ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Depois daquele boto
Os cetáceos excitados que brincam com serpentes
Bernardo Esteves | Edição 189, Junho 2022
Numa manhã de agosto do ano passado, o biólogo alemão Steffen Reichle e o fotógrafo boliviano Alejandro de los Rios atravessavam, de carro, uma ponte sobre o Rio Tijamuchi, no departamento de Beni, na Bolívia. Estavam ali para fazer imagens dos botos que ocorrem naquela região, uma área de transição entre a vegetação mais rasteira e aberta do Chaco e a mata fechada da Amazônia. Esses bichos são notoriamente difíceis de fotografar, porque raras vezes vêm à superfície para respirar e não ficam visíveis por mais que alguns segundos. Na dúvida, Rios foi armado com um zoom poderoso.
Enquanto Reichle estacionava o carro, o fotógrafo se postou à janela e apontou a câmera para dois botos que avistou ao longe. Clicou sem discernir o quadro com nitidez e só foi ver a cena insólita que havia registrado quando conferiu o visor da câmera, após desembarcar. Os botos pareciam estar carregando algo com a boca, e quando ele ampliou a imagem ficou claro que era uma caudalosa serpente amarela e preta. Rios apontou novamente a câmera para os cetáceos e ainda conseguiu fazer mais uma foto em que os dois botos apareciam de barriga para cima, com a serpente enlaçada ao corpo de um deles. Depois, perdeu os bichos de vista.
Nunca antes cientistas haviam observado botos em contato com uma cobra como aquela. A cena intrigou Reichle, que é herpetólogo (estudioso de répteis e anfíbios) no Museu de História Natural Noel Kempff Mercado, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Sem pistas sobre o que estava acontecendo ali, o alemão resolveu acionar um colaborador, o gaúcho Omar Entiauspe Neto, com quem tem um projeto que pretende catalogar todas as espécies de répteis existentes na Bolívia.
Foi Entiauspe, um especialista na descrição e classificação de serpentes, quem identificou a cobra levada pelos botos: uma sucuri-de-beni, espécie que vive naquela área e não chega a 2,50 metros, enquanto outras sucuris alcançam 5 metros. A serpente boliviana só foi descrita em 2002. “Não sabemos quase nada sobre a espécie”, diz o pesquisador.
Os cientistas supõem que aquele animal ocupe o topo da cadeia alimentar, como as demais sucuris. “Não é muito comum vermos serpentes grandes assim serem atacadas ou manipuladas daquele jeito”, afirma Entiauspe. Os herpetólogos começaram a formular hipóteses para explicar o que a cobra estava fazendo na boca dos botos. Suas ideias acabam de ser publicadas na revista Ecology, num artigo que o brasileiro assina com Reichle e Rios.
As únicas pistas à disposição dos pesquisadores eram as duas fotos tiradas pelo boliviano. Não era uma investigação muito diferente da que se viu em Blow-Up – Depois Daquele Beijo, filme do italiano Michelangelo Antonioni baseado num conto do argentino Julio Cortázar. Nessa história, um fotógrafo decide esquadrinhar um assassinato que ele havia registrado com sua câmera, mas do qual só se deu conta depois de ampliar a imagem.
Os herpetólogos acreditam que a sucuri morreu na boca dos botos, pois ela passou pelo menos sete minutos em poder dos cetáceos, o suficiente para que se afogasse – esse foi o intervalo entre as duas fotos tiradas por Rios. Eles supõem ainda que a serpente estivesse viva no começo da interação, pois não apresentava sinais de traumas ou ferimentos nas fotos. Os cientistas não acreditam que os cetáceos tenham atacado a sucuri para se alimentar dela. A explicação que lhes pareceu mais provável é que os botos estavam simplesmente brincando com a cobra. “A brincadeira é amplamente difundida entre os cetáceos”, explica Entiauspe. Botos, golfinhos e orcas gostam de se divertir uns com os outros ou sozinhos, fazendo acrobacias fora d’água ou manipulando objetos – sejam eles inertes, como um galho, ou vivos, como a sucuri. Mas é raro observá-los brincando.
A cena tinha elementos adicionais que tornavam sua interpretação mais capciosa. Os pesquisadores notaram que filhotes de boto estavam assistindo a tudo a alguns metros de distância, o que levantou a suspeita de que o episódio talvez tivesse um propósito didático. “É possível que eles estivessem mostrando aos filhotes o que seria uma cobra”, especula Entiauspe.
Um último detalhe acrescentou uma camada de malícia à história: ao observar a segunda foto feita por Rios, em que se viam os botos de barriga para cima, os cientistas notaram que ambos eram machos e estavam com uma ereção. É difícil dizer o que causava a excitação. Estariam se exibindo para alguma fêmea nas proximidades? Em todo caso, sua disposição mostra que eles estavam à vontade e reforça a hipótese de que não estavam predando a sucuri ou se defendendo dela. “Talvez estivessem apenas felizes”, arrisca Entiauspe.
O trabalho divulgado na Ecology é o 63º artigo científico publicado por Omar Entiauspe Neto, que tem 24 anos e está fazendo mestrado em zoologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O gaúcho começou a fazer pesquisa aos 14 anos, estimulado pelo herpetólogo baiano Marco Antonio de Freitas, que considera seu pai acadêmico e que o introduziu no método científico e na pesquisa de campo. Estreou na literatura científica aos 15 anos, quando estava no ensino médio. Já descreveu 7 espécies antes desconhecidas pela ciência – 1 anfíbio, 1 lagarto e 5 serpentes, incluindo uma cobra-cipó batizada em homenagem a seu avô, a Chironius gouveai.
O estudo sobre a sucuri e os botos difere dos demais artigos publicados pelo gaúcho por tratar também de mamíferos. “Passo o ano inteiro debruçado sobre répteis, e nesse trabalho pude aprender mais sobre um grupo completamente diferente”, diz Entiauspe. Ficaram inúmeras questões em aberto. “A gente abordou o que viu e o que achamos que pode ser, mas não temos muita certeza sobre qualquer coisa além disso”, admite o pesquisador. “Temos mais perguntas que respostas nesse trabalho.”
O único jeito de resolver esses enigmas seria fazer novas observações e registros do comportamento dos botos. Depois que o estudo foi noticiado pelo New York Times, um usuário do Twitter publicou a foto de um boto com uma cobra na boca que ele afirma ter tirado anos atrás num rio da Bolívia. “É possível que eles gostem de fazer isso com serpentes”, diz o gaúcho. “Isso é algo que eu gostaria de ver respondido nos próximos anos.”