Diário arquivado
Para decepção dos pesquisadores de Guimarães Rosa, seus herdeiros impedem a publicação de cartas e anotações do autor de Sagarana
Cassiano Elek Machado | Edição 3, Dezembro 2006
Ao longo das 208 páginas, o autor narra bombardeios, descreve o barulho das sirenes e diz como o silêncio das noites era recortado por tiros. Conta a primeira vez que viu um judeu com uma estrela amarela costurada na roupa. Relata como uma bomba no Jardim Zoológico de Hamburgo dizimou camelos. Registra o que anunciava uma pequena tabuleta num parque: “Lugar de brinquedo para crianças arianas”. O autor do diário era um jovem diplomata que servia pela primeira vez fora do Brasil, no posto de cônsul-adjunto de Hamburgo. Aos 31 anos, tinha aspirações literárias, mas ainda não havia publicado nada. Chamava-se João Guimarães Rosa.
Em agosto de 1939, data das primeiras anotações, ele não faz literatura. Sua escrita é prosaica, sem artifícios. Ainda assim, espalha pelo diário figuras de linguagem, observações e poemetos que, lidos hoje, são claramente “rosianos”. Seus flertes com a poesia são constantemente relacionados à exaltação da natureza. “A noite começa debaixo das árvores”, anota num canto, ao lado dos registros de um bombardeio e de recortes de anúncios de escritórios de advogados e de um hotel em Hamburgo.
Em outro ponto, põe no papel um poema que começa com a estrofe “As lagoas são armadilhas armadas para pegar a lua/ porque a lua não se reflete (não desce a) na mata, nem no chão (terra dura)”. Ao lado dos escritos mais pessoais, de invencionices subjetivas, ele acrescenta o sinal M%, que significaria, segundo especialistas na obra de Guimarães Rosa, “meu 100%”. O símbolo aparece, por exemplo, ao lado de um escrito intitulado A Ladeira: “A ladeira da vida inteira… Tudo é vaidade, tudo é besteira, só uma coisa é que é verdadeira: subindo a ladeira, sobe-se a ladeira da vida inteira…”.
Mais próximas da linguagem que apresentaria em obras como Grande Sertão: Veredas são as listas de palavras. Numa delas, Rosa enumera vinte temperos usados para fazer uma sopa típica de Hamburgo. Noutra, arrola diferentes gestos – “de sensação”, como “cabecear sonolento” ou “tremer de frio”, “de sentimento”, “de ação” e “de irritação”, como o certeiro “tremer a cabeça como sexagenário”.
Num dos comentários mais surpreendentes do diário, paradoxalmente, o jovem diplomata critica o maior escritor brasileiro pelo hábito de se valer de anotações na criação de suas obras: “Adquiri certeza, quase absoluta, de que ele, antes mesmo de compor os seus livros, ia anotando: pensamentos, frases etc., em livro ou em cadernos especiais, espécie de surrão ou alforje, de onde sacava, aos punhados, ou pinçava, um a um, os elementos de reserva que houvessem resistido ao tempo conservando-se bem (processo aliás muito louvável. Tanto quanto o hábito de ‘compulsar’ dicionários, visível em M. de. A.)”.
“M. de. A.” era ele, Machado de Assis. Na anotação que se presume a mais antiga do diário, pois seus escritos nem sempre são datados e ordenados, o jovem Rosa faz outras três observações sobre o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a partir da leitura, como admite, “apressada” do romance. Na primeira, afirma que Machado “gosta, usa e abusa da construção terciária: silogística ou hegeliana (premissa maior — premissa menor — conclusão; ou tese — antítese — síntese). A cada passo a gente esbarra com vestígios desse vezo, quando não com a armação completa, a qual pode ser decomposta de várias maneiras: um pulinho para a direita, outro para a esquerda, outro para a frente… quando não para trás”.
Os elogios ficam guardados para outro tópico: “De verdadeiramente interessante é no livro: a) o capítulo ‘É minha’, onde o autor descobre a ‘lei da equivalência das janelas’; b) o capítulo ‘O momento oportuno’, onde escreve: ‘Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos’; c) a filosofia ‘humanitática’ de Quincas Borba.” Ao lado do “humanitática” o autor tasca outro dos seus “M%”.
A catimbada fica para o final. Depois de afirmar que não pretende ler mais nada do escritor, “a não ser seus afamados contos” e, talvez, o começo do Dom Casmurro, ele escreve: “Acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura”. Rosa não para aí: “Quanto às ideias, nada mais do que uma desoladora dissecação do egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma de egoísmo: o egoísmo dos introvertidos inteligentes”. Para terminar, lança um “Bem, basta; chega de Machado de Assis”. No canto direito inferior da página acrescenta a data: “Hamburgo, 15 de agosto de 1939”. Duas semanas depois, Hitler invadiria a Polônia, marco zero da II Guerra Mundial.
A diatribe contra Machado de Assis, morto no mesmo 1908 em que Rosa nasceu, acabaria por se revelar um momento raro não só nos diários, mas na vida do escritor, um homem de temperamento contemporizador, pouco dado a sinceridades indelicadas com seus pares. E, no entanto, assim como o conjunto do diário, a crítica jamais foi publicada em livro.
Não por falta de interesse. “O diário é de importância crucial para a compreensão da biografia e do processo de criação literária de Guimarães Rosa, além de ser muito esclarecedor sobre o cotidiano de um diplomata brasileiro na Alemanha, durante a II Guerra”, afirma Eneida de Souza. Professora emérita de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, ela é uma das poucas pesquisadoras que conhecem os escritos de Hamburgo. Outros dois são, não por acaso, seus colegas de universidade: os professores Reinaldo Marques e Georg Otte. O diário chegou até eles por veredas vicinais.
Em maio de 1973, Aracy Moebius de Carvalho, viúva do escritor, permitiu que Henrique Gregori, então presidente da Xerox do Brasil e futuro proprietário da editora José Olympio, fizesse cinco reproduções dos cadernos de Hamburgo.
Uma dessas cópias ficou com a mulher do empresário, Ana Elisa Gregori, que por sua vez a cedeu para uma tia, a poeta Henriqueta Lisboa. Com a morte de Henriqueta, sua biblioteca foi doada à ufmg. No dia 18 de dezembro de 1989 o volume com os escritos alemães de Rosa ganhou um carimbo azulado: “Biblioteca Universitária — 3354989-03 — ML-00007762-9”. Nenhum arquivo público tinha até então as anotações do cônsul-adjunto Guimarães Rosa. Nem mesmo o do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, maior depositário de informações sobre o escritor desde 1973, quando comprou 20 mil documentos deixados por Rosa.
Mesmo com a chegada a uma biblioteca pública, o diário de Hamburgo seguiria pela sombra. No início de 2001, a professora Eneida de Souza e seus parceiros foram procurados pela editora Nova Fronteira, que desde 1984 publica a obra do escritor. A ideia era que Eneida e Reinaldo Marques, associados ao alemão Georg Otte, que poderia servir como tradutor dos recortes de jornais, preparassem o texto para publicação. Reinaldo Marques conta que a edição começou a desandar no final daquele ano, quando se noticiou que o diário alemão de Rosa viria à tona. “A família ficou preocupada e mandou recado, dizendo que deveríamos parar com o trabalho”, recorda Marques. O diário voltou ao seu envelope pardo, que foi posto no fundo da gaveta de um arquivo.
Guimarães Rosa casou-se pela primeira vez em 27 de junho de 1930, dia em que completou 22 anos. Lygia Cabral Penna, sua noiva, era uma moça morena, vizinha desde tempos de infância. Tinha o apelido de Lili. Estava com 16 anos, era magra e usava cabelos lisos e curtos. No final do ano, Joãozito, como ela o chamava, formou-se em medicina. Orador da turma, fez um discurso repleto de citações, que terminava com um provérbio eslovaco: “Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!” (Quando mais terrível é o desespero, aí é que o socorro já vem perto!).
Pouco depois de casado, Rosa perambulou com a mulher pelo interior de Minas Gerais, trabalhando como médico. Lygia lhe deu duas filhas, ambas nascidas nessas itinerâncias, em partos feitos pelo próprio escritor. Vilma nasceu em Itaguara, em 1931, e Agnes em Barbacena, dois anos depois.
Em 1934, ele estava desiludido com a profissão. “Não nasci para isso”, escreveu numa carta a um amigo. Prestou então concurso para o Itamaraty e foi aprovado em segundo lugar. A família Rosa se mudou para o Rio de Janeiro. Pouco depois de formado, Rosa foi designado para o posto de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo. Em maio de 1938 o jovem diplomata toma um navio para a Alemanha. Viajou sem a mulher e as filhas.
Em Hamburgo, Guimarães Rosa conheceu sua segunda mulher, Aracy. Bonita, morena, de feições à la Vivien Leigh em E o vento levou, ela trabalhava na seção de passaportes do consulado brasileiro. Também havia se casado uma vez e tinha um filho, o pequeno Eduardo. Rosa e Aracy ficariam juntos até a morte do escritor, em 1967.
O espólio de Guimarães Rosa está dividido em três ramos: as duas filhas e a viúva. Vilma e Agnes moram no Rio de Janeiro. Aos 98 anos, Aracy vive em São Paulo, mas por conta de problemas de saúde tem seus direitos administrados por um neto, Eduardo Carvalho Tess Filho, de 50 anos.
Tess, especializado em direito internacional, mora em São Paulo. Seu escritório fica num casarão creme, numa zona valorizada, a Avenida Brasil. Quase sem se mexer na cadeira, com os cabelos imobilizados por gel, os olhos grandes e claros estacionados na parede oposta, ele enumera friamente problemas com as irmãs Vilma e Agnes. As desavenças começaram já na época do inventário. O testamento estabelecia, segundo Tess, que a avó teria direito à metade dos direitos autorais da obra do marido. Ele diz que, devido ao “comportamento das filhas”, a feitura do inventário estendeu-se por um período “longo e desagradável”. Como resultado, Aracy teria feito uma composição e dividido tudo por três. Naquele momento, definiu-se que qualquer publicação ou comercialização, qualquer licença ou autorização que envolvesse a obra de Rosa teria de receber a permissão do trio. Com uma única exceção: por terem sido doados em vida a Aracy, os direitos de Grande Sertão não entrariam no bolo.
Na interpretação de Vilma Guimarães Rosa, a primogênita, a situação é diferente. “Para publicar algo de papai, é preciso pedir autorização à minha irmã e a mim”, ela diz, num tom de voz suave. Com 75 anos, Vilma publicou oito volumes de contos, além de um livro de memórias, Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai.
Ao menos num assunto, Tess e as irmãs Guimarães Rosa concordam: o diário de Hamburgo não sai da gaveta porque Agnes não deixa. “Agnes faz de conta que a separação do Joãozinho da mãe delas nunca houve”, diz Tess, “e o diário de Hamburgo é justamente da fase em que ele conheceu minha avó”.
O advogado sustenta que Rosa já embarcou para a Alemanha desquitado de Lygia e, portanto, a história de amor com Aracy não seria adultério. Já Vilma diz que o pai ainda era casado quando se envolveu com Aracy, que é citada constantemente no diário. “Por isso é que minha irmã fica danada; ela achou uma falta de respeito com minha mãe,” afirma.
Agnes não entra em detalhes sobre seus motivos. “Católica apostólica romana”, diz recear “sensacionalismos” em torno de seu pai. Formada em geografia, ela não escreve, mas se considera ótima leitora. No ano passado ela releu o diário de Hamburgo. “Não tenho interesse em que seja publicado, não tem nada ali que acrescente”, diz. Mais adiante, confessa que acha algumas passagens interessantes. “Se eu pudesse fazer um expurgo e publicar só as coisas que interessam do diário, aí publicaria. Mas as picuinhas, os diz-que-me-diz, não.”
Em 2001, quando Vilma, Tess e a editora Nova Fronteira se interessaram em publicar os escritos de Hamburgo, Agnes usou um expediente infalível para barrar o processo. “Insistiram tanto que eu pedi um preço absurdo. Quando você não quer uma coisa e diz que não quer, as pessoas não compreendem, e então resolvi pedir um valor que nem me lembro — uma loucura.” Ela conta que, desde então, repetiu o expediente.
Vilma chegou a conviver com Aracy no final dos anos 40, quando foi morar com ela e o pai em Paris. “Ela foi muito boa para o meu pai”, atesta. “Ela se apagou para que meu pai brilhasse.” A irmã caçula conta que esteve poucas vezes com a madrasta: “Papai gostava muito de nos levar para um passeio à Ilha de Paquetá, aos domingos. Ele ia fazendo um joguinho com a gente, de sinônimos. Aracy ia junto. Ela tinha uma pontinha de ciúme, uma bobagem. Filha é filha, não tem como lutar.”
Se alguns aprendem francês só para ler Proust, a austríaca Kathrin Rosenfield pode dizer que estudou português por conta de Rosa. “Quando comecei a ler Grande Sertão pela primeira vez, em 1984, um pouco antes de chegar ao Brasil, não conhecia o português. Entrei no sertão rosiano (e no meu, linguístico) me orientando com meus conhecimentos de outras línguas latinas (o francês, o espanhol e o italiano)”, explica ela no prefácio do seu livro Desenveredando Rosa (editora Topbooks). Professora de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela estuda a obra do escritor desde aquela época e nunca conseguiu ver os diários de Hamburgo
“Acho lamentável que seja tão difícil conhecer os documentos de um autor da importância de Rosa”, diz a professora. “Duplamente lamentável, aliás, porque esse desconhecimento cria também mitos como aquele que um colega me expôs um dia. Ele disse que, no serviço consular em Hamburgo, Rosa era mulherengo. Segundo esse relato, Rosa não teria dado o passaporte a uma bela judia por ela não ter respondido à cantada dele. Quando eu quis saber de onde vinha essa história, encontrei um cipoal inextricável de rumores.”
Da mesma forma, o veto à publicação do diário por conta de menções a Aracy, que Rosa chamava de Ara, pode dar a entender que os escritos de Hamburgo contenham passagens picantes. Não é assim. “Ele sempre fala da Aracy, mas de forma muito tímida, quase não dá informações sobre ela”, diz Reinaldo Marques. O máximo que se pode encontrar nos diários são registros como “Dormi em casa de Ara, que partiu hoje cedo para München”. Ela é presença constante, mas discreta: “Comi a macarronada da Ara (!)”; “Lohengrin com Ara”; “Diz Ara que o jornal da tarde ataca furiosamente Roosevelt, chamando-o de ‘inimigo no 1 da paz do mundo’, e dizendo que ele deveria ser fuzilado”.
Segundo a pesquisadora carioca Ana Luiza Martins Costa, além do diário de Hamburgo, pelo menos três outros conjuntos de anotações de Guimarães Rosa continuam no fundo das gavetas. Um deles é o diário que o escritor manteve em Paris, na passagem dos anos 40 para os 50, quando serviu na embaixada brasileira. “Nos escritos de Paris, ele fala sobre a ansiedade de escrever, sobre a questão da onisciência, sobre a necessidade de fixar coisas no papel”, conta a pesquisadora. “Dizem que a família não gosta de publicar revelações pessoais, mas não há nada disso nos escritos parisienses.”
Existem, também, anotações das viagens de Rosa pela Europa, arquivadas nos quatro armários do Arquivo Guimarães Rosa do IEB. A filha Vilma diz que Florença era uma das cidades prediletas do escritor. Ana Luiza acredita que a difusão das anotações que Rosa fez lá, na Toscana, seria fundamental para “explodir o estigma do sertão” que marcaria a obra do autor. Ela chama a atenção, por fim, para a troca de cartas do escritor com o pai, Florduardo Pinto Rosa. Dono de um armazém em Cordisburgo, ele recebia cartas constantes do filho, que lhe indagava sobre histórias reais do sertão. Parte da correspondência entre o pai e o filho foi publicada nas memórias de Vilma, Relembramentos.
O acesso às cartas trocadas por Rosa com seus tradutores para o francês, o inglês e o espanhol é igualmente difícil. Em alguns casos, o material está até preparado para publicação, como a correspondência com Harriet de Onis, uma das tradutoras da primeira edição de Grande Sertão em inglês. Para seu trabalho de mestrado, apresentado na Universidade Estadual Paulista em 1994, a pesquisadora Iná Rodrigues Verlangieri, hoje afastada da vida acadêmica, organizou toda a correspondência de Rosa com a tradutora americana, que também assinaria a versão de Sagarana. A professora tentou publicá-la durante algum tempo, mas não obteve nem resposta dos detentores dos direitos. Acabou desistindo.
Organizadora da correspondência de Guimarães Rosa com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, outra pesquisadora, Maria Apparecida Faria Marcondes Bussolotti, também demonstra desânimo. Mesmo com a ajuda de Meyer-Clason, Cida, como costumam chamá-la, teve enormes dificuldades de conseguir a liberação das cartas. Ela iniciou o trabalho de organização em 1994, como tese de mestrado na USP. A dissertação foi apresentada em 1997, e ela teve de esperar seis anos até ver o material publicado. “Quando procurei Eduardo Tess para obter a autorização, ele pediu que eu contasse quantas vezes apareceria o título do livro Grande Sertão. Seria cobrada uma taxa correspondente a cada vez que ele fosse mencionado”, relembra.
“É uma dificuldade real, eu mesma acabei desistindo”, afirma a curadora do Arquivo Guimarães Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros, Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, professora de literatura da USP. “Quando fui publicar em livro a minha tese de doutorado, resultado de anos de pesquisa no arquivo, tentei conseguir autorização da família para fazer um fac-símile de alguns documentos da obra de Guimarães Rosa. Só consegui de uma parte da família, não do restante. No final, o livro saiu sem isso”, conta a professora. “Não há a menor dúvida de que a postura da família atrapalha.”
Pesquisadora de Rosa desde os anos 70, Sandra Vasconcelos diz que só tomou conhecimento recentemente do diário de Hamburgo. Ela acredita que os embaraços provocados pelos herdeiros explicam a inexistência de uma boa biografia de Guimarães Rosa. “Pensei em fazer uma e desisti”, diz. “É tanta confusão para conseguir autorizações que as pessoas acabam mudando de idéia.” Vilma Guimarães Rosa reconhece que a ideia é exatamente esta: dificultar a vida dos pesquisadores. “Não existem biografias dele e não damos licença para ninguém”, diz ela. “Muita gente quer fazer sensacionalismo, quer ganhar dinheiro à custa de gente famosa”, afirma a primogênita do escritor. “Quem quiser saber de meu pai que leia o meu livro e está muito bom.”
Dono do maior acervo privado de literatura brasileira, o empresário e bibliófilo José Mindlin, de 92 anos, passou a vida se digladiando com herdeiros. “Muitos deveriam colocar no cartão de visitas, onde consta profissão, a palavra herdeiro. Sem ter trabalho nenhum, se beneficiam do trabalho do antepassado”, afirma. Uma das principais estudiosas de Rosa, a professora Walnice Nogueira Galvão, da USP, tem a mesma opinião: “Para o artista, é uma obra de arte; para o herdeiro, é mercadoria”. Mindlin acredita que a única saída para “os abusos de herdeiros” é a diminuição do período de validade da lei de direitos autorais. Atualmente, a propriedade intelectual vale até o 1o de janeiro seguinte ao dos 70 anos da morte do autor.
Lucia Riff, agente literária que administra direitos autorais de escritores de renome, tanto no time dos vivos (Luis Fernando Veríssimo) como no dos mortos (Carlos Drummond de Andrade), acha que é excessiva a irritação de pesquisadores e editores com os herdeiros. “Existe a noção de que ser herdeiro é algo quase ilícito, mas isso não acontece com quem herda apartamentos ou fazendas.” Lucia Riff reconhece que não é fácil lidar com o espólio de um grande escritor. O herdeiro, diz ela, tem de estar disposto a considerar uma infinidade de pedidos de todo tipo, e muitas vezes completamente esdrúxulos. Ela conta que, recentemente, um dos maiores bancos brasileiros procurou-a para comprar os direitos de reprodução de uma frase de Drummond em talões de cheque no país todo. “Sabe quanto eles ofereceram por isso?” Ela responde: “Mil reais. Alegaram que já estava escrito mesmo, que era uma homenagem”.
Ainda que defenda a posição dos herdeiros, Lucia Riff conta uma história exemplar. No final dos anos 90, foi contratada para cuidar dos direitos autorais de um projeto da editora Objetiva, o volume Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi, crítico e professor de literatura. Ele selecionou três histórias de Guimarães Rosa, Às Margens da Alegria, A Terceira Margem do Rio e Desenredo. Para liberar os três textos, no entanto, os herdeiros pediram um valor equivalente ao que havia sido gasto com outros noventa escritores. Moriconi não teve como publicar os três contos e explicou os motivos na abertura do volume.
O diário de Hamburgo termina de forma abrupta. Em 28 de janeiro de 1942, o Brasil anuncia o rompimento de relações diplomáticas com os países do Eixo. Dois dias depois, Guimarães Rosa termina suas anotações. Com a mesma caligrafia que permitia um bom espaçamento entre cada uma das palavras anota apenas: “Viemos para Berlin”. A jornada do jovem diplomata na Alemanha não terminaria ainda. Logo em seguida, ele seria confinado pelo governo alemão num hotel na cidade turística de Baden-Baden, ao sul do país, em companhia de colegas como Cyro de Freitas Vale, do artista Cícero Dias e de outros diplomatas sul-americanos. Foi liberado somente cem dias depois, em troca de diplomatas (acusados de espionagem) alemães que estavam presos no Brasil. No verão de 1943, quando Hamburgo sofreu um dos maiores bombardeios da Guerra, a chamada Operação Gomorra, Guimarães Rosa estava bem longe, em Bogotá, servindo como primeiro-secretário na embaixada brasileira.
A Alemanha ficara para trás, e Rosa pouco falaria desse período. Uma faceta bem pouco conhecida da temporada de Hamburgo, não registrada nos diários, viria à tona depois. O casal Rosa e Aracy, mais ela do que ele, agiu para salvar judeus da perseguição nazista durante a estadia em Hamburgo. Aracy, funcionária da área dos passaportes, teria ajudado dezenas de judeus a escaparem para o Brasil. O feito foi reconhecido pelo governo israelense, e Aracy foi homenageada pela fundação Yad Vashen. O sobrenome Guimarães Rosa está afixado no memorial do holocausto da instituição, em Jerusalém.