O edifício onde Snegirev mora, perto do Centro de Moscou: “O tempo está ensolarado, passarinhos cantando. Caiu a quantidade de gente na cidade, nos mercados está faltando açúcar” CRÉDITO: ALEXANDER SNEGIREV_2022
Depois da guerra
Anotações de um diário a respeito da vida sob Putin
Alexander Snegirev | Edição 187, Abril 2022
De Moscou
Tradução de Lucas Simone
O autor deste diário tem 42 anos, nasceu em Moscou e começou a escrever seu primeiro diário aos 10 anos, depois de voltar de uma viagem a Iasnaia Poliana, a propriedade onde o escritor Liev Tostói nasceu, viveu e escreveu algumas de suas maiores obras, como Guerra e Paz e Anna Kariênina. Cientista político por formação, Snegirev transformou o hábito de escrever iniciado na infância em profissão. Em 2005, ganhou o prêmio Debut, para jovens escritores russos por Eleições, uma coletânea de crônicas. Dez anos depois, ganhou o Russian Booker Prize, pelo romance Vera (nenhum dos dois livros foi traduzido para o português). Um dia antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, Snegirev esquiava com um amigo nos arredores de Moscou – o ponto de partida do seu diário aqui publicado, do qual trechos foram divulgados em sua conta no Facebook. Snegirev diz que seus escritos não contêm julgamento porque são meramente descritivos. Acredita que se emocionar é uma forma de resistir ao fascismo. Apesar da repressão do regime de Vladimir Putin, ele escreveu para a piauí sem usar pseudônimo. Por ironia, o apartamento onde mora, na região central de Moscou, fica no Boulevard da Ucrânia, próximo de uma estação de trem que se chama Kiev.
24 DE FEVEREIRO DE 2022, QUINTA-FEIRA_No final da tarde de ontem, eu estava esquiando com um amigo, que insistia em dizer:
– Logo logo vai começar uma guerra.
– Guerra é burrice demais, não serve para ninguém – eu retrucava, enquanto aviões de passageiros sobrevoavam nossas cabeças.
– São bombardeiros ucranianos – brincava meu amigo.
Depois de esquiar, fomos a um restaurante. Cozinha russa, vodca, na companhia de personagens boêmios abastados. Encerrado o jantar, decidimos dar uma volta. Eu apostei 100 dólares que não haveria invasão. De madrugada, o dólar valia 80 rublos. De manhã, 90.
25 DE FEVEREIRO, SEXTA-FEIRA_As pessoas estão surtando. Umas fazem postagens pesarosas pelo Facebook e pelo Instagram, dizendo que têm vergonha de serem russas. Outras se queixam de apatia, de medo. Outras fazem apelos: “Parem, com isso, por favor. Por causa desse oceano de negatividade não conseguimos nos concentrar em nada.” Parecem especialmente pitorescas as mensagens escritas por homens. Os que apoiam as ações militares comentam que é hora de criar campos de concentração para os traidores, enviar os pacifistas para as longínquas regiões do extremo Norte e compartilhar o link de uma lista de “inimigos do povo”. Alguns que, recentemente, eram defensores da luta contra o “regime” da Ucrânia, agora estão calados, como se nada estivesse acontecendo. Cidadãos vigilantes rastreiam quem deu like para opositores ou, Deus me livre, para Volodymyr Zelensky.
Como um paranoico, sigo o tempo todo as notícias, os canais do Telegram, algumas vezes quase provoquei acidentes por causa disso. Então, decidi desligar as notícias.
26 DE FEVEREIRO, SÁBADO_Entre os russos é visível um cisma etário. Os mais velhos são mais a favor do que os jovens. Guerra entre pais e filhos, avós e netos. Entre os homens com mais de 45 anos, surgem muitos estrategistas e analistas de guerra. São como espiões “adormecidos”, dormiam, dormiam, agora despertaram para propagar suas teorias.
Muitos emigrados riem da desgraça alheia, sentem aquela alegria maldosa de quem sabe que saiu na hora certa. Eles fazem considerações sobre a apatia do povo, a descrença na Rússia e chatices semelhantes, que já se tornaram tediosas há muito tempo.
Emigrados benevolentes fazem apelos: “Saiam e levem as crianças.”
Os ucranianos acusam os russos de inação, de não se insurgirem contra o governo. Os ucranianos não fazem ideia da severidade das leis de repressão russas. Aos ucranianos não deram aqueles vários anos de prisão. Nesses trinta anos de independência da Ucrânia, reinou um sistema multipartidário de verdade. Até a dimensão do país é significativa. Afinal, se mandam você para uma prisão distante na Sibéria, nenhum parente vai visitar. É longe demais.
27 DE FEVEREIRO, DOMINGO_Uma conhecida minha, pela qual me apaixonei certa vez, agora mora em Israel. No Facebook, ela defende impor as mais severas sanções contra a Rússia. Escreve em várias línguas, chama os russos de escravos.
Estão todos muito bem informados sobre tudo o que acontece na zona de guerra. Sabem a quantidade de perdas, qual a técnica que está sendo usada, o que fazer, como deve ser feito.
Hoje, meu amigo do esqui me escreveu dizendo que, na viagem para Londres, fez uma escala em Belgrado e, pela primeira vez nos últimos dias, sentiu-se tranquilo. Eu, ao contrário, estou feliz porque não voei para lugar nenhum – de longe, tudo parece mais terrível, você fica mais aflito.
Talvez eu me arrependa.
Uma pessoa próxima não sabe onde encontrar um remédio estrangeiro muito importante para sua filha. Depois do anúncio das sanções europeias, interromperam o envio desse remédio para a Rússia.
28 DE FEVEREIRO, SEGUNDA-FEIRA_Uma conhecida, boêmia e excêntrica, viu nos acontecimentos um plano do governo mundial secreto. Primeiro, veio a pandemia do coronavírus. Agora, a guerra. Tudo foi planejado para a reconstrução do mundo e a escravização da humanidade. Nessa sua teoria, as pessoas virarão zumbis por meio da vacinação, tudo será codificado a partir do número da Besta. Haverá controle total e distribuição de gêneros alimentícios. Uma das provas disso está na carteira de identidade russa, onde podemos divisar, olhando com atenção, a marca do Diabo e, no holograma, um crânio com chifres.
Um empresário conhecido, de extrema inteligência, nos primeiros dias viu sinais da luta por uma partilha do mundo, um colapso deliberado nos preços das ações e assim por diante. Agora, ele dá de ombros – a sua lógica atingiu uma barreira intransponível.
O vizinho está à espera de uma guerra nuclear total. Está comprando gasolina e planejando sair para o interior do país, o mais longe possível das grandes cidades. O preço da ração de cachorro está subindo. Pensei bem e resolvi comprar ração para seis meses. Também enchi todos os galões disponíveis de gasolina. De madrugada, fui a um posto de gasolina. Estava esperando um caos, mas não havia ninguém lá. Só eu.
Os pais de um colega moram em Israel, mas, em janeiro, vieram para Moscou, mudar de ares. Agora ele está preocupado, insiste para que os pais voltem para Israel logo. Podemos ter problemas graves de abastecimento, inclusive de medicamentos. Podemos ter problemas com segurança. Ele terá de cuidar deles, como se já não bastassem as suas próprias preocupações. Mas os pais continuam aqui, dizem que enjoaram de Israel.
1º DE MARÇO, TERÇA-FEIRA_Kurt, nossa chinchila, morreu hoje. Em poucos meses, completaria 19 anos de idade. Em 2003, queríamos comprar um hamster ou um porquinho-da-índia, mas a minha mulher escolheu uma chinchila – elas parecem inteligentes. Foi por essa época que minha mulher e eu começamos a sair, Kurt tinha a mesma idade do nosso relacionamento. Desmontei sua gaiola, estou procurando um comprador. Vou dar a ração para alguém.
Eu enterrei Kurt debaixo da roseira. Cavei a terra congelada com um pé de cabra, o que é mais difícil do que parece. Enquanto eu cavava o pequeno buraco, chegou o vizinho, numa jaqueta amarelo-vivo. Quando soube o que eu estava fazendo, ele suspirou, disse que tudo isso era triste, que a Ucrânia não devia ser uma ameaça à Rússia, que era preciso desmilitarizar a Ucrânia, mas de outro modo. Eu não respondi nada, coloquei Kurt no buraco, mas o buraco era pequeno – Kurt tinha um rabo comprido. Aumentei o buraco, coloquei Kurt lá de novo e cobri de terra de todos os lados, para que ficasse mais confortável.
2 DE MARÇO, QUARTA-FEIRA_Alguns conhecidos postam frases feitas no Facebook: “Não permito que a empresa Meta compartilhe meus dados ou use as minhas fotografias, nem no passado nem no futuro.” No pano de fundo dos acontecimentos, essas declarações parecem insólitas. Eu, pessoalmente, não entendo muito bem como se pode proibir a empresa Meta de usar uma fotografia no passado. É uma tendência da época – intrometer-se no passado.
Nesta época de redes sociais, algumas pessoas solitárias se animaram visivelmente – enfim, surgiu um motivo para interações.
Os sensatos participaram da primeira manifestação, foram detidos, tiveram de pagar multa ou ficaram presos por alguns dias e estão marcados. Agora ninguém pode acusar esses cidadãos de ter uma postura passiva.
Nunca tinha visto um camburão perto de casa. Nos últimos dias passaram uns cinco.
Meu pai perguntou o que significa a letra Z[1] nos equipamentos de guerra russos na Ucrânia:
– Tem a ver com a geração Z?
A pergunta soa divertida e, ao mesmo tempo, trágica. A geração Z russa, formada pelas pessoas que nasceram no final dos anos de 1990, começo dos anos 2000, agora sofre mais do que as outras. Elas não compreendem para que serve essa guerra, não entendem por que são odiadas pelo resto do mundo.
A época em que vivemos tem só um ponto positivo, mas muito sério: ela é única – e precisamos vivê-la. Estamos todos mergulhados num revelador fotográfico: dá para ver quem é quem, especialmente quem somos nós mesmos. Surgiu a chance de um inacreditável experimento humano, de vida, existencial.
Infelizmente, só a tragédia pode proporcionar um experimento dessa magnitude. Quanto mais valiosa é a dádiva, mais terrível é o sacrifício.
3 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_Por causa do risco de perseguições, amigos ativistas estão apagando suas contas nas redes sociais e indo embora. Os inteligentes saem em silêncio, depois voltam em silêncio. Muitos dizem: “Eu não emigrei, só saí de férias.” A frase “estou em férias” virou meme.
Nas notícias, lamentações e denúncias variadas. Muitas acusações mútuas. Um é contido demais, outro é ríspido demais. A minha sensação é de que permaneci num navio afundando. Ucranianos e russos com frequência se xingam de fascistas. Estranha herança da União Soviética, quando as crianças xingavam umas às outras de fascistas. A sensação é de que estou em um navio a pique. Comecei a fazer mais exercícios físicos. Pratico corrida de esqui com uma treinadora, a famosa biatleta Olga Podtchufarova. Conversei com a Olga sobre política, ela disse que cansou de ouvir esse assunto na última semana, e eu não acrescento nada de novo.
Agradeço a ela por essas palavras, porque eu não disse nada de novo, e o estado de espírito se deteriora.
Uma vez ou outra, de repente, tive vontade de chorar, mas sem pânico. Estranho.
Um jornalista famoso foi embora. Na sua postagem de despedida usou a frase “intelectual russo na tentativa desesperada de se salvar”. Em tempos trágicos, declarações enfáticas transformam-se em um gênero pessoal de mesquinharia.
4 DE MARÇO, SEXTA-FEIRA_Hoje de manhã havia fila no supermercado Perekrióstok, na hora de abrir. No supermercado Diksi, na avenida marginal, não havia ninguém. Só um trabalhador comprava macarrão instantâneo, e uma mulher escolhia um produto de limpeza. Eu comprei café, peixe congelado, vodca e açúcar. Um amigo disse que comprou um fuzil Benelli e seiscentos cartuchos.
Por dias seguidos convidei uma amiga para ir à minha casa. Todas as vezes ela disse que estava ocupada. Escrevi então que tinha decidido emigrar – e ela logo apareceu. Perguntou para onde eu ia. Respondi que ia para Novosibirsk, visitar a feira do livro. Ela me disse que sou um enganador ardiloso. Tivemos uma noite apaixonante.
5 DE MARÇO, SÁBADO_Troquei mensagens com amigos na Ucrânia: as mulheres estão sendo evacuadas. Uma família inteira, de pessoas muito próximas que conheço desde a infância, ficou em Mariupol, cidade sitiada. Não tenho notícias deles.
Uma amiga, de Kiev, ficou na cidade na companhia do seu gato. Ela manda memes e vídeos de casas em chamas, observadas da sua sacada. Uma vez, enviou um vídeo de uma panela enorme de sopa borsch, que ela fez para os combatentes das unidades de defesa do território.
Um dramaturgo russo famoso, Oleg Mikhailov, que mora em Kharkov, na Ucrânia, escreve que, em casa, todos já se acostumaram a dormir ao som do bombardeio, mas, quando ele se levantou de madrugada e deixou cair uma colher no chão, todos acordaram.
6 DE MARÇO, DOMINGO_Do exterior, chegam mais e mais sanções. Nos shopping centers, fecham mais e mais vitrines. Às vezes, fecha um shopping inteiro. Tudo isso me faz lembrar um dos filmes dos Vingadores, em que, no início, some a família de um dos personagens, o Arqueiro.
Fui para a feira do livro em Novosibirsk. Estão construindo um prédio novo no aeroporto por causa do campeonato de hóquei. Agora, o campeonato foi transferido para outro país. Em todo o enorme canteiro de obras, ouvem-se raros golpes de martelo.
Na feira do livro, havia convidados curiosos. Dizem que eram funcionários da FBS[2] vigiando o que os escritores diziam.
No voo de volta, ao ouvir o comissário de bordo informar que estávamos voando em um Airbus A320, pensei: “E se, de repente, por causa da suspensão da licença de uso dos Airbus, nosso avião desaparecer e todos nós formos parar nas trevas do céu?”
7 DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA_Não sou um colecionador, mas guardo frases interessantes. Por exemplo, uma frase do filme O Discreto Charme da Burguesia, de Luis Buñuel: “Se estão bombardeando a própria gente significa que eles têm motivos para isso.”
As palavras são proferidas por um idiota importante num palco farsesco.
10 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_Recebi a notícia de que, dentro de uma semana e meia, a Uniqlo vai fechar. Peguei o carro às pressas e corri para a loja. Achei que não ia dar tempo, mas deu. Comprei doze pares de meias e dez cuecas. A loja fica bem perto do nosso apartamento. Nem precisava ir lá só para isso, mas eu não quis arriscar.
Quando voltei para casa, ao desfazer o embrulho, me sobressaltei. Será que essa compra não é um mau presságio, um sinal de que, enquanto eu não usar todas as meias e todas as cuecas, a guerra não vai acabar e a loja não vai reabrir? Comecei a trocar de cueca três vezes ao dia para usar todas mais depressa.
Um amigo disse que, antes da suspensão da Netflix, conseguiu assistir a sua série preferida inteira.
11 DE MARÇO, SEXTA-FEIRA_Cancelaram quase todos os voos. Me lembro das viagens que minha mulher e eu fizemos para cidades distantes. Agora, ela está nos Estados Unidos. Pela primeira vez, pensei que talvez nossas viagens não se repitam nunca mais.
Por essa época, onze anos atrás, mamãe morreu. Eu estava em Miami, viajei de volta para o velório, passando por Zurique. Decorridos todos esses anos, não consigo memorizar a data exata da morte dela.
O tempo está ensolarado, passarinhos cantando. Caiu a quantidade de gente na cidade, nos mercados está faltando açúcar
12 DE MARÇO, SÁBADO_Meu pai se alegra com as vitórias do Exército russo anunciadas na televisão. Eu não discuto com meu pai. Não é o caso de discutir com os idosos, especialmente os mais próximos. Não vai dar em nada. A vida é curta, agora isso é mais visível do que nunca.
A infância do meu pai coincidiu com a Segunda Guerra Mundial, ele gosta de ouvir que “os nossos estão avançando”. Com satisfação, anuncia a tomada da cidadezinha de Volnovakha, que, pelo visto, foi praticamente aniquilada durante os combates.
Uma amiga próxima contou que o namorado dela fugiu para Erevan, a capital da Armênia. Não avisou que ia partir, quando telefonou já estava lá. Disse que não conseguiu permanecer nessa atmosfera tensa que surgiu em Moscou. Disse que tem medo de ser convocado e, por isso, decidiu partir. Quando a Visa e a Mastercard bloquearam os cartões russos, ele ficou sem dinheiro e agora está pedindo que minha amiga lhe faça uma transferência bancária.
Decidi evitar as palavras “eu nunca”. Nos últimos tempos aconteceram tantas coisas que nunca poderiam ter acontecido, tantas promessas foram quebradas, tantos princípios foram esquecidos, que dá vontade de fugir de todo tipo de promessa e simplesmente tentar ser uma pessoa normal.
Vi no noticiário um prédio de apartamentos destruído em Kiev. O prédio é bem parecido com o nosso, em Moscou. Tem muitos andares, é de tijolos, com sacadas grandes. Construíram prédios desse tipo na União Soviética, uns quarenta, cinquenta anos atrás. Olhei as janelas quebradas, as sacadas destroçadas, os buracos nas paredes e, automaticamente, fiquei procurando o décimo andar – o meu andar.
13 DE MARÇO, DOMINGO_Chegaram exemplares da tradução italiana do meu livro Prizratchnaya Doroga (A estrada fantasmagórica). Foi meu último livro antes da guerra, lançado há três anos. O nome combina com a época. Os exemplares ficaram quase três semanas presos na alfândega. Por esses dias, eu devia ir a Roma dar uma palestra. Mas agora os voos estão suspensos, e todos odeiam os russos.
A minha editora italiana disse que não é a primeira vez que vê uma guerra contra a cultura russa e prometeu que vai resistir. Ativistas culturais ucranianos redigiram uma carta pública, em que exigem que os russos sejam expulsos de todas as instituições culturais do mundo, dos festivais, das feiras de livros, das exposições. Conheço pessoalmente dois dos signatários. Antes tínhamos uma boa relação.
As palavras adquiriram um sentido imenso. Fale de maneira lenta e ponderada. Formule suas frases de forma precisa. Um amigo do mundo literário diz que chegou de novo o tempo de se perguntar como isso tudo aconteceu. É preciso repensar mais uma vez toda a concepção da ideia nacional, toda a ética e moral, para que coisa semelhante nunca mais se repita. Faremos isso, se sobrevivermos.
14 DE MARÇO, SEGUNDA-FEIRA_Coloquei um daqueles doze pares de meias novas. Parece pequeno. Não tem como trocar. Voltei à loja, que ainda está aberta. Dessa vez, escolhi com calma. Na fila, fiquei olhando as notícias no celular, pus as meias debaixo do braço. Sem largar o telefone, entreguei tudo à moça do caixa. Ela disse que um dos produtos estava sem etiqueta de preço, e foi buscá-la. Sem tirar os olhos do telefone, concordei com a cabeça. A caixa emitiu a nota e disse que eu podia trocar tudo, menos as meias. Eu saí do transe e perguntei:
– Trocar o quê, além das meias?
– As luvas – ela respondeu.
Acontece que, quando enfiei as meias debaixo do braço, lá já estavam as minhas luvas. Distraído com as notícias, eu puxei tudo junto. As luvas também eram da Uniqlo, eu tinha comprado duas semanas antes, pareciam novas. No final das contas, comprei primeiro as meias erradas, depois paguei uma segunda vez pelas minhas próprias luvas e, além disso, desembolsei um preço mais alto.
Se, quando comprei as meias e as cuecas, fiquei com medo de que não houvesse paz enquanto eu não usasse todas, agora, depois de descobrir que as meias não me serviam, começo a ter esperança de que o cataclismo vai terminar logo.
15 DE MARÇO, TERÇA-FEIRA_A psicoterapeuta me convidou para assistir a O Lago dos Cisnes, mas, no último momento, pegou um voo para o exterior. Com isso, um dos lugares ao meu lado ficou vazio. Do outro, sentou uma moça de saia curta. A moça discutia com a amiga questões sobre instalações sanitárias e a ampliação dos hospitais de campanha. Pelo visto, ela era médica de formação, mas trabalhava com venda de aparelhos sanitários. Eu não sou um grande especialista em balé (em todos os três atos, fiquei esperando que eles começassem a cantar), não entendi o enredo de O Lago dos Cisnes. Na hora dos aplausos finais, perguntei àquela moça como tudo tinha terminado. Ela respondeu que terminou bem. Que tudo terminou bem.
17 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA_Encomendei ração de cachorro para mais seis meses. Agora, dá para aguentar um ano inteiro.
[1] Depois que tanques russos apareceram com um “Z” pintado na blindagem, o Ministério da Defesa da Rússia informou que a letra remetia à abreviação de “até a vitória”, expressão que, em russo, uma vez transliterada do alfabeto cirílico para o latino, começa com Z. Desde então, os russos que defendem a invasão da Ucrânia adotaram a letra como símbolo de seu apoio.
[2] FSB é a sigla em russo para Serviço Federal de Segurança. O órgão, criado em 1995, é um dos sucessores da antiga KGB, a polícia secreta da União Soviética.