Cubanos detidos na divisa entre Costa Rica e Nicarágua. Milhares de pessoas têm fugido da ilha voando para o Equador – de onde partem em viagem pela América Central até os Estados Unidos FOTO: AP PHOTO_ESTEBAN FELIX
Do outro lado do Rio
Numa nova onda migratória, cubanos cruzam a América Central para chegar aos Estados Unidos
Carol Pires | Edição 113, Fevereiro 2016
Depois de passar cinco meses em Quito à espera de uma oportunidade, René Martínez Samada enfim acertou com um “coiote”: por 1 400 dólares ele seria conduzido do Equador à fronteira meridional do Panamá. Natural de Havana, Martínez completaria 30 anos dali a duas semanas. Desde a adolescência, acalentava o sonho de viver para lá do rio Grande, última fronteira ao norte da América Latina antes dos Estados Unidos.
A Colômbia era a primeira etapa da viagem. A primeira e uma das mais arriscadas, parcialmente dominada por guerrilheiros, paramilitares e narcotraficantes. Se Martínez fosse bem-sucedido, ainda não seria o caso de respirar aliviado: os 7 mil quilômetros seguintes – Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala, México – tampouco seriam tranquilos, com o fantasma da polícia guatemalteca à espreita, sempre pronta a extorquir. Sem falar do México, onde há quase seis anos o cartel dos Zetas executou 72 imigrantes latino-americanos que teriam se negado a pagar o “pedágio” da travessia.
Pelo caminho, René Martínez encontraria gente de toda parte – asiáticos, africanos e centro-americanos –, com o mesmo objetivo: viver no país mais rico do mundo. Mas, por ter saído da ilha comunista, tinha uma grande vantagem em relação aos outros migrantes. Se conseguisse cruzar a fronteira, seria acolhido por uma lei norte-americana que desde 1966 garante o visto de permanência – o cobiçado green card – aos cubanos que vivem no país há mais de um ano.
Na manhã de 12 de novembro de 2015, ele e mais quatro amigos de Cuba entraram no carro do atravessador, pagaram a primeira parcela (600 dólares cada um) e seguiram até a fronteira meridional do Equador. Na antevéspera, tinha corrido a notícia de que a polícia costa-riquenha havia desmantelado uma rede de imigração. Mas agora isso pouco importava para eles.
O grupo de amigos viajou por cinco horas até alcançar Ipiales, na fronteira colombiana, onde os esperava um segundo atravessador da mesma quadrilha. Cada um desembolsou outros 400 dólares, preço combinado para o embarque em um caminhão até Medellín, na Colômbia. Não imaginavam que dividiriam a caçamba com um carregamento de cebolas que só lhes deixava 60 centímetros de espaço livre sob o toldo.
Perceberam que havia um grupo de indianos na cabine, impossível dizer quantos. Não viram o motorista, tampouco ouviram sua voz. O caminhão então parou. Eles ficaram em silêncio por oito horas, durante toda a madrugada, sem saber se estavam detidos ou o quê. Com a aurora, a viagem foi retomada: o condutor havia parado para dormir e não os avisara.
No dia seguinte, um amigo ligou prevenindo-os de que a coisa estava enrolada na Costa Rica, com o desbaratamento da rede de coiotes. “A partir daí, não tinha mais volta”, me disse Martínez, ao evocar o episódio numa conversa por telefone, semanas depois.
Em certo momento, os indianos – eram cinco, como os cubanos vieram a descobrir – também passaram para a caçamba, obrigando o grupo a contorcionismos no espaço exíguo. Diante da possibilidade de um acidente ou de uma blitz – ou mesmo de sequestro e morte –, o extremo desconforto era um problema menor. Trinta e cinco horas depois, chegaram a Medellín.
Em 2008, o governo de Rafael Correa, no Equador, incluiu na nova Constituição o princípio da cidadania universal, que não exigia visto de qualquer pessoa, vinda de qualquer parte, que ficasse até noventa dias no país. Alguns anos depois, em 2013, o governo de Raúl Castro dispensou a autorização prévia aos cubanos que desejassem sair do país em viagem de turismo. O Equador – única nação do continente para onde podiam viajar sem visto – tornou-se então um ponto de partida privilegiado para as travessias rumo aos Estados Unidos.
Como o bilhete aéreo Havana–Quito não sai por menos de 650 dólares, a conexão equatoriana permanece inatingível para a maioria dos cubanos, cujo salário médio mensal é de 20 dólares. Quem não vai por ar vai por mar. Só no ano passado, a guarda costeira americana prendeu 3 564 cubanos que tentavam aportar nos Estados Unidos superando as cerca de 90 milhas náuticas – menos de 200 quilômetros – que separam Cuba da Flórida. Foram deportados, com base na lei conhecida como “pés molhados, pés secos”: só aqueles que pisam em terra firme podem ficar.
Dinheiro não era exatamente um obstáculo para Martínez: com a legalização do comércio de imóveis e automóveis em 2011, sua família vendeu o sobrado em que vivia, comprou dois apartamentos menores e ainda sobraram 6 500 dólares para financiar o sonho do rapaz.
Desde o triunfo da revolução, o regime castrista nunca pôde – e na verdade nem sempre quis – interromper o fluxo migratório, quase todo em direção aos Estados Unidos. Em 1965, Fidel Castro abriu o porto de Camarioca para que os dissidentes já estabelecidos nos Estados Unidos fossem buscar os familiares desejosos de se juntar a eles. Pegos de surpresa, os americanos correram para regulamentar a imigração proveniente da ilha comunista, e o Congresso aprovou a chamada Lei de Ajuste Cubano, que assegura o green card aos conterrâneos de Fidel que cruzam a fronteira. Depois do êxodo de Camarioca, o governo cubano já liberou a emigração em massa em outras duas ocasiões – em 1980 e em 1994 –, como válvula de escape para pressões internas. Em 1980, Castro abriu o porto de Mariel e cerca de 125 mil cubanos – dentre eles presos e doentes mentais desacompanhados – deixaram a ilha. Em 1994, a queda do bloco socialista fez o Produto Interno Bruto cubano despencar 35%, levando às ruas milhares de descontentes. Mais uma vez Castro liberou a emigração: cerca de 30 mil cubanos emigraram a partir da base naval de Guantanamo, território americano. Não se conhece o número exato de pessoas que morreram durante a travessia por mar até a Flórida.
Sem saber, René Martínez engrossava agora as estatísticas de um novo êxodo cubano. Depois que os Estados Unidos reataram as relações diplomáticas com a ilha no ano passado, circulou o rumor de que a Lei de Ajuste Cubano seria revogada, uma vez que não faria mais sentido o status privilegiado conferido aos fugitivos de um regime inimigo. Assim começou a nova corrida para ganhar a América. Segundo dados de Washington, entre setembro de 2014 e setembro de 2015, mais de 43 mil cubanos entraram no país pelo México – um aumento de 78% em relação ao ano anterior.
Em Medellín, os amigos se dirigiram a um apart-hotel, onde encontraram um terceiro atravessador, a quem pagariam a terceira e última parcela da empreitada (400 dólares cada um). Junto com outros vinte compatriotas, embarcaram num ônibus confortável, com cadeira reclinável e internet wi-fi, rumo a Necoclí, na costa caribenha da Colômbia, a 379 quilômetros de distância. Foi durante esse trajeto que pela primeira vez foram parados em uma barreira policial. O acerto foi rápido: 20 dólares por cabeça e não se falou mais do assunto. O guia que os acompanhava, porém, ficou para trás sem dar explicações. Chegaram ao destino, o terceiro da trilha, na madrugada do dia 15 de novembro. A partir daí o plano começaria a desandar.
O pacote acordado inicialmente incluía uma lancha que os conduziria até La Miel, povoado no Panamá acessível por mar. O atravessador nem quis saber e cobrou 25 dólares de cada um. Em companhia de outros cubanos, já não os mesmos do ônibus, ficaram parados na água e ouviram do piloto que a lancha na verdade não chegaria a La Miel, mas sim a uma praia vizinha. Até La Miel custava outros 50 dólares. Nem todos toparam, mas os cinco amigos ponderaram que o gasto valia a pena e embarcaram na segunda lancha. Outra pausa e novo anúncio: a embarcação não iria até La Miel. Foram deixados no mesmo ponto em que se encontrava o grupo que se recusara a pagar pela primeira perna do trajeto, que se revelou circular.
Para alcançar a praia certa, deveriam cruzar uma montanha de floresta tropical, ao pé da qual um grupo de colombianos os aguardava, oferecendo-se como guias. Mais 50 dólares. Gatos escaldados, negociaram pela metade do preço. “Não sabíamos se estavam armados, achamos melhor pagar.” A essa altura, amargavam um prejuízo de 120 dólares. Os supostos guias os acompanharam por 50 metros antes de bater em retirada. “Disseram pra gente seguir até um muro e virar à direita, e deram no pé.” Os cinco apressaram o passo e estimam ter visto pelo menos outros 100 cubanos fazendo o mesmo trajeto.
Antes de deixar o Panamá rumo ao próximo destino, os peregrinos precisaram esperar três dias num povoado pesqueiro para reaver os passaportes. Acabaram passando uma noite numa aldeia indígena, que os recepcionou com danças e arroz com salsicha. Quando, por fim, abandonaram o país, sete dias após sair de Quito, encontraram a Costa Rica mergulhada no auge de uma crise imigratória. Milhares de cubanos cruzavam a América Central. O governo da Nicarágua fechara suas entradas, e os migrantes que tentaram forçar a passagem haviam sido detidos com bombas de gás lacrimogêneo. Quase 2 mil pessoas estavam alojadas em igrejas, escolas e quadras esportivas no país.
Em 24 de novembro, nove dias depois de a Nicarágua fechar sua fronteira setentrional, representantes de países da América Central, Equador, Colômbia e México se reuniram em El Salvador para resolver o imbróglio. Costa Rica sugeriu um corredor humanitário que permitisse que os cubanos passassem em segurança, mas o governo sandinista de Daniel Ortega, aliado histórico de Castro, se recusava a negociar. “A Nicarágua ratifica sua posição de não se prestar a legitimar políticas ilegais”, disse o representante do governo de Manágua. Referia-se à Lei de Ajuste Cubano, que parte da América Latina via como discriminatória contra imigrantes de procedência distinta.
O impasse só se desfez depois do Natal, passado um mês da primeira reunião. O Equador voltou a requisitar visto de turista, e a Organização Internacional para as Migrações propôs uma solução: como a Nicarágua não arredava pé de sua posição, os dissidentes poderiam sobrevoar o país rumo a El Salvador, que se mostrou receptivo. Da capital, San Salvador, os cubanos continuariam de ônibus pela Guatemala até a fronteira com o México, onde dali seguiriam por conta própria. Cada viajante teria que pagar 555 dólares.
Entediados com a demorada retenção na Costa Rica, René Martínez e seus amigos procuraram um novo coiote e decidiram fugir a pé. Um deles, Guillermo, de 28 anos, preferiu não se arriscar e ficou. Por 40 dólares per capita o quarteto foi guiado pela selva até o litoral pacífico da Costa Rica – lá passaram uma noite num descampado (morrendo de medo de cobra), à espera da lancha. “Eu estava preocupado, mas o cansaço era tanto que caí no sono”, contou Martínez. “Pelo menos foi só um dia. Teve gente que passou cinco.”
A partir daí, o imigrante conta ter perdido a noção de tempo. Ele se lembra de, já em solo nicaraguense, seguir numa caminhonete até as imediações de um posto de controle militar. Atravessaram um rio a nado de madrugada, e chegaram a Manágua de táxi num final de tarde. Entre suborno a policiais e pagamento aos coiotes, gastaram outros 650 dólares para atravessar a Nicarágua.
Uma vez em Honduras, negaram-se a entregar mais dinheiro à polícia. Foram autorizados a prosseguir em troca de seus casacos e bonés. Na Guatemala, pagaram 100 dólares por um bilhete de ônibus e atravessaram o país em dez horas. Desembarcaram às dez da noite em Tecún Umán, onde o rio Suchiate é a última fronteira. “A gente já podia avistar as luzes do México.” Agora sabiam que daria certo.
Em 4 de janeiro, Martínez me mandou pelo Facebook uma foto do visto transitório concedido pelo governo mexicano, válido por vinte dias. Mas nem precisaria de tanto tempo assim. De Tapachula a Matamoros, foram 35 horas de ônibus. Estava tão cansado quanto feliz – e mais pobre, tendo desembolsado quase mil dólares além do combinado inicialmente. Ainda gastaria mais 6 dólares para cruzar o rio Grande com um motorista de ônibus até Brownsville, no Texas (a viagem durou cinco minutos). No dia 7, nova foto: de mochila nas costas, Martínez e um dos amigos olham satisfeitos para a câmera ao lado de uma placa: Welcome to the United States of America.
O primeiro avião com os imigrantes cubanos que haviam ficado para trás decolou da Costa Rica em 12 de janeiro. O segundo sai em fevereiro, e a partir de então serão pelo menos dois voos semanais, até que os quase 8 mil refugiados deixem o país.
Na última vez que falei por telefone com Guillermo – o amigo de Martínez que ficara na Costa Rica –, ele seguia em Upala, ao norte do país. Dali a dois dias, completaria dois meses dormindo numa quadra poliesportiva com outras 260 pessoas. Parecia não se abalar, a julgar pelo clichê de que lançou mão para mostrar confiança de que sua hora chegaria: “Grandes riscos, grandes recompensas.”
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