Dezembro por ora
Quando voltamos das compras o mundo portátil é inútil e o beijo estraga depressa
Eucanaã Ferraz | Edição 207, Dezembro 2023
Dezembro pode ser fim.
Dezembro pode ser ponte.
Pergunto quanto tempo dura
a imagem que se forma nítida
sem que a outra já se apresse
com seu aço a desdobrar-se
sobre o avesso transparente
da primeira: fim ou ponte?
Olho daqui – tudo muda
onde a palavra se lança.
Imagens são anéis de barro.
Versos são punhais de vento.
Dezembro pode ser fim
e pode estar no começo.
Dezembro pode ser fonte?
Os espelhos não respondem
– o rosto retirou-se deles.
Não falarei de dezembro
mas falarei de sua sombra
contarei de sua grinalda
esfarrapada difusa
ondulando pelas ruas
rasgando as horas nas pedras.
Lâmpadas breves se acendem
mas se tentamos o gesto
de recolher uma sílaba
um raio uma cor um halo
– já não existe dezembro
tudo o que resta é seu nome
quebrado em muitos pedaços
e restos de ter havido
o seu vestido passando
e as suas botas solenes
e as suas máquinas tristes.
Não falarei de dezembro
talvez eu fale do fogo
mordendo os últimos rios
as cidades – e os teus ombros.
Talvez eu fale da cinza
que se espalhou sobre os livros.
Não falo mais de dezembro
falo das mães e dos mortos
à porta de nossos olhos
batendo contra o silêncio.
Não me interessa dezembro.
Quem quiser porém que o compre
barato como são baratos
os perfumes e os venenos.
Dezembro é lixo. É de plástico.
Dezembro fere. É fútil.
Enquanto isso há dezembros
feitos de escárnio e de ouro
pomposos em caixas-fortes
defendidos do futuro
e as horas vendem-se a prazo
em calendários estúpidos.
Quando voltamos das compras
o mundo portátil é inútil
e o beijo estraga depressa.
Mas as imagens alternam
e dezembro permanece
– não passa? – prossegue livre
tonto de nós e secreto
à maneira de um planeta
crescendo em mundos distantes
muito mais quentes que o sonho.
Dezembro nem começou.
Dezembro é ponte – quem sabe
dezembro nem acabasse
(e seu séquito de dúvidas).
Dezembro sabe. Não diz.
Atravessamos os séculos
quando dizemos dezembro
e no entanto seu contorno
não dura mais que um segundo
na página branca fria
do seu cimento recente
que nunca chega ao destino.
Chegar nunca foi seu plano?
Dezembro é talvez projeto
e nunca mais terminava
o seu desenho confuso
de arames em arabescos
errando em nossos cabelos
como se em nós um segredo
eternamente nascendo
girasse – sem nós – girando.
Dezembro pode ser a borda.
Dezembro pode ser a dobra.