
Em 1972, as convenções dos partidos Republicano e Democrata seriam realizadas em Miami.
– Você quer vir para cá, Ralph? A Rolling Stone concordou em te trazer para você captar a delirante empolgação de uma convenção. Dessa vez, temos credenciais. Vamos estar juntinho dos grandes e poderosos. Passagem de ida e volta, melhores hotéis. Cobertura grande. Vamos ocupar toda uma edição, nos mesmos moldes de Medo e Delírio!
Eu andava muito entusiasmado e, depois de várias promessas e especulações, concordamos que eu iria sozinho e talvez voltasse para casa no intervalo entre as duas convenções, retornando no fim de agosto para o rega-bofe republicano.
Quando desembarquei, estava apreensivo. Trabalhar com Hunter era sempre um desafio e ele tinha me contaminado com uma ponta de agressividade – ou então afiou a ponta que eu já tinha. Minhas charges políticas sempre foram mais do que uma peça de entretenimento – eram uma arma. Eu acreditava fazer parte de uma cruzada feroz e que meu trabalho produziria efeito tão devastador quanto os desenhos de George Grosz e Otto Dix durante a República de Weimar, na Alemanha.
Só que eu detestei Miami.
Nos encontramos num café ao ar livre perto da praia. Eu não me sentia bem e expressei minhas dúvidas sobre estar em Miami. Mas concordamos em ir a um comício naquela noite, no salão de convenções, para ouvir o discurso de George McGovern.
Passamos aos trambolhões pela segurança para entrar no recinto. Me ocorreu retratar aquela massa ondulante de loucura eletrificada por detrás do firme aperto de uma gravata aplicada pelo braço e pelo sovaco de um segurança. Seria esse o meu ângulo de visão satírico preferido. Passei o resto do dia entrando e saindo de hotéis só para me refrescar. O ar-refrigerado era tão opressivo quanto a umidade ao ar livre. Eu começava a ficar febril e não me sentia bem-vindo.
Me arrastei até o parque dos Flamingos para ver os protestos dos veteranos do Vietnã em cadeiras de rodas – os sobreviventes de mais uma guerra que deu errado. Barracas tinham sido erguidas e havia banheiros químicos espalhados por todo lado, em frontal contraste com a suntuosidade dos hotéis que abrigavam os delegados partidários e as suas esposas e amantes emperiquitadas.
“Mais quatro anos” era o grito de guerra e alerta dos republicanos – e teriam conseguido mais quatro anos, não fosse o caso Watergate e as artimanhas do governo Nixon. Mas os democratas também eram uns decadentes! “Há tanta política num salão de convenções quanto num anúncio de detergente”, escrevi.
Uma morbidez cáustica abatia o meu ânimo – era o mesmo que tentar sorrir dentro de uma câmara de gás. “Autoridade é a máscara da violência”, escrevi, e continuei a escrever durante as curtas 24 horas em que fiquei em Miami.
JULHO DE 1973_Desatinos de Watergate
Quando Anna e eu desembarcamos no aeroporto de Washington, o ar estava quente e pesado e parecia ter um cheiro próprio. Pegamos um táxi para o hotel Hilton, onde Hunter tinha feito nossa reserva. Era um hotel de aspecto barato, mas na sua vulgaridade nos dava uma ponta de liberdade.
Eu tinha rabiscado algumas anotações sobre Watergate: “Eram todos advogados, ou ‘advoengodos’. Todos uns bandidos que freqüentaram a faculdade de direito. Lealdade era o nome daquela charada. Ehrlichman não deixa vestígios de sangue, além do estritamente necessário. Existe aqui um tipo de mal que virou normal. Se estivéssemos na Alemanha dos velhos tempos, vocês iam virar tela de abajur e eu ia dar risada.” Então especulei: “Os especialistas divergem quanto ao complexo de Nixon. Ele pode ser uma manifestação prematura do Mal de Parkinson ou uma neurossífilis, contraída nos tempos de estudante. Produz efeitos alucinatórios na sua vítima, lhe dá um sentimento de grandeza, um ódio da humanidade, uma quase impotência, e por fim uma senilidade precoce. A segunda possibilidade, entretanto, foi descartada com base na tese de que, na época em que Nixon era estudante, seria impossível para ele contrair uma tal enfermidade, em virtude do seu temor patológico de mulheres – a menos que tenha sido contraída por acidente no tampo de uma privada. Morreu senil, aos 81 anos, num asilo de inimigos do ambientalismo, sentado numa espreguiçadeira diante de uma lâmpada ultravioleta, vestido apenas com um par de botas de cano alto.”
Numa de nossas noites em Washington, Hunter convidou o candidato democrata derrotado, George McGovern, para jantar num restaurante mexicano. Encontramos McGovern à nossa espera, dentro do seu carro, na porta do Hilton, lendo o Washington Post. Era um homem cordial e educado. No começo, a conversa foi toda sobre política e Watergate. Depois apareceu uma mulher que tinha feito a campanha de McGovern, e que estava preocupada com o filho de 13 anos que fumava maconha. McGovern a convidara para conversar com Hunter sobre o caso.
– O garoto é legal – tranqüilizou-a Hunter. – Ele sabe escolher as suas prioridades. Vai deixar para estuprar mulheres mais tarde!
Foi essa sua abordagem direta, a franqueza feroz, que fez com que o meu próprio filho parasse de cheirar cola na adolescência.
– Cante Masters of War, Ralph!
Peguei um violão emprestado com o músico do restaurante, que achou que eu queria que ele tocasse Granada, mas eu é que queria tocar o violão.
– Posso cantar, mas não lembro direito os acordes.
– Ninguém quer saber de acordes, Ralph. É só cantar a melodia e arranhar as cordas, feito um trabalhador imigrante!
Formávamos um grupo improvável numa mesa de restaurante do centro da cidade cujo nome esqueci. Não sou pago para lembrar essas coisas. Por isso não sou escritor. Não lembro o nome de nada, mas lembro as circunstâncias.
McGovern estava sentado bem na minha frente. Claro que lembro o nome dele. Era amigo do Hunter. Ele apoiava asilos e creches, controle de preços e salários, e é o único político de que consigo lembrar que se preocupou com o meio ambiente desde os primórdios do ambientalismo.
McGovern era uma companhia agradável, e comportou-se como um homem habituado a se adaptar a qualquer situação. Como estava empenhado na anistia dos desertores da guerra do Vietnã, e se opusera à guerra desde 1963, Senhores da Guerra deve ter sido um estímulo para o seu coração, apesar de ele ter massacrado a canção sem dó nem piedade. Não conseguiu se eleger para a Casa Branca, mas talvez tenha se consolado com o fato de que, naquela orgia de cantorias bêbadas, alguém continuava empunhando sua bandeira. O admirável em McGovern foi que ele quase tornou realidade um sonho. Pelo menos durante a sua campanha, pareceu possível ligar a televisão e acreditar na palavra de um futuro presidente.
Conheci a América pela primeira vez, em abril de 1970, como artista sem eira nem beira. Quando Watergate aconteceu, três anos mais tarde, confirmou aquilo que eu já intuía: por baixo daquela aparência impoluta, havia algo essencialmente podre. Na época da convenção republicana em Miami, em 1972, escrevi o meu sentimento na legenda de uma ilustração: OS AMERICANOS NÃO QUEREM A LAVAGEM MAIS LIMPA – QUEREM SÓ A LAVAGEM MAIS BRANCA.
Lá estávamos nós, sentados à beira da piscina do Hilton de Washington, assistindo televisão numa tela pequena em preto-e-branco, que Hunter comprou “para ficar ligado nas audiências do caso Watergate o tempo todo”. Ele estava às voltas com um vendedor de aparelhos eletrônicos com quem negociava à beira d’água. O homem usava um terno seboso, trazia uma valise cheia de engenhocas destinadas a tornar a vida interessante: equipamentos para grampear telefones, gravadores em miniatura, microfones direcionais e uma pequena maletinha com um telefone portátil, aquisição que Hunter negociava e pretendia incluir nas despesas de hotel.
– Você já imaginou estar perdido no meio de um deserto e ter na mão uma porra dessas? Esse troço pode te livrar de grandes apuros. É um equipamento vital para pessoas como nós, Ralph… e só custa 2 mil dólares!
Entre um negócio e outro, Hunter dava uma espiada na tevê e preenchia formulários relativos a um acidente em que se envolvera duas semanas antes. Ele tinha alugado um carro e bateu na lateral de um Cadillac, às quatro da madrugada. Hunter era um trabalhador incansável, que virava noites apurando fatos; nenhuma dica era insignificante demais para ser investigada, estivesse ele bêbado ou sóbrio. Na ocasião do acidente, ele tinha ficado na casa de McGovern até altas horas debatendo sobre o que dera errado na campanha e a sua cabeça devia estar pesada. Ele devia estar embriagado, porque falava em arrastar um assessor de Nixon, Chuck Colson, pela avenida Pennsylvania, amarrado pelos colhões. Ele só poderia estar embriagado para ter uma idéia dessas, pois em geral Hunter não era um homem violento. Deve ter sido uma reação a uma frase dita pelo próprio Colson a respeito do povo americano: “Depois que a gente agarra e puxa o povo pelos colhões, o coração e a mente deles vêm atrás.” A política americana tinha baixado
a esse nível.
Assistimos a um monte de audiências no pequeno televisor à beira da piscina, e só uma ou duas vezes nos aventuramos a sair em campo, como jornalistas em missão. Devo dizer que me sinto intimidado com instituições formais, e que normalmente eu não bebo – a menos que sinta necessidade, o que acontece com freqüência. Naquela ocasião, me senti compelido a levar comigo para a sala de audiências do caso Watergate uma caixa com seis latas de cerveja e um frasco de uísque Glenfiddich. Isso me deu a coragem etílica de que eu precisava para encarar os funcionários do governo, da segurança, e o nível particularmente asqueroso de vigilância no entorno da sala de audiências, onde se faziam revelações, transmitidas para o mundo inteiro. Eu estava longe de casa, nem um pouco à vontade.
É em momentos assim que me torno dissimulado ao mais alto grau. Me faço de calmo e visto meu ar mais britânico. Encaro o segurança de frente e a inocência nos meus olhos intimida a paranóia nos olhos dele. Mas para pôr em prática esse truque com sucesso e passar com uma caixa de seis latas de cerveja, é preciso ser inocente a um ponto que eu, em essência, sou, mas que os seguranças, em geral, não são. Por isso foram contratados para o seu trabalho.
O diagnóstico do julgamento do caso Watergate, como todos sabemos, revelou a necessidade absoluta de uma cirurgia cosmética. O presidente e seus assessores imediatos deviam ser extirpados. O corpo político deveria se recuperar e voltar ao normal. Se o câncer era maligno ou benigno, ainda é objeto de grave preocupação.
Vinte anos depois, o paciente ainda está vivo e, no momento, respira por meio de aparelhos – como todos nós.
Quando fomos para o Zaire cobrir a luta Muhammad Ali-George Foreman, comecei escrevendo um diário.
Primeiras entradas:
No portão seis do aeroporto de Bruxelas, tenho por companheiros de vôo pregadores leigos, missionários, professores negros, policiais de bigode, além de uns tipos estranhos, aparentemente endinheirados.
Ao embarcar no avião, inspiro uma última lufada de ar fresco e entro num ambiente asfixiante – um cheiro desagradável de gente impregna as minhas roupas e não acho que seja eu (sou eu, também). Por sorte me deram um lencinho refrescante como cortesia.
Onde diabos estou? A caminho da escuridão, suponho!
Insetos por toda parte. Em todo canto que eu sento, tem um inseto. Agora estamos na Nigéria – que é parte da África. Preciso de uma cerveja. O bar no saguão do aeroporto aceita libras esterlinas. Cinco e meia da manhã. Chegada em Kinshasa. Laranjas nas árvores. Uma agradável viagem de carro do aeroporto até o Hotel Intercontinental. Os africanos esperam por algo ao longo de centenas de metros numa calçada enlameada. Eu não sei por que eles estão ali, esperando o quê. Também não posso perguntar.
Amanhecer nublado – chuvisco, morrinha. O táxi quebrou, mas voltou a funcionar ninguém sabe como. Chego ao Intercontinental, onde não há nenhum quarto reservado para mim. Alguém fez besteira de novo. Discuto um pouco.
– Ralph! Cacete! Por onde você andou?
Hunter, uísque com gelo na mão, carteira de cartões de crédito na outra, suando, olhos vermelhos de quem acordou cedo. Ele entra em cena pegando – as minhas maneiras inglesas, delicadas por natureza, o impedem de arrancar a cabeça do recepcionista, o que evita um confronto generalizado.
– O senhor não tem um quarto reservado aqui, monsieur – repete o funcionário.
-–Mas é claro que tenho! A revista Rolling Stone, meio milhão de exemplares vendidos, só nos Estados Unidos, fez uma reserva para mim, me garantiram, me asseguraram.
– Desculpe, senhor… por favor… dez minutos.
É o confronto com aquele estranho e letárgico NÃO que paralisa toda a adrenalina do corpo. Você consegue se manter imóvel em meio ao impasse e ficar olhando um para a cara do outro – o funcionário de um lado do balcão, eu do outro –, os dois imóveis. E às seis da manhã de um domingo, ninguém se mexe nem sai do seu lugar.
É Hunter quem se mexe, e eu vou atrás. Sigo-o para fora do saguão carregando toda minha bagagem. A chuva me ensopa e cambaleio para dentro de um carro alugado. Meu cérebro está moído. Hunter trouxe o seu amigo Bill Cardoso, disfarçado de repórter da Rolling Stone. Doidão depois de seis semanas no Zaire, com drogas pesadas e fora do seu hábitat. Feliz – mais ou menos – mas resignado.
Hunter liga o carro, o motor afoga, liga de novo, engrena a primeira – não – marcha a ré – recua – arranca para a frente – bebida na mão (esquerda) entornando – cartões de crédito esvoaçam para todo lado. Bill Cardoso oscila e se aninha involuntariamente em cima de Hunter, enquanto o carro arranca, aos trancos e barrancos, para fora do estacionamento. Bill oscila de novo – Hunter não faz a curva –, pragueja, derrama mais bebida. Será que sabe mesmo o que está fazendo? O carro fica o tempo todo na segunda marcha – o motor forçando a rotação – cheiro de óleo quente. O carro está em chamas – ou devia estar. Seis quarteirões para a frente, três para o lado, meia-volta, dois retornos, quatro curvas erradas. O carro pára. Bill desaparece e saímos à sua procura num salão de clube sujo, onde não há ninguém, exceto um vulto sugando os últimos resíduos de todos os copos da mesa.
Vejo Bill a dois quarteirões dali – curvado, cambaleante –, andando em direção ao Hotel Memling.
– Estou indo para casa, gente. Tenho de dormir – comunicou Bill.
Nessa altura, Hunter tinha deixado para trás os últimos vestígios de sensatez. Ele pega um pote de creme Nívea – enfia os dedos bem fundo na massa viscosa e lambuza o troço no fundo da garganta.
– Estou com a garganta irritada – diz. – É essa infame umidade africana, parece que você respira num pântano.
Hunter e eu desistimos de Bill e voltamos para o Intercontinental. Chuvinha monótona que não pára no calor inchado. Hunter já sacou a minha patética situação e assume o diálogo com o recepcionista.
– Não tem quarto!!!?? Que espécie de hotel é este??? Uma pessoa não pode chegar do outro lado do mundo e levar um pé na bunda desse jeito!!! O meu quarto é de que tipo?
– O senhor está reservado por uma semana num quarto duplo, monsieur.
– Pronto, Ralph! Você pode dormir no meu quarto. Você tem hábitos esquisitos?
– Não mais esquisitos do que os seus, suponho.
– Mande levar as malas dele para o quarto 824. Você está com o seu cartão de crédito aí?
Eu estava, e tudo foi resolvido.
– Então vamos tomar café da manhã e depois a gente vai ver o treino do Ali. Tenho umas perguntas para ele.
As medidas de segurança impostas por todo o Zaire impediam qualquer proximidade com o campo de treinamento de Muhammad Ali, ou com qualquer pessoa de sua equipe. Em compensação, no meio da noite, lá pelas quatro da madrugada, o pelotão que fazia a segurança de George Foreman enquanto ele corria pelos corredores no 8º andar do Intercontinental era manso. Até então, ninguém tivera a audácia de interromper a rotina do campeão com algo tão banal como um pedido de entrevista. Decidi que eu tinha fôlego para fazer uma única pergunta enquanto acompanhava o seu trote. O pelotão de segurança avançou para me deter, mas se deu conta, pelo meu sorriso beato, que eu estava limpo. Fiz a pergunta mais simples do mundo:
– O que você vai fazer depois que tudo isso tiver terminado e você for o campeão? Ninguém fica lutando a vida toda…
– Pôxa, você é o primeiro cara a me perguntar isso. Vou entrar no ramo da massa – respondeu Foreman.
– No ramo da massa? Mas você já não está nesse ramo? Cinco milhões de dólares para cada um, na mão, perdendo ou ganhando, só para essa luta. Isso é que é massa!
– Você não entendeu, cara, eu vou para o ramo da massa de pão. Vou fabricar pão feito a minha mãe fazia. É uma coisa que sei fazer. Posso bater muito bem a porra da massa. Vou ser padeiro.
De fato, uma máquina de grelhar marca George Foreman ficou famosa anos mais tarde, e ele aparece em anúncios na tevê fazendo um monte de pão naquela máquina.
Saí correndo dali para o quarto 824.
– Quem é?
– Sou eu! Me deixa entrar. Consegui um furo!
– Só jornalistas pé-de-chinelo conseguem furos, Ralph! O que você conseguiu?
–Um papinho rápido, cara a cara, com o George Foreman. Ele quer ser padeiro.
– Padeiro! Que espécie de conversa fiada é essa? Você conversou com George Foreman sobre a fabricação de pães? Eu sabia que você era um cretino, mas isso já é insanidade.
– Sério! – implorei. – É isso mesmo o que ele quer fazer. Ele não pode ser lutador de boxe a vida toda.
– Tudo bem. Mas o que a gente precisa é apurar o que há por trás da cortina de fumaça dessa luta. De onde veio a grana? É essa a matéria.
No dia seguinte, dei uma circulada por todos os bares e quiosques de café espalhados pelo hotel. A maioria estava cheia de jornalistas com teorias. A luta deveria ter ocorrido seis semanas antes. Jornalistas de todos os cantos do planeta tinham afluído em cardumes, e a intensidade do interesse do público estava no auge. Muitos deles nunca tinham estado na África antes e o Zaire do presidente Mobutu estava sôfrego para arrancar de cada um o seu último centavo. Eram conspirações por toda parte.
Instalado no quarto de Hunter, percebi que várias vezes durante a noite pessoas batiam à porta, sempre com uma mesma pergunta:
– Pode me dar um remédio, cara? Estou precisando de um remédio, é sério.
Hunter tinha comprado um enorme saco de plástico cheio de maconha africana, pelo equivalente a 40 dólares. A coisa tinha as dimensões de um saco de golfe. Os repórteres que tinham ficado na África desde o adiamento da luta entraram na onda da erva e vagavam em busca de nova dose com expressões de máscaras africanas de vodu. Muitos haviam esquecido o motivo pelo qual estavam ali, mas continuavam a enviar mensagens para os seus jornais pedindo mais dinheiro para produzirem reportagens que, acreditavam, fariam história. Alguns viraram nativos.
A semana passou e ficamos horas à beira da piscina, assistindo pela tevê aos treinos da luta, ouvindo entrevistas com Don King e revendo cenas de Muhammad Ali desfiando os seus célebres monólogos.
Até que, numa tarde, houve um momento memorável: um monomotor sobrevoou o hotel e espalhou um folheto com os dizeres: MOBUTU LHES DÁ AS BOAS-VINDAS EM KINSHASA.
– Eu bem que gostaria de contratar aquele sacana lá em cima por uma tarde – disse Hunter. – A gente podia bolar um folheto explosivo, Ralph, com aquelas suas canetas de ponta grossa. Algo capaz de arrepiar todo mundo que está aqui. Algo como “PRETO É ESQUISITO”.
A luta foi marcada para as dez da noite, portanto a temperatura estava mais fresca. Quando chegou a hora, um frenesi e ansiedade contagiaram meio mundo. A porta do nosso quarto tornou-se mais freqüentada do que o habitual e o enorme saco de maconha desinchou rapidamente. Eu não conseguia entender por que alguém podia querer ficar tão doidão na hora de ver o maior confronto de boxe de todos os tempos.
Resolvi dar uma volta a pé e vaguei pelo saguão do hotel. Caramba, ali estava o Joe Frazier! Impulsivamente, fui até ele e pedi o seu autógrafo. Ofereci o meu caderno de desenhos e ele esticou a mão para que eu lhe desse uma caneta. Devolveu-me o caderno com o nome rabiscado, mas colocou a caneta no bolso. E aí, o que você faz? Pede a caneta de volta ou deixa para lá? Fiquei puto. Só não foi pior porque não tinha emprestado a minha Parker.
Devo ter tomado alguns drinques no bar porque tive uma idéia maluca e me senti com coragem suficiente para ir atrás. Fui à cabine telefônica e chamei a telefonista.
– Pode me ligar com o presidente Mobutu ou alguém da sua equipe?
– Quem fala, por favor?
– Sou do Times de Londres e tenho de falar com ele.
– Não posso lhe dar o número. Mas posso conectá-lo com a assessoria de imprensa.
Nunca vou saber de onde surgiu idéia tão pirada. Meu plano era dar um jeito de ser convidado para assistir à luta junto com o presidente e conseguir um material único para desenhar algo espetacular. Enquanto relembro isso agora, me pergunto se não fiz aquilo por simples desespero, ou por uma premonição de que Hunter pudesse ter vendido os nossos ingressos – tínhamos dois dos melhores assentos da arena. Seria a “gonzice” mais cretina que ele já teria feito na vida.
Um ilustrador do Times de Londres, sentado e vendo a luta ao lado do próprio presidente? Por que não? Durante o telefonema, falei com diversos assessores até que um deles perguntou:
– Onde o senhor está? – Me pareceu que eu tinha finalmente despertado o interesse de alguém.
– Estou no saguão – respondi. – Alguém pode vir me pegar?
Esperei feito um louco na porta do hotel, aguardando a chegada do que tinham me descrito como um Jaguar verde-escuro… Decorrido um tempo interminável, alguma coisa sussurrou no meu ouvido:
“Não seja ridículo. Melhor ir fazer um desenho.” Assim fiz.
Quando retornei ao quarto, Hunter se encaminhava para a piscina do hotel. A luta estava prestes a começar, mas ele não parecia tomar conhecimento do fato. Vestia um roupão e carregava uma toalha, um balde de gelo, uma Heineken e uma garrafa de Glenfiddich.
– O que está rolando? – perguntei.
– Nada, Ralph! Os ingressos já eram. Vendidos!
– Como assim? – Eu não conseguia acreditar. – E agora?
– Vou nadar. Melhor você vir comigo, a menos que queira assistir à luta pela tevê, porque agora é só o que temos.
Hunter ainda me pediu para levar o saco de maconha até a piscina, instalou na beirada o seu balde de gelo, o uísque e a cerveja. Esvaziou o que restava no saco de golfe dentro d’água e logo depois mergulhou de cabeça. Enquanto a maconha boiava na superfície e se mexia vagarosamente em direção ao filtro, Hunter emergiu no meio da erva.
– Aí está, Ralph. Uma experiência extasiante. Foda-se a luta! Se você acha que fiz toda essa viagem para ver um par de crioulos quebrar a cara um do outro debaixo de uma tempestade, é melhor começar a mudar de cabeça. A reportagem não é a luta. De onde veio a grana? Essa é a nossa reportagem, Ralph.
Pensando melhor, eu também não estava tão ansioso assim para ver a luta – iam passar reprises, ad nauseam, durante semanas. Entendi tudo na hora e um papo sobre o tráfico de armas que vinham de Brazzaville através do rio Zaire pôs mais um toque de aventura àquela piração.
Assim que a luta acabou, começou o grande êxodo. Ir para o aeroporto, cair fora o mais rápido possível e deixar para trás todas as moedas que estivessem no bolso, estrangeiras ou não.
– Nem pense em tentar esconder um só zaire na cueca, Ralph – me advertiu Hunter. – Vai ser o primeiro lugar onde vão procurar. Vamos ser revistados até a alma e a gente vai parar na cadeia. Nem um só zaire, Ralph.
Lá estávamos todos nós, tentando embarcar no Expresso Êxodo. Norman Mailer estava lá, George Plimpton e Hugh McIlvanney, só para citar alguns, além de todos os jornalistas esportivos dos hemisférios ocidental, oriental, meridional e setentrional, sôfregos para embarcar num avião e ir embora de um lugar que, doze horas antes, era o lugar número um. O presidente Mobutu tinha previsto aquilo. Depois de um tamanho espetáculo, o seu reino ia definhar e virar nada e, com isso, todas as fontes de renda fácil seriam sugadas pelo ralo, na esteira de uma cornucópia voadora.
(Continua na próxima edição.)
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1 Scanlan’s Monthly, revista literária de curta duração (março de 1970 a janeiro de 1971) que foi a primeira a publicar reportagens de Hunter S. Thompson.
2 Exército Republicano Irlandês, organização terrorista que combateu as tropas inglesas até a conciliação de 2005.
3 Laila Khaled (1944), membro da Frente Popular de Libertação da Palestina, hoje integrante do Conselho Nacional da Palestina. Liderou, em 1969, o seqüestro de um avião da TWA que ia de Roma para Atenas.
4 “O Derby de Kentucky é decadente e depravado”, publicado na Scanlan’s Monthly. Cardoso dizia que “gonzo” era uma gíria de irlandês da zona sul de Boston para designar o último homem que conseguia ficar de pé, ao final de uma maratona de bebedeira.
5 George Grosz (1893-1959), artista gráfico alemão, retratou a Berlim dos anos 20 e o nazismo com ferocidade. Wilhelm Heinrich Otto Dix (1891-1969), também artista gráfico alemão, crítico da sociedade germânica e da brutalidade da guerra.
6 George McGovern (1922), senador democrata, candidato a presidente dos Estados Unidos em 1972. Liberal, opositor da guerra do Vietnã e preferido dos jovens, sofreu derrota acachapante para o republicano Richard Nixon (60% a 38% dos votos).
7 John Daniel Ehrlichman (1925-1999), assessor de Richard Nixon, foi figura-chave no caso Watergate. Condenado por conspiração, obstrução da justiça e perjúrio, cumpriu pena de um ano e meio de prisão.
8 Masters of War (Senhores da Guerra), canção antimilitarista composta, em 1963, por Bob Dylan.
9 Mobutu Sese Seko (1930-1997), ditador do Zaire (hoje República Democrática do Congo) durante 32 anos.
10 Donald “Don” King (1931), promotor de lutadores de boxe (Muhammad Ali e Mike Tyson, entre outros), célebre pela personalidade e penteado exuberantes.
11 Norman Mailer (1923-2007), escritor, ensaísta e criador do “novo jornalismo” americano. Descreveu o embate Ali-Foreman no livro A Luta, de 1975. George Plimpton (1927-2003), jornalista e editor americano. Hugh McIlvanney (1933), jornalista esportivo escocês.
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