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Depois da tempestade
Um ás da escavadeira nos deslizamentos do Guarujá
Mônica Manir | Edição 163, Abril 2020
De início, Carlos Eduardo Ramos viu a cama, que afastou com delicadeza. Como a avalanche tinha sido de madrugada, quatro dias antes, ele presumiu que perto do leito encontraria o casal desaparecido, o homem e a mulher juntos, quem sabe encostados um no outro. Pouco mais de 1 metro adiante, o braço da escavadeira amarela que o alagoano dirigia finalmente resvalou no marido. “Foi o primeiro corpo que achei na vida. Eu tive que chorar”, relembra, marejando novamente os olhos. Ramos havia começado cedo e já era quase meio-dia quando localizou o homem soterrado. Da mulher, nem sinal. Cismou, então, com uma rocha mais à frente, que despencara montanha abaixo. Levou a escavadeira para lá e rodeou a pedra toda durante a tarde. De dentro da cabine giratória, cavava em torno da rocha imensa na esperança de removê-la. “Uma hora a pedra rolou, e um menino, que olhava tudo em cima de uma laje, gritou: ‘Para, operador!’” Os bombeiros desceram até ali e, no lugar de onde a rocha saiu, avistaram a mulher, àquela altura a sétima vítima fatal do deslizamento no Morro do Macaco Molhado, favela onde moram cerca de 3,5 mil pessoas. Nos dias seguintes, Ramos ainda encontraria o capoeirista Rafael Rodrigues e o bombeiro Marciel de Souza Batalha. As autoridades não divulgaram os nomes do homem e da mulher que o operador achou primeiro.
Na terça-feira, 10 de março, as buscas se encerraram nessa comunidade do Guarujá, município do litoral paulista a apenas 12 km de Santos. A catástrofe resultou em nove mortes no morro. Tão logo o resgate das vítimas teve fim, começou a se espalhar por todo o Macaco Molhado a fama de Carlos Eduardo Ramos – Carlinhos pela baixa estatura, Maguila pela voz forte, Coroinha pelos 66 anos ou Monstro da Escavadeira pela habilidade com que manejou a máquina.
“Essa minha destreza vem de mim mesmo”, explica o operador, sem modéstia nem orgulho. Desde 1975, Ramos monta em escavadeiras de mais de 15 toneladas para demolir, carregar, revolver e terraplenar. Aprendeu no dia a dia o jeito mais preciso de manipular as duas alavancas da cabine – ou joysticks –, como se jogasse um videogame. “É pra cá, pra cá, pra cá e pra cá, está vendo?”, diz ele, ao mostrar as opções de controle com a impaciência dos autodidatas.
A Padock, empresa onde trabalha, presta serviços para a Secretaria Municipal de Operações Urbanas e, por isso, foi convocada logo depois da avalanche. Neófito em resgates do gênero, Ramos chegou ao morro decidido a seguir as orientações da Defesa Civil e dos bombeiros. Um deles, inclusive, ia empoleirado na escavadeira, fora da cabine, para enxergar melhor o que havia na área. O material coletado era examinado, posto gentilmente num caminhão pelos braços da máquina e reexaminado no ponto de descarte.
Quando o alagoano entendeu a revolução que o terreno sofreu após os dois deslizamentos, um atrás do outro, passou a seguir não somente os especialistas, mas também a própria intuição. Escarafunchou pedaços de árvores, pedras, solo e restos de construção, sempre preocupado em não machucar o que esperava entregar inteiro. “De repente, me deu um estalo e comecei a remexer aqui, pulei mais 2 metros, tirei o fogão velho, afastei lata, até que abaixei o braço mais um pouco e a terra cedeu, revelando o rosto dele”, conta, sobre o momento em que vislumbrou o corpo do cabo Batalha. Outro bombeiro morto enquanto procurava vítimas, o cabo Rogério de Moraes Santos, havia sido encontrado antes.
Foi um estalo oco que a população do Macaco Molhado ouviu na madrugada do dia 3 de março. Após a primeira enxurrada de lama, uma segunda carregou ainda mais casas, muitas de madeira. Também varreu bananeiras, arrastou lixo e derrubou postes, deixando o lugar totalmente no breu. Com a lanterna do celular ligada, os moradores desceram apavorados as escadas de barro, agora transformadas em cachoeira. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, ligado ao governo federal, as chuvas chegaram a 320 mm em 24 horas, volume bem maior que os 263 mm esperados para todo o mês de março no Guarujá.
“Estamos diante de mudanças climáticas significativas. Os governantes devem admitir que o fenômeno existe e que é necessário dinheiro para enfrentá-lo”, afirma o secretário municipal de Meio Ambiente, Sidnei Aranha. Em 6 de março, o prefeito Válter Suman (PSB) acordou com o governo do estado que a cidade receberá 25 milhões de reais para realizar obras de drenagem e contenção de terra no Macaco Molhado – ou Morro da Bela Vista, seu nome oficial.
Entre os nove municípios da Baixada Santista, o Guarujá – celebrado nas décadas de 1950 e 1960 como a Pérola do Atlântico – é o que concentra o maior número de pessoas em favelas. Dos seus 320 mil habitantes, aproximadamente 95 mil moram em assentamentos precários, de acordo com o Censo de 2010. “O município tem que atualizar o quanto antes o mapa de suas encostas para identificar as áreas que correm perigo”, adverte o engenheiro civil Celso Santos Carvalho, que foi diretor de Assuntos Fundiários e Prevenção de Riscos no Ministério das Cidades durante os governos de Lula e Dilma Rousseff.
Ele também enfatiza que a prefeitura precisa adotar uma série de medidas em comunidades sob ameaça. Por exemplo: adquirir pluviômetros mais eficazes, que indiquem o volume das chuvas com maior rigor; cadastrar a população para que seja avisada a tempo pela Defesa Civil quando houver risco de deslizamentos; instalar sirenes de alerta e sinalizar rotas de fuga. “Remover os moradores seria a última das alternativas, a mais cara e problemática. Falam muito que devemos nos organizar para o ‘novo normal’ – ou melhor, as novas condições climáticas –, mas nem para o ‘velho normal’ estamos preparados”, conclui o engenheiro.
Embora abalado pela experiência no Macaco Molhado, Ramos concordou em levar a escavadeira até a Barreira do João Guarda, outro morro do Guarujá atingido por uma avalanche no dia 3. O operador chegou na sexta-feira, 13 de março, com o intuito de ajudar a localizar nove desaparecidos – pessoas que supostamente viviam na comunidade ou a frequentavam. O número já tinha sido de 34, caiu para dezessete, depois para nove e então para um.
A queda abrupta não coube à habilidade de Ramos ou à bravura dos bombeiros, mas principalmente à organização do agente de saúde Ruben Oliva. Há “uns seis anos”, ele acompanha as visitas dos médicos de família aos domicílios da Barreira e anota à mão, numa caderneta, informações sobre os moradores, como nome, apelido, data de nascimento, telefone e parentes próximos. Cruzando esses dados com os do Sistema Único de Saúde (SUS), contribuiu para a descoberta de que todos os desaparecidos, menos uma mulher de 42 anos, Evangleic Rodrigues de Oliveira, estavam vivos e não se encontravam na favela quando o desastre aconteceu.
As chuvas daquele período acabaram provocando 34 mortes na cidade. Além das nove no Macaco Molhado, houve 23 na Barreira, uma no Morro do Engenho e outra na rodovia Guarujá-Bertioga. Diabético e hipertenso, Oliva evitou subir no que sobrou da Barreira. Mas ele se diz recompensado pelo “pouco” que fez graças à sua caderneta. “A gente não está no mundo apenas para comer e ir ao banheiro, né? Está para mais coisa.”
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