Mais do que a posse de bola em triangulações curtas, que lembra um pouco a escola clássica brasileira, a grande originalidade do Barcelona é a recuperação da bola. Nenhum time pega a bola de volta com tanta competência i SANTA VERÔNICA COM O SANTO SUDÁRIO EL GRECO_THE BRIDGEMAN ART LIBRARY_(FREAKINGNEWS)_MONTAGEM DE PEDRO ZOLLI_2O12
Depois do 4 x 0
É preciso situar a derrota do Santos para o Barcelona como um trauma, um antes e um depois, um sinal de que alguma coisa estranha está acontecendo com o futebol brasileiro
Nuno Ramos | Edição 66, Março 2012
Com o “ritmo do chumbo (e o peso) / do homem dentro do pesadelo” do poema de João Cabral para Ademir da Guia, o jogo entre Barcelona e Santos transcorria à minha frente. Pois como descrever, senão pensando num pesadelo, a bola que fura o zagueiro ao meio (na falha de Durval no primeiro gol), a matada clássica de Ganso (é assim que se faz!) imediatamente surrupiada por Xavi, a falta de graça completa do único fora de série brasileiro dos últimos anos (Neymar), o fluxo incessante de um time contra o eterno beco sem saída do outro? Jamais, que eu me lembre, o futebol brasileiro se viu tão inferiorizado em jogo valendo alguma coisa. Aliás, talvez somente no famoso Uruguai x Holanda da Copa de 74 algum time sério se viu tão dominado durante os noventa minutos. Não é questão do resultado, mas do que aconteceu em campo. Se o Santos chegou perto duas ou três vezes, o Barcelona teve mais de dez chances de gol, mandou duas na trave e fez quatro gols, o terceiro uma verdadeira obra-prima. O Santos não teve o jogo nas mãos nem por cinco minutos, parecendo, às vezes, sequer partilhar a mesma divisão que seu algoz.
É preciso situar este jogo como um trauma, um antes e um depois, um sinal de que alguma coisa estranha está acontecendo com o futebol brasileiro. E não digo isso por ser santista – senti meu time o tempo todo (ainda mais quando Adriano, nosso único marcador eficiente, machucou-se) como uma espécie de baby-beef oferecido às onças, mas haverá alguma alternativa no Brasil? Um time como o Corinthians, por exemplo, campeão brasileiro do ano passado, muito mais sem graça, mas melhor armado que o Santos, teria, tenho certeza, destino semelhante. Faria mais faltas, com um jogador expulso, digamos, aos dez minutos do segundo tempo – e acabaria tomando de quatro, igual.
Parece claro que o futebol brasileiro vive duas crises simultâneas. A primeira é não haver hoje uma safra especial de jogadores. Acho os seis meses de bola verdadeira que Ganso jogou pouco para criar tamanha expectativa; acho que Pato decepcionou; Damião ainda não se firmou; faltam-nos volantes com saída de bola; a interminável escola de zagueiros excepcionais que mantivemos desde 1994 parece estar se esgotando – estamos, talvez, à exceção de Neymar, num momento semelhante ao da Copa de 90, o pior conjunto de jogadores brasileiros que vi jogar (Romário foi à Copa, mas jogou apenas meio tempo).
A segunda crise me parece uma crise de interpretação, de cultura futebolística propriamente. A meu ver, isso vem piorando cada vez mais e necessitaria de um choque de autocrítica, tipo um congresso de filólogos esmiuçando o próprio saber em Caxangá, para se chegar a algum lugar. A má-fé das transmissões da Rede Globo ocupa, com Galvão Bueno paternalizando disparates e crises que ele mesmo cria, lugar de absoluto destaque, o que mereceria tentativas ensaísticas à parte. Mas será tão diferente em outros lugares? Deixando de lado um ensaísmo de fundo, esporádico e interessantíssimo, de nomes como José Miguel Wisnik e Francisco Bosco, Tales Ab’Saber ou Chico Buarque, que encontra no livro recente (e já clássico) de Wisnik, Veneno Remédio, guarida e perspectiva histórica – ao lado de toda a tradição ensaística brasileira anterior, de Décio Pignatari a Vilém Flusser, de Anatol Rosenfeld a Paulo Perdigão, que o tempo andava prestes a devorar de vez –, a verdade é que o bate-bola imediato nas transmissões, na imprensa escrita e nos longos programas televisivos após os jogos continua muito, mas muito fraco.
Tostão, claro, é a exceção, com sua lúcida observação da totalidade do jogo, pedaço a pedaço. Se às vezes suas breves pérolas vêm misturadas a uma espécie de filosofês próximo da autoajuda, vale a pena, e muito, separar uma coisa da outra. Quase todo o futebol brasileiro recente, visto de dentro, sem nenhuma chatice excessivamente técnica, foi comentado por Tostão, que deve ser tomado, provavelmente, como o primeiro comentador especializado em futebol que jamais tivemos – se entendermos Nelson Rodrigues, Mário Filho ou Armando Nogueira mais como ideólogos culturalistas do que conhecedores do jogo. Ainda mais que esta qualidade técnica não vem embrulhada em cientificismo estatístico (como em Paulo Vinícius Coelho, o PVC), com o qual é possível aprender muito, mas ao qual faltam intuição e contato com o lado anárquico, imprevisível, difícil de fixar que caracteriza o futebol como um todo e também cada um dos seus detalhes. Tostão é sem dúvida a boa-nova da cultura futebolística brasileira recente.
Quero tentar, de modo bastante abrupto, caracterizar alguns traços dessa crise, procurando entender sua origem para depois voltar ao jogo que motivou este texto. Para isso, vou começar do começo (meu começo), fazendo uma pequena e selvagem história do futebol brasileiro desde os anos 1958-70.
Acho que a classicidade meio grega dos três primeiros títulos mundiais formaram um patrimônio que é nosso orgulho e fundamento, mas que é preciso também saber superar. Caracterizada por uma plasticidade indefinida, aberta à circunstância, como um vira-lata – provavelmente, aquele mesmo de Nelson Rodrigues – farejando numa rua de subúrbio, a seleção jogava (melhor) e deixava que o adversário jogasse. Visível já em 1950, mas posta numa espécie de latência pela derrota para o Uruguai, impõe-se então como modelo definitivo do futebol brasileiro.
Há algo aqui de um anel de Moebius, reversível em seu dentro e seu fora, seu todo e sua parte, como João Gilberto mostraria em sua obra como um todo, mas em especial quando canta infindavelmente, em loop, já no início dos anos 70, o presente do indicativo do verbo Ser, nas Águas de Março, de Tom Jobim. O tempo ali quer dobrar-se sobre si mesmo e durar, de modo que a estrutura da letra (aquilo que a canção enumera e substantiva, aquilo que o tempo arrasta consigo) simplifica-se enormemente, como um complemento imediato e algo aleatório do verbo Ser. Se trocássemos o “pau, pedra, fim do caminho” da letra de Tom Jobim pelos substantivos do jogo (passe, chute, cabeçada, trivela, gol), talvez tivéssemos uma boa descrição do ciclo 58-70. O futebol brasileiro do tricampeonato gostava do jogo, e parecia simples (como aquele “é” que ecoa pela canção inteira) jogar.
Hans Ulrich Gumbrecht defende a existência de escolas nacionais de futebol, mas não caracterizadas por traços culturais dados a priori (não há nada na cultura italiana, por exemplo, que justifique um time de marcação e contra-ataque), e sim por times que, devido à própria excelência, passam a marcar a cultura esportiva local, irradiando para sempre um sentido e uma aura. Como se vê, a direção da influência aparece invertida – do time para a cultura, e não vice-versa –, dificultando leituras ideológicas simplistas. Cabe lembrar, claro, que esses times não se ambientam em desertos ou oceanos, mas em culturas ativas que deverão filtrá-los, adaptá-los a seus próprios conceitos e preconceitos. No caso brasileiro, a reversão da tragédia de 1950 no tricampeonato de 58-70 trouxe junto uma aura de alegria e improviso de que não nos livramos jamais.
O reinado do vira-lata termina, como se sabe, em 74, com a nova movimentação em campo da seleção holandesa. Não tanto pelo jogo que perdemos para eles (podíamos ter ganhado ainda no primeiro tempo), mas pelo significado que o modo de jogar do time holandês alcançou.
Gosto de um argumento de Stephen Jay Gould (o ensaio, “Perdendo a forma”, está em O Sorriso do Flamingo), em que procura explicar o menor número de rebatidas e home runs no beisebol atual (não há, a partir de 1930, nenhum rebatedor com média de 40% de aproveitamento, o que era razoavelmente comum até então) não pela mudança na bola, na iluminação do estádio (os jogos passaram a ser realizados à noite) ou pelos maiores recursos do lançador, mas por uma genérica melhora do padrão de jogo, distribuída milimetricamente pelo conjunto de seus aspectos e circunstâncias. Apoiando-se em modelos estatísticos, Gould mostra que todos os fundamentos do beisebol são mais bem executados hoje do que em 1927, quando Babe Ruth alcançou seus quase insuperáveis sessenta home runs numa única temporada.
“Quando o beisebol era jovem, os estilos de jogo ainda não haviam se tornado regulares o suficiente para frustrar os truques dos que eram bons de verdade. Aos poucos, os jogadores foram se deslocando rumo a métodos ótimos de posicionamento, defesa, arremesso e rebatida, e a variação caiu inevitavelmente.” Esta característica – a diminuição da variação conforme o sistema se regulariza – serve também para a própria evolução biológica. O mundo paleozoico, segundo Gould em outro ensaio, “era bem diferente do nosso, com poucos representantes de um tipo distribuídos numa variedade bem grande de formas corporais básicas”. A vida, ao testar e selecionar seus modelos, vai ganhando monotonia, e os episódios de extinção em massa dão origem a novos surtos criativos.
Algo parecido aconteceu com o futebol e teve na seleção holandesa a sua resposta. Em vez do passeio brasileiro, disponível, algo aleatório, o carrossel, que gira, como se sabe, em torno de um eixo – a bola –, supõe uma concentração do jogo, que não tem mais espaços mortos, inexplorados, meio amadores e surpreendentemente ativados pelo repente de um craque. Com a Holanda, e para sempre, tudo o que estava latente vem à cena.
O jogo brasileiro (como o do Barcelona atual) era um jogo dos cheios, e o da Holanda um jogo de vazios, originado pela bola, mas se espalhando por todo o campo em ondas remotas de movimentação, como se a virtualidade do time se impusesse à agoridade da posse da bola. Essa tendência espacial, em vez do foco na bola, colocou nosso futebol em apuros e nossa resposta, como tantas vezes em situações de inferioridade terceiro-mundistas, foi excessivamente técnica, quase jurídica. Overlappings, complicações estratégicas, em suma – um superego profissionalizante vem à tona, com técnicos especialistas, preparadores físicos poliglotas, muita chatice e um entender de futebol que calava os amadores. Mas além de duas Copas jogando sem graça nenhuma, o que quase perdemos com esta “invasão holandesa” foi a hipótese da vitória que a geração de Pelé construíra (na inversão da hipótese da derrota da Copa de 50) – como é possível que estejamos perdendo? Acho essa pergunta infantil, nosso quase não saber perder, o legado principal, que permanece até hoje, dos anos de ouro do tricampeonato.
A seleção de 82 retorna a esses anos – não há quase especialistas e a bola rola com uma inventividade maior até do que a de 70 (não vi o time de 58 jogar). No time que perdeu da Itália, à exceção de Waldir Peres, Oscar e Serginho, todos são meias, jogaram ou jogariam na meia (o que lembra 70). Daí o inacreditável fluxo da bola, a promessa de gol rondando, a plasticidade meio vagaba voltando à cena. Mas há aí, como em todo retorno, uma pequena farsa, pois o jogo já fora esquadrinhado pela Holanda, como num scanner, e todos agora sabem mais do que sabiam – menos nós, presos ao modelo que queríamos restaurar. O que faltou à extraordinária seleção de 82, que me fez sofrer como nenhuma outra, foi autoconhecimento – ela jogava para si mesma, fechada em seu próprio circuito de significados (e o principal era: É assim que o futebol brasileiro joga, entendeu?), sem que a possibilidade de haver alguém do outro lado realmente a incomodasse. Era uma espécie de fragmento extemporâneo (e nisso tinha algo das primeiras grandes seleções africanas em Copas) pousado num mundo muito mais competitivo e técnico do que se era capaz de imaginar.
Acho que devemos à seleção de 94 mais do que somos capazes de confessar – a superação do modelo clássico de 58-70, senão na interpretação (a ficha não parece ter caído até hoje), ao menos na própria forma de jogar. Não apenas pela ausência de meias, pelo único craque em campo (Romário, embora Bebeto tenha jogado muito mais do que se menciona), pelo esquema defensivo modorrento, pelo girar sobre si mesma – a famosa enceradeira, imagem aplicada a Zinho que deveria servir para todo o time. Caberia lembrar a atuação de nosso melhor goleiro de todos os tempos, Taffarel, a genialidade de Aldair, a grande atuação de Dunga (com saída de bola e lançamentos, faço questão) e Mauro Silva, a estreia de Cafu, o esplendor de Romário etc. Mas talvez não seja isso o que realmente importa. Com 94 aprendemos que podemos ganhar de outra forma, sem tanto brilho e toque. Que compreender o time adversário é parte constitutiva da vitória. Que podemos negociar no mano a mano, contando cada centavo. Há uma concentração de forças algo espartana em 94, que me parece atual; um ganhar na adversidade, sem sobras nem queixas. E a compreensão definitiva de que no modelo do futebol brasileiro cabe mais do que o conceito ampliado do camisa 10.
Quero me deter um pouco nesse ponto. Acho horrível e até cafona essa imagem habilidosa e alegre de nosso futebol. Primeiro, o deus maior, Pelé, era grosso e craque ao mesmo tempo. Ao lado de um inacreditável primor técnico em todos os fundamentos do futebol, usava a canela e a botinada como ninguém, e, como esses deuses gregos quase faunos, gostava da vida o suficiente para embaralhar o sujo e o limpo. Não vejo alegria em seu jogo, mas potência e fúria. Garrincha, o deus menor, era a um só tempo, digamos, barroco e minimalista, responsável, de um lado, pela famosa e eficaz saída pela direita que todos, zagueiro, ele próprio e torcida, sabiam que faria (a descrição é de Armando Nogueira), mas também por uma espiral dispersiva (essa sim, divertida) que não se percebia muito bem a que parte do campo e do jogo levaria. Essa dupla natureza de Garrincha é seu legado e sua verdade, a conquista efetiva de uma ambivalência natural entre a extrema concentração e a dispersão completa, passando facilmente de uma a outra (devido à ausência de Pelé, machucado, foi utilizando mais a primeira parte que trouxe para casa o título mundial de 62), e não os dribles displicentes de um caçador de passarinhos. O “pedala, Robinho”, na voz de Galvão Bueno, é a caricatura do que temos de evitar.
E do que foi evitado pela geração seguinte, responsável por um título e um vice-campeonato, e que tem nas figuras de Rivaldo e Ronaldo seus principais nomes. As Copas de 98 e 2002 estabilizam os vetores contraditórios de 94 e do ciclo 58-70. Ronaldo, espécie de Pelé especializado, traz a junção entre potência física e técnica de volta, enquanto o desajeitado Rivaldo, meio anonimamente, o vai amparando.
Peço licença para um parêntese. Seria preciso um grande, mas grande poeta para cantar a sina de Rivaldo. Jairzinho jogou uma grande Copa (70), e será sempre lembrado por isso. Rivaldo jogou duas Copas extraordinárias (talvez melhor do que Ronaldo, inclusive). Ganhou tudo o que é possível ganhar, fez gols decisivos nos times por onde passou e na seleção (considero seu gol contra a Bélgica, em 2002, o mais importante da Copa, pois estávamos jogando muito mal e o juiz já tinha dado uma ajuda anulando um gol legítimo deles), foi eleito o melhor do mundo e termina seus dias implorando um lugar junto aos meninos do São Paulo. Foi limado da seleção de 2006 sem ninguém lamentar – e, olhando de trás pra frente, quanta falta fez! Não vão fazer um jogo de despedida para ele? Um programa de televisão, um mísero sambinha? Entre nossos craques maiores, Rivaldo é de longe o menos amado. Mal-humorado, magro, feio e pouco expressivo, parece ter entrado na máquina cosmopolita sem verdadeiramente partilhá-la. Mas, um pouco como Joaquim Cruz ou Nelson Piquet, talvez saia dela parecido com o modo como entrou.
De toda forma, devemos a essa dupla a recuperação de toda a potência que deixáramos para trás em 82 – mas sem qualquer aristocratismo ou ingenuidade. O time de 98 estava longe de ser um grande time (tínhamos Júnior Baiano! E a verdadeira enceradeira, Leonardo!) e foi carregado nas costas pelos dois. A crise sacrificial, como um transe entrópico, de Ronaldo dá uma dimensão real, em tempo real (no quarto do hotel, pouco antes da final de uma Copa do Mundo), ao que pareceria leve e inevitável. É um evento não filmado mais real do que aquilo que se filmou e talvez tivesse de acontecer para que não perdêssemos contato com o maior jogador de sua geração, nem ele perdesse contato conosco. É a convulsão que distingue Ronaldo de Ronaldinho Gaúcho e oferece seu sucesso contínuo à esfera do sacrifício e do transe pessoal. Com Ronaldo, a abstração e ubiquidade do mundo atual encontram um corpo concreto para possuir e tatuar; em troca, ele parece ganhar espessura e realidade (faz sentido que, ao longo de toda a carreira, tenha tanta dificuldade para controlar o peso – precisava dele).
A sequência de contusões e sacrifícios, sobreposta ao talento midiático, faz dele um desajeitado Michael Jackson, embora sem nenhuma esquisitice de caráter ou biográfica. Há com certeza algo trágico em sua figura, mas, pela primeira vez entre nós, não foi a pobreza que cavou esse buraco (como cavou em Garrincha e em tantos outros) – foi a velocidade do mundo contemporâneo que o mascou, como mascaria a qualquer outro (vide a cabeçada de Zidane na final de outra Copa do Mundo).
Neste sentido, Rivaldo e principalmente Ronaldo dão o grande salto cosmopolita que a cultura brasileira tanto deseja e infantiliza (hoje, na área da cultura, a bola da cosmopolitização – feiras, mercado, leilões, carreiras internacionais – parece estar com as artes plásticas). São futebolistas do mundo, sem uivos de saudade nem grandes grilos com o fuso horário. Mas pagam o preço que se paga, babando e tremendo miseravelmente no quarto de hotel momentos antes de jogar uma final de Copa do Mundo; arrebentando o adutor na frente das câmeras; tendo o organismo franzino bombado com sabe-se lá quais e quantos aditivos. Rivaldo e Ronaldo preparam assim o caminho para o grande astro, o bibelô neobarroco, o trapezista titular do Cirque du Soleil do futebol cosmopolita – Ronaldo Gaúcho, a meu ver a grande esfinge do futebol brasileiro contemporâneo, que vem nos devorando porque nunca a deciframos.
Até hoje, seis anos depois da derrota para a França, em minhas insônias ouço uma vozinha insidiosa perguntando – Mas o que aconteceu com o Ronaldinho? A queda absoluta e definitiva do seu futebol durante a Copa de 2006 (foi eleito o melhor do mundo em 2005) é para mim, como a canção dos Novos Baianos, o mistério do planeta. Único futebolista (e não Messi, que parece um Zico muito mais veloz) comparável a Maradona, jogando numa região entre a fantasia e a competência absolutas, Ronaldinho, para dizer o óbvio, era a própria velocidade (basta lembrar seu arranque para o gol de Rivaldo contra os ingleses em 2002). Mas atolou como uma foca em território pegajoso, equilibrando às vezes a bola no nariz. Claro que ainda sobraram a visão de jogo, os lançamentos longos e algumas faltas. Mas, sem velocidade, o esplendor técnico vira truque, e alguma coisa enjoada, próxima da manha e do artifício, que seu futebol antes de 2006 justamente conseguia deixar para trás, aparece. O que mais me irrita em sua “obra tardia” é que ela condena a que criou quando jovem, como se aquilo não pudesse mesmo ser verdade.
Talvez o leitor se lembre de uma propaganda que circulou pelo YouTube em 2005, em que Ronaldinho acertava, num único take, a trave por quatro vezes consecutivas, sem deixar a bola cair no chão. Fui ingênuo o suficiente para acreditar que tinha efetivamente feito aquilo. Acho que a questão do possível (Isso é possível?), levantada por Maradona, teve em Ronaldinho um segundo momento pleno. Jogar com as costas? Passar para a esquerda olhando para a direita? Fazer a bola voltar para trás por causa do efeito? Mover a bola entre a esquerda e a direita, num elástico, com o mesmo pé, e com a jogada em movimento? Fora do fluxo do jogo, tudo isso vira futebol de salão, e imagino o que não será o repertório de um jogador de quadra, como Falcão. Mas na imensidão de um campo de grama, em fase com as inúmeras e anárquicas coordenadas de um jogo, o que Ronaldinho e Maradona faziam cavava um buraco. A câmera lenta, pela primeira vez, servia à decifração do que acontecera, e não à repetição deleitosa do que já conhecíamos.
Pois bem – onde foi parar isso tudo? É aqui que começa, creio, a crise que desemboca no jogo entre Barcelona e Santos. O Brasil vinha de três finais consecutivas de Copa do Mundo. Havíamos humilhado, um ano antes, sem que Ronaldo estivesse em campo, adversários históricos na Copa das Confederações (Argentina e Alemanha). Tínhamos dois jogadores eleitos por cinco vezes os melhores do mundo (Ronaldo e Ronaldinho), um futuro melhor do mundo e já craque consumado (Kaká), um jogador mediano jogando muito acima de suas possibilidades (Adriano) e um jovem fenômeno (Robinho). Roberto Carlos e Cafu pareciam apostas seguras, experientes. O técnico bonachão (Parreira) não queria complicar muito as coisas. No entanto, tudo deu errado. Por quê?
Com essa eu não perco o sono. Era natural que estivéssemos seguros demais, ainda que todos repetissem o contrário a cada entrevista. Estávamos cumprindo um ciclo de ouro semelhante ao de 58-70, sem o vexame de 66 pelo meio. Havia uma falta natural de referência, de contraste, de sangue inimigo nas veias. Nosso adversário atual e de 98 saíra da Copa anterior sem marcar um único gol. Não chamo isso de soberba. Há algo de um monólogo em toda vitória e era inevitável que estivéssemos recitando o nosso. Então perdemos, o.k. Para uma espécie de aranha neutralizadora (a França), especializada em não deixar jogar nem jogar propriamente, o avesso simétrico de nosso jogar e deixar jogar da fase clássica, um dos times mais monótonos da história, que teve nos 3 x 0 contra nós da final de 98 e na cabeçada de seu maior craque contra o peito de um zagueiro da final de 2006 os dois únicos momentos verdadeiramente emocionantes de seu percurso recente.
Mas é aqui que entra a segunda crise que venho mencionando – a de interpretação. Nosso problema era nitidamente de renovação. Deveriam sair os senadores das Copas anteriores, com certa mácula na carreira etc. – e bola pra frente. Mas não. O que se viu foi o velho argumento brasileiro da falta de raça. Não sei se é exclusivo nosso, mas sei quanto estrago vem fazendo entre nós. Me parece um resto de mentalidade escravista, onde o esforço do outro pode ser julgado de longe, da varanda da casa-grande (ou seja, da cabine de locução televisiva). Precisávamos do contrário, agora – suor, convulsão militar, pacto de sangue, paranoia, inimigos em cada esquina. E foi isso o que tivemos. Dunga.
Perdemos, com essa inversão mecânica, a compreensão do que ocorrera, e a única coisa que ocorrera é que estávamos ganhando tudo havia doze anos. Ponto. Desconectamos, como sempre fazemos, com o momento presente, reagindo à crise pela inauguração de uma “nova era”, burramente inversa à atual. E deixamos a esfinge, Ronaldinho, sem decifrá-la. Como pôde essa rara brecha na monotonia do cosmos fechar-se tão rapidamente? Qual o preço a pagar por isso? E como ativá-la, despertá-la novamente? Será que a resposta não era a mais simples – que ele simplesmente não funciona como ator principal (jogou 2002 sob as asas de Rivaldo e Ronaldo), travando quando protagonista? Não foi isso exatamente o que ocorreu com Rivelino, cujo futebol caiu enormemente ao chefiar as Seleções de 74 e 78 (quando acabou se contundindo)?
Não, preferimos formar um time de contra-ataque (acho que Dunga, como técnico, sabia muito bem o que queria) baseado em Kaká, Robinho, Luis Fabiano e na velocidade absurda de Maicon, vencemos a Copa das Confederações de novo (tomara que a gente perca a próxima), tomamos toda a humanidade por inimiga disfarçada e, quando um de nós falhou, traiu, frangou (apesar dos esforços de Galvão Bueno, o nome do primeiro gol da Holanda em 2010 é “frango do Julio Cesar”), entramos em parafuso paranoide. Agora, claro, todos são contra Dunga e querem de volta o futebol alegre, descontraído, o verdadeiro futebol brasileiro. Claro que isso vai nos arruinar novamente. Pois, se tivermos alguma chance de chegar a algum lugar, será mais pelo caminho do autoconhecimento e de uma certa ascese, que tem 94 como modelo.
Há um traço da vida social e cultural brasileira que não posso deixar de mencionar: uma agoridade fóbica, estranhamente acesa e voraz, mas que desconecta o instante presente, tão cheio de si, do instante passado e do instante futuro. Acaba que ficamos (como aquele filme adorável em que Bill Murray não consegue sair de um eterno Dia da Marmota) presos no presente, como um ponteiro enguiçado e eufórico. Em momentos de crise, como o que vivemos agora, é hora de conectar os fios, tentando formar uma trança, para acordar no dia seguinte.
Acho que estamos ainda no rescaldo de uma geração extraordinária, comparável à do ciclo 58-70 – Kaká e Robinho são, em sentido largo, os últimos de uma geração que começa em 94 e tem no timaço de 2002 o seu auge. Vamos ter de inventar um time de novo, tendo Neymar como centro, mas, ao menos hoje, sem qualquer outra referência segura.
Se há, no entanto, uma coisa que o futebol brasileiro aprendeu é que é possível jogar de várias formas – afinal, mesmo o time de Dunga conseguiu, antes da Copa do Mundo, grandes atuações à italiana, com uma recuperação de bola forte e um contra-ataque excepcional. Não tenho medo da primeira metade de nossa crise (certa falta de brilho na geração atual de jogadores), mas sim do que faremos com ela (nossa cultura futebolística).
Talvez a plasticidade vagabunda de nosso ciclo clássico, que se espalhava pelo campo com tensões e distensões, dispersões e súbitas convergências, tenha migrado de um único jogo para diversos estilos de jogo. O vira-lata, agora viajado e futebolisticamente culto, fareja e se interessa por várias formas de jogar. O subúrbio espalhou-se – está em Lyon, em Moscou, em alguma cidade no meio da Ucrânia. Em vez de alegre, inventivo, poeta ou pedaleiro, provavelmente o que caracteriza nosso futebol, já tão exportado, é seu acesso a vários estilos. Imagino a barra, para um menino de 20 anos, de entrar num campo quase congelado em Gdansk ou em Munique (é essa barra que convulsionou um outro menino de 21 anos, Ronaldo). O resultado positivo disso, no entanto, é que temos um menu bastante variado à nossa frente.
Para voltar ao jogo Barcelona x Santos, mas continuando com algumas simplificações cortantes, acho que o futebol é composto por duas forças básicas: 1) A qualidade dos jogadores, que se dividem entre aqueles universalistas, espalhados por mais de uma função e locais do campo, e aqueles especialistas, que cumprem um único papel, numa mesma região do campo – suspeito que a balança atual esteja pendendo para os primeiros, depois de décadas de especialização; e 2) O misterioso e difícil de definir “clic” coletivo de um time. Este segundo aspecto é particularmente decisivo nos clubes e ocorre de modo muito diferente nas seleções nacionais, que não têm o mesmo tempo de maturação. Embora quase esquecido nos dias de hoje, obviamente tem a mesma força estrutural do primeiro.
Quando eu era menino, nas décadas de 60 e 70, a forma de jogar de um time durava uma década. Vários jogadores saíam, mas alguma coisa permanecia, uma verdade de fundo, parecida com aquela que num artista, por mais que varie e negue o que faz, podemos chamar de “estilo”. Isso termina definitivamente nos anos 90, com a velocidade alucinante das contratações, a entrada dos milionários russos, a exigência de resultados imediatos, novos times querendo firmar a marca etc.
Acho que vem daí muito da valorização excessiva dos técnicos de futebol (tecla em que Tostão vem batendo constantemente) – eles têm de fazer em meses o que somente um longo período fazia por um time. Dar-lhe uma cara, um ritmo, uma preferência: lado esquerdo ou direito do campo? Bolas alçadas ou pelo chão? Jogo mais lento, com mais gente perto da bola, ou mais rápido, com jogadores mais espalhados? Marcação na frente ou atrás? Essas decisões eram, digamos, semiconscientes, maceradas pelo fluir de vários jogos, e só uma força podia verdadeiramente tomá-las: o tempo. Mas o tempo ficou precioso demais e hoje as pranchetas, os esquemas táticos, as longas preleções é que o fazem.
O que quer que se diga do Barcelona, é preciso começar daí: trata-se de um time que joga de modo parecido há mais de duas décadas, e está para todos os demais como um time entrosado para um grupo que acabou de se reunir. Pois não há José Mourinho que faça pelo Real Madrid o que duas décadas de erosão e ajustes fizeram pelo Barcelona. Neste sentido, há aqui uma força de retorno bem catalã, oposta às imperiais “seleções cosmopolitas” do Real Madrid, feitas a partir de contratações bombásticas (os “melhores do mundo”). A província dominada, fletida sobre si mesma (grande parte dos jogadores do Barça saiu de sua escolinha), parece ter recuperado algo que o futebol deixara para trás, como fator superado. Acho óbvio que, se o Real topasse perder algumas temporadas seguidas para o Barça sem trocar tudo e todos, acabaria por equiparar as forças – afinal, à exceção de Messi, o time do Real chega a ser melhor do que o do Barça. Mas não. Derrotas, como gols, criam crises e põem em movimento uma massa confusa de recursos quase infinitos, e tudo começa de novo.
O Santos montou um time paradigmático no primeiro semestre de 2010. Jogou, e ganhou, um Campeonato Paulista e uma Copa do Brasil (dois torneios com muitos adversários fracos), com uma vocação ofensiva como não se via há décadas. Seu técnico, Dorival Júnior, chegava a tirar um zagueiro para colocar outro atacante, e os resultados eram placares larguíssimos, muitíssimos gols a favor e demasiados gols cedidos, numa inédita campanha semissuicida que levava os santistas à loucura. Este time inovador, muito melhor que o de 2011 (que ganhou a Libertadores aos trancos e barrancos e com um chute impossível de Danilo), criaria uma espécie de ilusão renitente no futebol brasileiro. Como um fantasma gentil, já não estava lá, mas era ele que todos enxergavam, até que a derrota para o Barcelona pusesse as coisas no lugar.
Ganso aparecia como um fora de série, o que não se confirmou até hoje, Neymar era já Neymar, Robinho, jogando na meia, habitava o lugar que devia habitar – o de um armador-atacante sem tanto compromisso com o gol, já que é um finalizador muito deficiente –, André fazia o pivô com rara felicidade e Wesley, sim, Wesley era um craque consumado. Em suma, um forte “clic” estava se formando. Mas, claro, jogamos tudo fora em menos de seis meses. E não foi pelo ouro de Milão, que levou Robinho de volta – começamos por criar uma crise entre Neymar e Dorival Júnior, o técnico que o lançou verdadeiramente no futebol (Luxemburgo o chamava de “filé de borboleta”), e depois fomos vendendo todos aqueles excelentes jogadores (poupando os dois maiores, Ganso e Neymar), que, tenho certeza, nunca mais na vida jogarão o que estavam jogando.
Porque jogadores fora de série, como Messi, Neymar, Kaká ou Zidane, não precisam de um “clic” – são uma espécie de acréscimo seguro àquilo que encontram. Mas excelentes jogadores, como Wesley, André, Danilo, dependem totalmente da respiração coletiva e podem se tornar medíocres em outro contexto. Não me irrita perder Neymar para o Real ou o Barça – sei que isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde –, mas me irrita muito perder Danilo para o Porto. Em nome de quê? Duvido até que seja economicamente bom para ele – ganharia a bolada que ganhou agora de outra forma, numa carreira mais longa e próxima de sua torcida, ou de uma possível convocação.
Times precisam de tempo, e quem der mais tempo a seus times irá mais longe. Essa é a primeira e simples mensagem a ser tirada de Santos e Barcelona, e da existência deste time do Barcelona em geral. O São Paulo deve seu tricampeonato brasileiro a uma razoável conservação de energia (o técnico, por exemplo, que ficou por quase quatro anos); times rebaixados voltam com força à primeira divisão pelo simples fato de jogarem juntos por mais de uma temporada – vide os exemplos dos campeões Corinthians e Vasco.
É curioso que, na caracterização de uma coisa tão nova, seja preciso lembrar que o Barcelona é, antes de mais nada, um time antigo, e que isso lhe dá de saída uma grande vantagem sobre todos os demais. Se o Santos de 2010 tivesse prosseguido, a final do Mundial Interclubes teria um significado futebolístico muito forte. Acho que perderíamos, mas teríamos jogado e agredido. Desfazer o time de 2010 (ainda que mantendo Ganso e Neymar) foi um erro sem remissão. Jogamos fora o “clic”, ou seja, tudo, como se algo precioso e raro não tivesse acontecido ali.
Não posso terminar sem falar um pouco do Barcelona. Mais do que a posse de bola em triangulações curtas, que lembra um pouco a escola clássica brasileira, sua grande originalidade é a recuperação da bola. Nenhum time, que eu me lembre, pega de volta a bola com tamanha competência, e não é difícil entender por quê. Para fazer o seu João Bobo progressivo, deve jogar com muita gente perto da bola; por isso, claro que seu ponto fraco é oferecer o contra-ataque, pois há necessariamente gente faltando lá atrás. Deve recuperá-la, então, ou ao menos parar o jogo com faltas (e como fazem faltas!). Isto cria uma estranha fluência, ou quase equivalência, entre ataque e defesa (o argumento é de José Miguel Wisnik), que é nova.
O tempo todo a bola está dominada, circulando em toques de primeira, como entre as quinas de uma mesa de bilhar; mesmo que haja um corredor aberto à frente, espera-se o companheiro chegar para o torniquete das triangulações. A ansiedade não é tanto a de deixar para trás o maior número possível de defensores. Como um boxeador que ajustasse a mira pela guarda do adversário, preferindo-a composta, a escolha é ter a defesa à frente, para então penetrá-la. E, ao perder a bola, sufoca-se ou derruba-se o ladrão. É assim o jogo dos cheios que retorna, deixando para trás o modelo espacial holandês. Mas um jogo dos cheios num campo já desencantado, que deve ser palmilhado em marcha contínua, sem surpresas nem hiatos, sobressaltos ou pontos mortos.
Se há certa monotonia em ver o Barça jogar (isso fica óbvio na seleção da Espanha, que joga da mesma forma, mas, por falta de Messi, acaba criando uma agonia sem gol, ou priapismo sem gozo), ela virá certamente daí, da energia contínua do jogo, da equivalência entre defender e atacar, da falta de chutes longos, lançamentos, viradas, repentes, humores, mudanças de velocidade e de ritmo. Como uma locomotiva num trilho, o Barcelona triangula, triangula, e alguma hora, como uma consequência inevitável, marca. Move-se como uma mancha de petróleo na água, sem sobressaltos. Aspectos trágicos do futebol, vindos da dificuldade de converter domínio de jogo em placar, são fortemente diminuídos. Um time que tem 70% de posse de bola expõe-se pouquíssimo, e a justiça estaria sendo feita afinal neste jogo anárquico.
Mas será assim? A pior coisa que se pode fazer é imaginar que essa seja a única forma de jogar. Claro que não é – por dois anos (mas, de novo, sem continuidade), a Inter de Mourinho enfrentou o Barcelonaem igualdade de condições, com outra proposta de jogo (de alguma forma semelhante à do Brasil de 2010). O futebol continua carregando seus vazios, seus buracos e seus arbítrios (e a pena de termos jogado fora o Santos de 2010 é que ele se oferecia explicitamente a isso.) Mas, para tanto, é preciso recuperar uma dinâmica de clube que o Barcelona parece ter reinventado.
As obras de Gaudí formam uma espécie de fungo art nouveau – é como se as fachadas já bastante trabalhadas de Barcelona fermentassem, inchando para todos os lados. Uma imaginação quase gnóstica nasce aqui – tudo se parece com tudo; vegetal e pedra, alto e baixo, céu e gruta trocam o tempo todo de lugar. A longa cadeia dos seres comparece, esparramada por cada um de seus membros, como se uma origem comum placentária estivesse presente. O espaço é conquistado palmo a palmo, em metamorfoses contínuas, sem grandes sobressaltos nem confronto entre as partes. A própria oposição entre os estilos gótico (nervuras, arcos, espaços abertos) e árabe (pátios, claustros, vedações, espaços interiores em modulações para dentro) parece apaziguada, como partes de um dragão cosmogônico que tivesse devorado a ambos.
No entanto, as forças de simplificação e universalização modernas, com sua impessoalidade e abstração – que desembocariam na Bauhaus ou na “máquina de morar” do suíço Le Corbusier e criariam conflito para todos os arquitetos dessa geração –, parecem ausentes em Gaudí, cuja obra distorce, mas não vence esse casulo multidisciplinar em torno do conforto burguês a que chamamos estilo art nouveau.
O time do Barcelona tem muito de Gaudí – continuidade homogênea entre os opostos (defesa e ataque, alto e baixo, pedra e planta); energia dispersa em todas as partes, sem hiato (não há quinas na obra de Gaudí nem variação de velocidade na forma de o Barça jogar); força provinciana; autocentramento identitário. Claro que há em Gaudí uma espécie quase escandalosa de disparate, que seu trabalho conquista e palmilha (a fusão do gótico com a espacialidade mudéjar), ausente no time do Barcelona, mais metódico e monótono. Mas vejo em ambos um provincianismo libertário, reiterado até furar a placenta e nascer.
Há muito para aprender aí – provavelmente este time do Barcelona representa a maior experiência futebolística das últimas décadas. Mas seria pena deixar-nos medusar a ponto de confundir o próprio futebol com isso. A arquitetura de Le Corbusier, ao espalhar-se, em seu cosmopolitismo, pelo mundo inteiro, marcou profundamente nossa própria cultura, através de sua influência decisiva sobre um de nossos maiores artistas, Oscar Niemeyer, e seu escudeiro, Lucio Costa. Acho que somos em grande parte herdeiros dessa linhagem, e, apesar de toda forçação de barra do raciocíonio, é com ela que quero terminar.
“Condenados ao moderno”, na frase de Mário Pedrosa, acho que acessamos uma espécie de estrutura básica do futebol, um “pilotis, planta livre, terraço-jardim”, que nossa cultura futebolística oficial, ao reduzir-nos à habilidade com a bola no pé, mascara e perde. Podemos, ao contrário dessa visão, jogar de muitos modos, talvez com mais facilidade do que em outros lugares, e é isso o que vimos fazendo já há alguns anos. Por isso ganhamos tanto. Precisamos, em nossa compreensão do futebol, deixar para trás o modelo 58-70, não para diminuí-lo, mas para alargá-lo. A flutuação clássica entre diversos momentos e espaços do jogo, um gostar de descobrir o campo e os trajetos da bola, espécie de curiosidade flutuante típica do vira-lata tricampeão, não se dá agora numa única partida, mas entre culturas e estilos diferentes. Podemos habitá-los, fusioná-los, deixar-nos levar por eles. O time extraordinário de 2002 teve muito disso.
Mas, para desenvolver esse traço, teremos de enxergar muito bem o que temos em mãos – e também o que não temos. Acho que Muricy avaliou mal o time do Santos, ampliando suas qualidades (o ataque) e minimizando seus inúmeros defeitos, provavelmente influenciado pelo time de 2010, que nunca treinou. Precisamos entender o papel que seleções pouco brilhantes como a de 94 tiveram em nossa história; precisamos até mesmo acertar as contas com Dunga, que jogou a Copa do Mundo de 2010 como se ainda fosse a das Confederações de 2009, mas provavelmente não passou tão longe de ganhar, já que, se tivéssemos superado a crise de pânico do primeiro gol da Holanda, um time retraído e em contra-ataque como o nosso teria grandes chances contra a Espanha.
Mas seria preciso (ao contrário do que vem fazendo Mano Menezes) desenvolver um projeto com persistência e clareza, longe do “verdadeiro futebol brasileiro” das locuções esportivas. E deixar a esfinge de lado, perdoando seus mistérios. Afinal, haverá algo mais melancólico do que ver Ronaldo Gaúcho jogando esse futebolzinho e ainda por cima convocado? Melhor deixá-lo onde está, estacionado do lado esquerdo do campo, empinando a bola num sorriso eterno (triste como o dos clowns fora do picadeiro), e montar, afinal, um time novo.
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