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    A ilustração é inspirada em uma litografia que retrata o encontro dos índios com Cristóvão Colombo, quando o genovês chegou às Américas, em 1492: a história explica quem apagou quem CREDITO: VITO QUINTANS_2020

questões democráticas

Derrubem as estátuas

Quem reclama da “cultura do cancelamento” está cego para a cultura do outro

Miguel Lago | Edição 168, Setembro 2020

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No dia da comemoração da Independência dos Estados Unidos, o presidente Donald Trump fez um discurso no Monte Rushmore alertando para uma nova forma de totalitarismo: “É a cultura do cancelamento, que faz muita gente perder o emprego, destrói a reputação de quem discorda e exige a submissão total de todos que pensam de outra maneira. Isso corresponde à própria definição do totalitarismo, é completamente alheio à nossa cultura e não tem nenhum cabimento nos Estados Unidos da América.”

A preocupação de Trump é compartilhada por boa parte da intelectualidade progressista norte-americana. Em uma carta publicada na revista Harper’s, 150 intelectuais, dentre os quais se destacam grandes nomes da esquerda, como Noam Chomsky e Michael Walzer, chamaram a atenção para o perigo do silenciamento e para as ameaças à liberdade de expressão, ao livre pensar e ao debate aberto de ideias que, segundo eles, está imperando nos ambientes progressistas. O documento fala explicitamente em momentos de intolerância generalizada.

A carta denuncia fatos graves, como a demissão de diretores de empresas, constrangimento de editores de jornais e a destruição de reputações, sem que lhes seja garantido o direito à defesa. Os signatários terminam dizendo que a justiça não pode ser obtida à custa da liberdade. À diferença de Trump, eles afirmam admirar os movimentos que buscam justiça social e racial no país, mas discordam de suas táticas. Mas, numa consonância rara, “conservadores” e “progressistas” parecem se unir na defesa da liberdade de expressão e da livre circulação de ideias – fundamentos da democracia liberal. Seria a “cultura do cancelamento” um risco à democracia?

 

A expressão “cancelamento” teve origem na cultura pop norte-americana e se popularizou nos últimos anos. O termo se tornou um meme comum no Black Twitter, como é chamada a rede de perfis no Twitter que se dedica a comentar assuntos importantes para a população negra, e pouco a pouco passou a ter uma nova aplicação: expor, criticar e “cancelar” uma pessoa que dissesse ou fizesse algo ofensivo a outros. A professora Lisa Nakamura, da Universidade de Michigan, define o cancelamento como um “boicote cultural”. Ou seja, um acordo para não amplificar, promover ou dar dinheiro para uma pessoa que foi “cancelada”.

A estratégia é fruto da dinâmica das redes sociais. O surgimento da web 2.0 transformou o consumidor passivo de conteúdo em produtor ativo de informação. A esfera pública se expandiu, incluindo novas vozes, novas perspectivas e novas visões. Os jornais, as emissoras de televisão e rádio perderam o monopólio do acesso à opinião pública. A lógica do broadcast (de um para muitos) foi suplantada pela lógica do multicast (de muitos para muitos).

Para se comunicar com um público amplo no multicast, é importante ter seguidores. Sem eles, não há canal nem audiência. À diferença da celebridade analógica, cujo sucesso é mediado pela obra, a celebridade nas redes sociais, vulgo influencer, deve seu sucesso em grande medida aos seus seguidores. Sua grande obra é exatamente ter reunido um imenso séquito atrás de si.

Por ironia, os influencers, justo eles, são os primeiros a reclamar de serem “cancelados”, pois perdem patrocínios, renda, popularidade. Beneficiaram-se da nova relação entre a celebridade e seus fãs, mas reclamam que, agora, a massa que cria a estrela também tem o poder de enfraquecê-la. Assim, o cancelamento a priori não passa de prestação de contas nas redes sociais. Quem dispõe de muitos seguidores deve ser mais cuidadoso na hora de postar. Mas é importante fazer uma distinção: o objeto do cancelamento não é a pessoa, e sim seu perfil.

De entrada, a rede social obriga cada usuário a criar uma nova persona, uma projeção de um novo “eu”. Para muitos, a vida real se converte em estúdio para a formação da identidade do novo “eu”, do perfil. As viagens e festas são produzidas para o perfil de Instagram, assim como as opiniões e posicionamentos para o perfil de Twitter ou Facebook. O perfil é uma espécie de panóptico voluntário: você é sempre observado e não sabe exatamente por quem, mas espera que seja um grande número de pessoas e que sua identidade seja aprovada.

Uma das consequências disso é que essas plataformas, ao mesmo tempo que democratizaram a produção da opinião, também incentivam práticas que desqualificam o debate público. A dinâmica do perfil favorece a formação de bolhas, a banalização da opinião, a degradação da autoridade. O exemplo mais divertido desse fenômeno é a reação de bolsominions a um tuíte do papa Francisco durante as eleições de 2018. Quando o Sumo Pontífice conclamou os eleitores a priorizar agendas de desenvolvimento acima de agendas armamentistas, os bolsonaristas foram ensinar o papa a rezar missa: contestaram citando trechos da Bíblia que supostamente fazem apologia às armas. O Twitter retira até mesmo a autoridade do papa em relação à interpretação da Bíblia. Afinal, qualquer um terá uma opinião tão válida quanto à dele sobre textos sagrados.

Os algoritmos privilegiam conteúdos que geram mais interação. Quanto mais sensacionalistas, maior o alcance. Nesse ambiente, o cancelamento pode ser uma excelente maneira de preservar o mínimo de respeito no debate público. Dado que os Estados nacionais não podem regular essas plataformas multinacionais, a regulação e moderação têm que vir de dentro. Nesse sentido, o cancelamento pode ser visto como uma forma de autorregulação dos perfis e suas opiniões, submetida à mesma lógica de multicast.

Mas a dinâmica do perfil gera outro incentivo problemático. Por se tratar ao mesmo tempo de uma coluna de opinião interativa e um arquivo de opiniões passadas, a tendência do perfil é transmitir, sempre, uma imagem de coerência. Diante de eventos e discussões, espera-se que o perfil se posicione com clareza e celeridade. Não há espaço para dúvida, ambiguidade, complexidade, e essa mesma coerência absoluta é cobrada de outros perfis. Em uma conferência no ano passado, o ex-presidente Barack Obama criticou essa característica: “O mundo é complicado. Ambiguidades existem. Gente que produz coisas muito boas [também] tem seus defeitos. […] Para certos jovens das redes sociais, parece que o caminho da mudança passa pelo máximo de rigor no julgamento moral dos outros.”

Sendo o que é, o perfil naturalmente leva à radicalização. Michael Walzer, o signatário da carta da Harper’s, diz que o radicalismo moderno na política tem origem no calvinismo. A expectativa puritana da nova religião cria um novo sujeito político: “o santo”, que, de acordo com o autor, se manifestará ao longo dos séculos no jacobinismo e no leninismo. O “santo” deve ser imaculado, puro e intransigente. A dinâmica do perfil é semelhante e favorece essa postura política, ajudando assim na proliferação do sectarismo e da radicalização.

 

O cancelamento se origina e se encerra nas redes sociais. No entanto, a crítica feita sob o guarda-chuva do conceito de “cultura do cancelamento” abarca outros fenômenos diferentes que cabe aqui discutir, ainda que eu considere que não estejam no mesmo plano. Em especial, o termo tem sido empregado para se referir a outros três fenômenos distintos: a derrubada de estátuas de figuras históricas, a demissão de pessoas acusadas de atos de racismo, misoginia ou assédio, e o questionamento da legitimidade de certos intelectuais para debater qualquer tema. Em artigos, entrevistas e podcasts, eis as palavras mais usadas pelos que denunciam a dita cultura: justiçamento, silenciamento, apedrejamento, massacre, linchamento, politicamente correto, censura, revisionismo histórico, iliberalismo, humilhação em praça pública. Será que são termos pertinentes para se referir a todos os fenômenos contemplados pelos que cunharam o termo de “cultura do cancelamento”?

No início de julho, um artigo divulgado pela AFP se referia à derrubada da estátua de Cristóvão Colombo, na cidade norte-americana de Baltimore, como “um novo episódio da onda de ataques contra monumentos ou estátuas de personagens históricos vinculados à escravidão e ao colonialismo”. O termo “ataque” tem sido usado para descrever a derrubada de estátuas que ocorre em diversas cidades do mundo. O assunto despertou amplo debate entre jornalistas, historiadores e ativistas, sob acusações de “revisionismo histórico” e de que não se pode apagar a história.

A crítica à derrubada tem um argumento muito pertinente. Não se pode condenar a posteriori figuras que estão inseridas em outros contextos históricos e são produtos de outros sistemas de pensamento. Essa reflexão é oportuna em um país que costuma retratar seus chefes de Estado do passado como caricaturas. Dom João VI é visto como um corno bufão. Pedro II é tratado como um preguiçoso. Getúlio Vargas, como nazifascista. Juscelino Kubitschek, corrupto e megalomaníaco. João Goulart, pateta e covarde. Ainda que essas constatações se inspirem em fatos concretos, nenhuma delas é suficiente para interpretar essas figuras na sua integralidade. Getúlio Vargas é o carrasco de Olga Benário e de muitos outros, mas é também aquele que desviou o Brasil do destino que lhe reservaram as elites liberais: o de se tornar uma grande Guatemala. Precisamos conhecer e representar nossas figuras históricas pelos seus feitos e pelas suas atrocidades. O maniqueísmo ou santo ou vilão anula a complexidade real do personagem histórico.

A tendência a santificar ou vilanizar se origina em uma historiografia: a história política liberal que apresenta os acontecimentos como decorrentes da ação e da vontade dos “grandes homens”. Nela, os políticos do passado são retratados como figuras mitológicas, capazes de sujeitar as estruturas sociais e econômicas às suas vontades e valores. Isso não é por acaso: criando mitos poderosos do passado, fica muito mais fácil sustentar um regime desigual. A mitologia dos “grandes homens” solidifica o atual estado de coisas. Justifica o presente ao ficcionalizar o passado.

Essa corrente da historiografia foi inteiramente superada no ambiente acadêmico, inclusive pelos próprios liberais. Hoje, compreende-se que, embora a força individual de um líder tenha influência, nunca poderá controlar por completo os processos políticos. No entanto, a simbologia fantasiosa dos “grandes homens” persevera nas políticas oficiais de memorialização. Está nas obras de ficção, nas representações artísticas e, claro, nas estátuas que habitam nossas cidades. Estas não representam os personagens da história dignamente, apenas a dimensão mitológica que lhes é atribuída. A estátua de Cristóvão Colombo não simboliza o personagem histórico, com suas ações, contribuições e defeitos. Foi erguida para cimentar o mito de que as Américas foram descobertas, e não conquistadas. Quem derruba a estátua de Colombo está lutando contra essa narrativa, e não vilanizando a figura de Colombo. Combate o mito Colombo, não o personagem histórico. Ninguém está propondo sua erradicação, deixar de mencioná-lo nos livros históricos.

A derrubada de estátuas é saudável e um símbolo de sociedades democráticas. A queda da ditadura soviética e do autoritarismo assassino que colonizou boa parte da Europa Central e do Leste Europeu costuma ser marcada pela derrubada das estátuas de Lênin. Em nenhum momento se propôs proibir seus livros ou se vilanizou o personagem histórico. Quem foi “apagado” não foi o pensador bolchevique, o líder da Revolução de 1917 e o chefe de Estado, mas o mito leninista que conferia legitimidade ao regime de terror que governava aqueles países. Não se trata de revisionismo histórico ou de julgamento moral de figuras do passado, mas sim de mitos sobre os quais poderes fáticos do presente justificam seu exercício de poder.

As estátuas expressam e alimentam a megalomania, a vontade de poder, uma série de valores negativos para uma sociedade democrática. Acredito que não se faz uma sociedade democrática com a presença delas. Sou inclusive favorável à derrubada de todas: não apenas dos escravocratas, dos colonialistas, dos ditadores. A ideia de estátua alimenta uma mitologia que nos faz depositar nossa fé em líderes despóticos, sejam eles eleitos ou não. Desde que a estátua não tenha nenhum valor artístico, poderia ser derrubada. A maioria delas é de péssimo gosto, aliás. Costumam ser obras neoclássicas cafonas. Às bonitas, reservemos uma galeria de algum museu.

Mas o debate não se encerra aí. O termo “cultura do cancelamento” se refere a mais do que isso. Como Trump e a carta na Harper’s afirmam: pessoas estão perdendo seus empregos. Estão?

 

Editores de jornais, produtores de audiovisual e alguns executivos foram demitidos nos últimos meses por acusações de racismo, abuso sexual, violência física ou simbólica. Uma parte dessas acusações foi devidamente apurada. Outra, não. É salutar que pessoas que impedem ou oprimem outras sejam afastadas de posições de poder, desde que lhes seja assegurado o direito de se defender. Mas os intelectuais da carta da Harper’s chamam a atenção para outra coisa: as pessoas estariam sendo demitidas ou constrangidas no trabalho por terem divergências de opinião ou por terem tido um “dia ruim” em que disseram algo pouco cuidadoso. Em matéria da revista The Atlantic, o escritor Yascha Mounk, um dos signatários da carta, apontou para os efeitos negativos desse processo e a promoção de injustiças. Ele contou o caso de Emmanuel Cafferty.

Depois de um longo dia de trabalho, Cafferty voltava para casa no veículo da companhia em que trabalha, a San Diego Gas & Electric. Seu braço esquerdo estava casualmente para fora da janela do carro e ele fazia um gesto com a mão, aparentemente juntando as pontas do polegar e do dedo médio. Ao parar no sinal de trânsito, o motorista do carro ao lado, irritado e buzinando, pediu a Cafferty que parasse de fazer aquele gesto e sacou o celular para fotografá-lo. Sem entender direito o que estava acontecendo, assim que o sinal abriu Cafferty seguiu para sua casa. Duas horas mais tarde, seu chefe ligou e lhe disse que circulava no Twitter uma foto em que Cafferty fazia com os dedos um gesto usado pelos supremacistas brancos – e aparecia, ao fundo da foto, a marca da San Diego Gas & Electric. Dezenas de pessoas já haviam telefonado para a empresa pedindo a demissão de Cafferty. Colegas da empresa foram buscar o veículo. Cinco dias depois, Cafferty estava demitido.

Emmanuel Cafferty é filho de latinos e cresceu em um bairro proletário e periférico com grande diversidade. Ele jura que nem sequer conhecia o significado do gesto que distraidamente vinha fazendo com a mão enquanto dirigia. Tentou se defender alegando que nunca tivera qualquer acusação de racismo. Como prova de inocência, mostrou a cor de sua própria pele. Não adiantou. Perdeu sua renda em plena pandemia da Covid-19. Como a imagem de Cafferty foi amplamente compartilhada no Twitter e perfis se indignaram com a foto, é natural que se associe a demissão injusta com o fenômeno de cancelamento. No entanto, quem demitiu o motorista foi a empresa, não o Twitter. É compreensível que perfis do Twitter, sempre incentivados a se posicionar rapidamente, cometam enganos, mas não é esse exatamente o caso de uma companhia.

O descuido da empresa é o reflexo de uma mudança das corporações na relação com seus funcionários. No modo de produção industrial, os donos das fábricas se concentravam no desempenho da força produtiva. Hoje grandes empresas praticamente terceirizam uma mão de obra cada vez mais precarizada e dão muito mais atenção a departamentos antes inexistentes: marketing, comunicação, responsabilidade corporativa. O valor da marca se tornou mais importante para a empresa do que o serviço que presta aos clientes. Logo, qualquer associação negativa à marca pode prejudicar os negócios e deve ser evitada a qualquer custo. Não é de interesse da empresa garantir direitos e apurar fatos. Seu objetivo é combater a deterioração de sua imagem. A missão do gestor de crise é acabar com a crise, e não elucidá-la. Seria mais custoso e desgastante para a imagem da marca apurar acusações feitas a um funcionário do que simplesmente demiti-lo.

Ao dispensar o empregado, a empresa comete uma injustiça que evidentemente supera em muito a dinâmica do cancelamento. Colocar esse tipo de procedimento corporativo no mesmo balaio conceitual usado para se referir ao comportamento de quem decide deixar de seguir um perfil não é apenas equivocado do ponto de vista do rigor analítico – é, também, uma forma de exonerar a companhia de sua responsabilidade. Mas injustiças como a cometida contra Cafferty não encerram a lista de fenômenos díspares atribuídos ao conceito de “cultura do cancelamento”. Existe uma terceira dinâmica, que incomoda especialmente intelectuais e outros que vivem de suas análises sobre o mundo: a crítica massiva a discursos percebidos como equivocados, incluindo-se aí a crítica à própria legitimidade de certas figuras como porta-vozes de determinados debates.

 

“O Twitter não aparece no expediente do The New York Times. No entanto, o Twitter se tornou seu editor definitivo”, escreveu a jornalista norte-americana Bari Weiss em sua carta de demissão. A editora de opinião do jornal disse que sua decisão de sair fôra motivada pela falta de liberdade de pensamento e pelo autêntico bullying que sofria na redação por pensar diferente dos colegas. Explicou que não era a maioria, mas havia uma minoria barulhenta e organizada que se ocupava em silenciar qualquer divergência. Para Weiss, a minoria era pautada pelas opiniões e debates das redes sociais. O Twitter, especialmente.

A preocupação de Weiss é compartilhada por diversos intelectuais. Vários deles têm retratado a enxurrada de críticas que a autora J. K. Rowling recebeu recentemente nas redes sociais depois de fazer declarações consideradas transfóbicas. Até recentemente, quando um intelectual escrevia uma coluna de opinião em um grande jornal, poderia, quando muito, ser rebatido pela coluna de outro intelectual. Hoje, ele é elogiado e criticado por milhares de pessoas nas mídias sociais. O debate público passou a incluir identidades estruturalmente excluídas. Agora, negras, negros, mulheres, gays e trans encontraram – nos blogs, revistas eletrônicas, páginas de Facebook – um espaço para articular valores e situações diante de uma audiência à qual não tinham acesso. Quantos colunistas de jornais ou professores universitários negros existiam no Brasil vinte anos atrás? Enquanto a cultura popular era estigmatizada por vários, onde estavam aqueles que poderiam apresentar uma visão diferente e única?

Em uma edição recente do programa Roda Viva, da TV Cultura, o músico Emicida relatou que no final dos anos 1990 uma colunista de um grande jornal havia feito uma acusação estigmatizante ao hip-hop. À época, aqueles que poderiam responder não o fizeram porque não tinham espaço ou acesso ao veículo. Hoje, com a rede social, essas vozes têm direito de resposta quando se sentem desrespeitadas pela grande mídia. Talvez a mesma colunista sequer cometesse hoje o mesmo erro de julgamento, pois teria acesso a informações de fora de sua bolha. Quando indagado sobre “cultura do cancelamento”, Emicida respondeu: “A pessoa não está sendo cancelada, ela está sendo exposta e responsabilizada pela forma irresponsável como compartilhou um pensamento.”

Essa moderação coletiva e orgânica, no entanto, é vista por boa parte do progressismo e do conservadorismo como um cerceamento à liberdade de expressão. O princípio de poder dizer o que se pensa é a base da democracia, e o cancelamento estaria calando as pessoas, criando constrangimentos para que expressem suas opiniões livremente. O direito à liberdade de expressão é um princípio inegociável, e ninguém o contesta. Nem mesmo os movimentos de extrema direita para os quais a liberdade de expressão autoriza compartilhar fake news. A divergência reside sobre quem é o sujeito beneficiado com esse direito.

Para a cosmovisão hegemônica, esse sujeito é o indivíduo. Trata-se de um sistema de pensamento onde toda a construção coletiva é ignorada, onde não há transcendência, onde a dimensão do sagrado se restringe e se resume ao indivíduo. Não há outro. A família, o povo, a classe, a raça existem somente na condição de agregações de indivíduos. Os direitos universais são reinterpretados como direitos individuais. O direito à liberdade de expressão é o direito do indivíduo dizer aquilo que pensa, e não pode haver nenhum tema no qual sua opinião não seja bem-vinda. Afinal, ele é um ser racional e pensante. Deve-se desconsiderar se tem vivência, experiência ou discernimento sobre um tema caro para outros. Pouco importa se, sendo uma pessoa branca, quiser ensinar negros a lutar por seus direitos.

Mas existe uma outra acepção possível da liberdade de expressão. Não a liberdade de dizer o que se quer, ferindo identidades coletivas e esperando que não haja nenhuma reação. Em sociedades plurais, lidar com a crítica é parte do exercício intelectual de se posicionar publicamente. Essas críticas, muitas vezes, estão fundamentadas no questionamento da relevância daquele que emite a opinião, e não no mérito de sua ideia. Não há nada de condenável nisso. Tais críticas apenas deixam de considerar o autor como um indivíduo neutro, vagando no ar e na história sem influências nem inclinações, para trazê-lo de volta às suas circunstâncias. É uma cosmovisão que não separa a opinião do seu autor. É diferente do liberalismo que orienta a maior parte da produção intelectual atual, mas isso não a torna menos válida, e também não impede ninguém de falar. Ela apenas introduz a possibilidade da crítica massiva como uma forma de articulação política.

A “cultura do cancelamento”, em suma, é um fenômeno de redes que se limitava a uma prática de revisar a relação entre a celebridade e seus fãs, e acabou sendo apropriado para designar fenômenos díspares, cada um deles com sua própria complexidade. Alguns, como a derrubada de estátuas ou a revisão do conceito prevalente de liberdade de expressão, são complexos e apontam para caminhos interessantes. Outros, como a demissão sumária de pessoas inocentes a partir de uma lógica empresarial na qual o trabalhador é mais dispensável que a marca, são claramente problemáticos.

Por que então colocar todos esses fenômenos debaixo do mesmo guarda-chuva? Porque, ao fazê-lo, retira-se o peso e a importância de cada um desses fenômenos. Uma discussão extremamente relevante sobre memorialização torna-se equivalente a atos inconsequentes de um influencer que é cancelado por seus seguidores. As demissões justas por racismo e abusos comprovados se tornam equivalentes às injustas causadas pelas vicissitudes da gestão de crise corporativa. Mais equivocado ainda, no entanto, é usar alguns dos fenômenos associados ao termo “cultura do cancelamento” para justificar o uso das palavras “justiçamento” ou “linchamento”.

 

Em M – O Vampiro de Dusseldorf, do diretor Fritz Lang, o réu M. confessa ter cometido as piores atrocidades: sequestrou e matou crianças indefesas. Ele se arrepende, mas é incapaz de se controlar. Quando é raptado e jogado num porão, uma centena de moradores de sua cidade espera para julgá-lo e executá-lo. Acuado, M. exige que o entreguem à polícia. “Quero ser julgado por um tribunal comum, da lei”, diz. Ouve-se então a voz de um homem loiro, vestido com uma jaqueta de couro: “Para que o Estado tome conta de você? Para que você possa fugir ou conseguir o perdão? Que você fique livre, com a lei te protegendo por que você é um doente mental?” A multidão concorda aos gritos de “matem, matem”. A cena é tão horripilante que acaba por humanizar o assassino. Quem assiste ao instante que antecede o quase linchamento dificilmente não se convence da importância de um julgamento que observe o devido processo legal. O Vampiro de Dusseldorf foi filmado na Alemanha, em 1931, dois anos antes da eleição de Adolf Hitler, que também gostava de roupas de couro.

Não acontece apenas no cinema. Quase cem anos depois, moradores de bairros ricos e de classe média nas cidades brasileiras, exaustos com a criminalidade, deram para capturar supostos assaltantes e amarrá-los a postes, evocando a punição do tempo da escravidão. Na maioria, eram homens brancos caçando homens negros. Quem denunciasse a selvageria, poderia ouvir o bordão que ficou famoso: “Tá com pena? Leva para casa, então.” A cena mais conhecida deste tipo de agressão aconteceu no Rio de Janeiro em 2014, quatro anos antes da eleição de um jagunço perverso como presidente da República, que gosta de usar chinelo e camiseta de futebol como os tiozões de classe média que aplaudem o acorrentamento de jovens negros.

A cena do filme e a caçada aos supostos assaltantes só estão neste texto para demonstrar que o comportamento violento de massas e a eleição de lideranças autoritárias e supremacistas são fenômenos umbilicalmente ligados. O julgamento de M. desvela a eleição de Hitler, um criminoso racista que jamais entendeu o significado de justiça. O ato de amarrar negros em postes antecipa a eleição de Jair Bolsonaro, cuja retórica legitima agressões desta natureza. Essa é a essência do fascismo. Ao redor do mundo, registra-se o ressurgimento de supremacistas raciais, impulsionados pela violência de massa – na Índia, nos Estados Unidos. Nesse contexto, em que o linchamento, os tribunais populares, o justiçamento, a humilhação em praça pública voltaram a ser uma realidade política, e seus incentivadores ocupam palácios presidenciais, referir-se com essas palavras pesadas aos movimentos identitários porque “cancelaram” figuras públicas é mais do que uma leviandade.

As palavras importam. São carregadas de conotações, referências. A escritora argentina Luisa Valenzuela, cuja obra é um exercício linguístico de desconstrução de mitos e enunciados, diz que “a linguagem é em si mesma uma forma de máscara: cobre e desvela ao mesmo tempo”. A língua é resultado das relações de poder na sociedade. Seus enunciados, no nosso mundo, refletem o poder que homens exercem sobre as mulheres, brancos sobre negros, europeus sobre indígenas, aqueles que têm sobre os despossuídos, héteros sobre os gays, e daí por diante. Termos racistas como “judiaria” ou “meia-tigela” se perpetuam, pois esquecemos sua natureza e os normalizamos.

Não se tem registro de um linchamento, sequer de ameaças à integridade física, como consequência do cancelamento. Da mesma maneira, não se pode colocar no mesmo plano a contestação de modos de memorialização, a destituição de pessoas de seus empregos por comportamentos abusivos ou a crítica massiva a intelectuais que se posicionam de forma percebida como inadequada por identidades coletivas articuladas em rede.

Mas existe um único ponto em comum entre esses fenômenos: todos ocorrem em um tempo marcado por protestos por justiça racial e combate a abusos sexuais.

Não é a primeira vez que se utiliza o expediente teórico que consiste em associar fenômenos diferentes como forma de reação a um movimento articulado de luta por direitos. Só surpreende que essa prática capciosa tenha capturado parte do campo progressista. Nos últimos vinte anos, por exemplo, a direita extremista popularizou o termo “ideologia de gênero” e colocou debaixo do mesmo guarda-chuva a luta por direitos de identidades marginalizadas (casamento igualitário, combate à transfobia e à homofobia) com comportamentos criminosos (pedofilia, zoofilia). A associação de vários fenômenos que não têm equivalência entre si potencializa a criminalização das lutas por justiça social. Como não há nenhuma correspondência de sentido, apenas de temporalidade, entre os protestos populares e o cancelamento, cabe perguntar: Será que o termo “cultura do cancelamento” é um subterfúgio politicamente correto para criticar os levantes das identidades marginalizadas? Afinal, a única maneira pela qual brancos progressistas de esquerda poderiam legitimamente criticar a articulação política de pessoas negras seria denunciando a violação de algum valor universal, que transcende brancos e negros – neste caso, a liberdade de expressão. Chamar todos esses processos complexos e transformadores, portanto, de “cultura do cancelamento” nada mais é do que cancelar a cultura. A cultura do outro.