"Eu queria ser prático, uma cura rápida. Precisava voltar a ouvir normalmente a voz da minha mãe, antes que minha lembrança fosse substituída pela paródia sonora que estava ouvindo" FOTO: ACERVO PESSOAL
Do zumbido à redenção
A via-crúcis de um fã de música pop que quase perde a audição
João Fernando Baldan | Edição 46, Julho 2010
Perguntado como se autodefiniria, o mineiro JOÃO FERNANDO BALDAN tem resposta pronta: “Sou jornalista hipocondríaco.” Usa o termo sem artigo indefinido, como sendo profissão e condição. Formado pela PUC-Campinas, mora e trabalha em Poços de Caldas, como assessor de imprensa e colaborador de site. Mas sua ocupação preferida é ser microcontista no Twitter e aspirante a escritor de ficção. Aos 33 anos de idade, teve a vida transtornada por um encadeamento de fatos insólitos que o levaram a escrever este diário
OUTUBRO DE 2008_A vida pode ser bastante irônica. Enquanto eu delirava na apresentação do Mudhoney, em São Carlos (SP), no domingo dia 12, ao som de Here comes sickness (Aí vem a doença) e Touch me, I’m sick (Toque-me, estou doente), minhas preferidas da banda até então, não imaginei que fosse ficar doente de verdade.
Minha cabeça virou uma caixa de marimbondo. Zumbidos dissonantes, sensação de ouvido tampado, intolerância a certos sons, audição distorcida. Tudo ao mesmo tempo agora. Lembro que o som do show estava ruim, mas não me recordo se fiquei muito tempo perto das caixas. Eu estava bêbado. Só sei que, no dia seguinte, começou um pesadelo sonoro em minha vida.
Ver tinnitus.
Ver também hipersensibilidade auditiva.
Ver também hiperacusia.
Ver também fonofobia.
Ver também paranoia.
Não conseguia mais ouvir música. Na minha percepção, Chico Buarque, por exemplo, parecia cantar com um balão de gás hélio. A voz da minha mãe soava distorcida, fina como a da minha tia.
Ver pânico.
A sensação de ouvido tampado ou de pressão era a mesma de quando você “sobe a serra”. Só que não passava. Por conta disso, eu estava meio surdo. Mas, ao mesmo tempo, alguns sons agudos se tornaram quase insuportáveis. O barulho de uma colher batendo no piso da cozinha ao cair parecia ferir meus tímpanos. Barulho de sacola plástica ou saco de papel, a mesma coisa. A voz da minha irmã se tornou irritante. Eu estava ouvindo demais e de menos simultaneamente.
Estima-se que 17% da população tenha zumbido, segundo a Sociedade Brasileira de Otologia. Eu já tinha zumbido quando fui ao show. Aparecera, talvez, uns oito meses antes do outubro perturbador. Mas era um barulhinho quase imperceptível, do qual me dava conta apenas no silêncio da madrugada. Eu já estava me tratando com um otorrino. Tínhamos avaliado as possíveis causas do zumbido (que, embora pareça, não é doença, mas sintoma). Consumo excessivo de cafeína? Não. Consumo excessivo de açúcar? Não. Consumo excessivo de gordura? Não. Labirintite? Não. Tumor no cérebro? Não.
Por fim, as causas mais prováveis no meu caso, mas que eu me recusava a aceitar. Ouvir música demais no iPod? Talvez, embora eu nunca ouvisse em altos volumes e só o usasse na academia e na ciclovia. Ter perambulado demais em alguma rave? Talvez. Na virada de 2007 para 2008, passei o Réveillon no Rio do Janeiro, numa festa eletrônica na Barra da Tijuca. O zumbido aparecera (ou se manifestara mais claramente) a partir daí. Talvez fosse uma combinação das duas coisas: fone de ouvido, misturado ao ambiente sonoro da academia (aquelas músicas horríveis!) com o som do iPod, agravando uma possível lesão auditiva causada na rave, ou o contrário. E, no show do Mudhoney, outra exposição inadequada talvez tenha fodido tudo de vez.
Só me dei conta da situação quando o médico, no começo da desgraceira sonora, não deu muita certeza de melhora. Zumbido causado por lesão no ouvido ainda é meio que uma incógnita para a medicina. Não tem cura. O mesmo serve para a hipersensibilidade auditiva. Imaginei que não fosse aguentar passar a vida inteira numa montanha-russa sonora. O otorrino me passou remédios (eu já estava tomando um vasodilatador) e disse que eu deveria aguardar a evolução do tratamento em relação à perda auditiva e ao restante dos sintomas.
Sempre ouvi música para dormir, mas tive que abandonar o hábito. Imaginei o absurdo: uma vida sem música. Seria difícil. Ouvir música dá tanto prazer quanto sexo e chocolate. Segundo o neurocientista (e produtor musical) Daniel J. Levitin, a música atua na mente de forma semelhante aos prazeres da carne. Está em seu livro Uma Paixão Humana: O seu Cérebro e a Música. “Para um cérebro, a música é uma brincadeira”, afirma. Sempre fui o cara da diversão.
Não sou músico, mas a música (pop) tem papel importante na minha vida. Ela ajuda a me situar no tempo. Serviu de apoio em praticamente todos os momentos da minha vida, bons e ruins. Parar de ouvir música era como perder um(a) confidente. Era como perder um amigo. Era como perder uma namorada. Eu não estava namorando. Menos mal. Não corri o risco da voz da minha namorada ter se tornado irritante e eu ser obrigado a dar um tempo com ela. Compartilhei meus problemas apenas com minha família. Eu não queria que meus amigos soubessem de nada. E como eu estava de férias, foi fácil fugir de todo o mundo.
Quase não saí de casa. Numa raríssima vez, ao resolver fazer trilha com uma amiga, a experiência foi horrível. Quando ela caminhava à minha frente, eu não entendia o que ela falava. Ela tinha que se virar para mim ou falar bem alto. E à medida que eu continuava a trilha, as variações do zumbido aumentavam, talvez pelo esforço físico. Eu parava, erguia a cabeça olhando para o céu e tinha a sensação de estar no centro de um redemoinho sonoro ou de ter um disco voador circulando dentro da minha cabeça.
Eu estava nervoso e estressado e, para piorar, meu cabelo tinha começado a cair.
Ver descontrole emocional.
Ver também estresse.
Fui ao dermatologista. Ele me receitou finasterida. Dias depois, receitou hidroxizina porque comecei a ter urticária.
Ver sarna.
Odeio hidroxizina. Dá uma sensação horrível. É como estar de ressaca o tempo todo. Nubla a percepção. Você se sente cansado, amortecido. É como passar o dia ouvindo Enya.
Ver zumbi.
A lista de remédios foi aumentando. Fora o vasodilatador, eu também estava tomando cortisona, a essência da maldade, receitada pelo otorrino. Ele havia indicado ainda um complexo vitamínico, devido a um dos infinitos efeitos colaterais, que é minar a resistência.
Pensei no trabalho. Queria voltar das férias com o problema estabilizado. Tinha até o feriado do começo de novembro para melhorar. Acabei desmarcando uma viagem com dois amigos para o Rio de Janeiro. A viagem seria especial, musicalmente especial. Eu iria ao Rio para ver o show da Bebel Gilberto no Circo Voador e ia tentar fazer o roteiro “lítero-musical” traçado por Ruy Castro no livro Rio Bossa Nova. Sem chance.
Mas eu precisava viajar para algum lugar para desencanar. Não podia desperdiçar o restante das férias alucinando paranoicamente em casa.
Sempre acreditei na ciência. Sempre procurei ser lógico e racional. Mas também acredito que, quando a ciência não dá conta de algo, quando a medicina não pode te fornecer os subsídios necessários, não custa tentar “o outro lado”. Decidi procurar cura espiritual.
Alguns anos antes, eu havia lido uma matéria sobre o médium João de Deus, de Abadiânia, em Goiás. Ele faz cirurgias espirituais. Lembro de ter pensado que, se algum dia tivesse uma doença incurável, iria procurá-lo. Mas não imaginei que fosse fazer isso por um problema no ouvido. Imaginava um câncer ou coisa assim.
Eu não estava desesperado. Longe disso. Obviamente, o problema no ouvido estava me incomodando muito, mas nunca pensei que fosse algo insuportável ou desesperador. Eu queria ser prático. Queria uma cura rápida. Eu precisava voltar a ouvir normalmente a voz da minha mãe, antes que minha lembrança fosse substituída pela paródia sonora com que estava obrigado a lidar. Eu não queria correr o risco de perder outras coisas que me eram importantes. Eu não queria desperdiçar meu tempo disponível.
28 DE OUTUBRO_Embarquei para Abadiânia. Minha viagem de ida foi marcada por uma série de dúvidas. No caminho, pensei se eu não estaria pulando etapas. Geralmente a pessoa busca uma cura dessas em último caso, quando o tratamento normal não deu resultado. Eu estava no meio do meu tratamento convencional. Será que eu não deveria ter aguardado alguns meses? Um ranço católico dominou meus pensamentos. Será que eu merecia ser curado? Será que eu não deveria esperar e sofrer mais antes de buscar a “ajuda divina”? Será que eu não estaria usurpando um espaço de verdadeiros sofredores, de gente com problemas mais graves? E será que minha dúvida significava falta de fé e essa falta de fé poderia sufocar todo o processo de cura? Tentei me manter focado.
Abadiânia é um lugar curioso. Cravado a 88 quilômetros de Goiânia, a cidadezinha de 12 mil habitantes se alimenta do turismo espiritual que se formou em torno do fazendeiro João Teixeira de Farias, o João de Deus, ou John of God, como é conhecido no exterior. Na verdade, João de Deus é mais famoso lá fora do que no Brasil. Graças ao “efeito Shirley MacLaine”. A atriz norte-americana visitou o médium em 1991 para tratar de um tumor abdominal. Por conta disso, o miolo espiritual de Abadiânia parece um pedaço de outro país. Quase não se ouve alguém falando português.
Uma estradinha de terra leva à Casa Dom Inácio de Loyola, onde João de Deus atende ao público. Como uma das determinações para ser recebido na casa é usar vestes brancas, o que se vê é um desfile de pessoas de batas, calças, bermudas e saias brancas. E, claro, sandálias de turista. Pelo fato de haver uma aura espiritual envolvendo o lugar, as pessoas acabam adquirindo uma postura zen, meio hippie. O ambiente lembra uma Woodstock.
Na rua que desemboca na via sagrada há várias pousadas e lojas administradas por estrangeiros. Uma norte-americana vende cristais e bijuterias numa lojinha esotérica. Ela vende caro, em dólar, e só fala inglês. Pessoas da cidade também nutrem o comércio local. Há pequenas lanchonetes com sorvetes e sucos exóticos da região, mercadorias expostas em casas simples de quem apostou nos bolsos brancos que vêm e vão.
No jardim da Casa Dom Inácio, chamado “Jardim de Todos os Lugares”, há vários bancos rústicos de madeira, doados por pessoas que se disseram curadas. Cada banco tem uma plaquinha em forma de coração com agradecimentos. No centro do jardim, há um busto de santo Inácio de Loyola, e uma escultura cravada de cristais que lembra uma pequena gruta. Ao fundo, há um mirante com corrimão de madeira que dá para uma profusão de colinas arborizadas, de onde sopra uma brisa acolhedora. A lufada serena espanta o calor por uns instantes.
29 DE OUTUBRO_Dia do atendimento. João de Deus recebe às quartas, quintas e sextas. Acordei por volta das sete da manhã. Tomei um banho rápido, vesti uma camiseta e uma bermuda brancas e desci para tomar café. Outra recomendação da Casa Dom Inácio: para ser curado, não comer carne de porco. Eu não estava comendo nenhum tipo de carne havia dias e também não estava bebendo álcool por causa da hidroxizina e da cortisona. No caso da cortisona, só cortaria o efeito. Mas, se misturasse bebida alcoólica com hidroxizina, seria quase como tomar ecstasy. Não… seria como tomar anfetamina e álcool. Não… seria apenas como misturar vodca com energético.
Meu hotel ficava a menos de um quilômetro do local. Além de mim, havia algumas dezenas de pessoas caminhando para a Casa Dom Inácio. Uma delas, uma moça com lenço na cabeça, violava uma das regras ao fumar um rápido cigarro para se acalmar. Era preciso estar lá antes das oito, hora que o atendimento começa. Havia filas e, além dos gringos, também pessoas das redondezas. Circulando, descobri que as pessoas não procuram João de Deus somente em situações gravíssimas, como câncer e distrofia muscular. Também recorrem ao médium, especialmente pessoas da região, para curar dor nas costas, alergia, gastrite.
As orientações antes do encontro com João de Deus acontecem no salão da Casa Dom Inácio. As pessoas foram se aglutinando nas bancadas. Enquanto procurava um assento, vi do lado direito do salão uma mulher loira de meia-idade, riponga, em pé diante de seus chegados, cantando animadamente uma música em inglês, enquanto seus companheiros faziam coro. Naquele momento, eu também estava enxergando um enxame de moscas volantes, brancas e escuras. Isso havia começado antes da viagem, mas eu não dera muita importância até então.
Ver alucinação.
Ver também esquizofrenia.
Zumbido, surdez, pontinhos na vista e cabelos caindo. Talvez eu precisasse de uns três Joões de Deus para ser curado.
Começaram as orientações. Um orador fez um discurso primeiro em inglês, depois em português, enfatizando que o grupo da casa não se apega a nenhuma religião específica, mas, sim, à crença em Jesus Cristo. Dividiram o público em grupos: os da primeira vez, os da segunda, os das cirurgias. Eu estava sentado no fundo. Não quis chegar perto de João de Deus, que usava um bisturi, porque não suporto ver sangue nem cortes, agulhas ou coisas do tipo. Ele faz cirurgias invisíveis também, sem cortes. Era por esta que eu estava disposto a passar.
Do salão, junto com a turma de primeira viagem, fui conduzido para uma sala com várias imagens de santos. Havia uma cadeira de madeira com almofadas rendadas, encimada por um quadro que reúne as imagens de Cristo, Inácio de Loyola, em destaque no centro, e Nossa Senhora. João senta-se ali para conversar com os enfermos. Parecia um trono. Ele recebe, por dia, cerca de 500 pessoas. Aguardando na fila indiana, vi que ele suava muito. Seu olhar não estava concentrado neste mundo. Cada pupila parecia esconder uma imensidão azul.
Na minha vez, ele perguntou meu nome e de onde eu vinha. Em seguida, rabiscou algo num pedaço de papel, me entregou e disse algo que não entendi porque não estava ouvindo direito, embora a sensação de abafamento tivesse diminuído na viagem. Fui encaminhado para fora do prédio junto com uma leva de pessoas. E agora? O que ele disse? Droga! Olhei para o papel. Havia somente pontos e traços. Devia ter pedido para ele repetir. Eu e mais um grupo de umas quinze pessoas fomos levados para um ponto do jardim, perto de uma árvore. Um assistente nos disse que devíamos seguir as recomendações dadas pela entidade e ir à farmácia adquirir medicamentos.
– Mas eu não entendi o que o médium disse – berrei ao assistente.
– Nem eu – falou uma garota de descendência asiática, em português claro.
O assistente pegou o meu papel e o dela, olhou e nos mandou seguir até a farmácia. Saí com quatro potes de medicamento fitoterápico, contendo 35 cápsulas cada, para tomar três vezes ao dia. Mas e a cirurgia? Não vou passar pela cirurgia? Tenho que tomar os remédios antes e voltar meses depois?
Após o almoço, seguindo as instruções do assistente, me juntei a uma turma que rezava numa salinha de mentalizações. Acho que devo ter quebrado a corrente porque não consegui rezar direito. Não lembro muito bem como eram as rezas. Acho que cantaram umas músicas católicas. Como não gosto de canções religiosas, procurei fazer algo próximo de meditar.
Em Abadiânia, acabei descobrindo que, na maioria das vezes, o processo de cura espiritual não é um passe de mágica. A pessoa que passa pelas mãos de João de Deus às vezes tem de voltar para outras sessões e fica meses tomando os comprimidos fitoterápicos. Obviamente, a viagem me decepcionou, pois eu queria que ele tivesse, sei lá, tocado meus ouvidos e “dissolvido” o zumbido e todo o resto que estava me incomodando.
NOVEMBRO_Voltei a trabalhar. Por via das dúvidas, não deixei de tomar as cápsulas receitadas na Casa Dom Inácio. Tinha munição celestial para quarenta dias, fora todo o resto de comprimidos alopáticos que eu estava ingerindo.
Ver hipocondria.
Enquanto o problema dos ouvidos não sarava (eu acreditava que ia sarar, com ajuda dos espíritos ou não), eu me fingia de desligado quando alguém falava comigo e pedia para repetir. Funcionou bastante no trabalho. Fui contando meu problema de audição aos poucos. Quando falava, escolhia a dedo as pessoas e revelava só algumas coisas. Para alguns, eu dizia que era um pequeno e temporário problema no ouvido, nada mais. Para outros, que minha audição estava afetada por causa de uma gripe.
A essa altura, eu estava mais preocupado com os meus olhos. Comecei a enxergar uma mancha verde, mais pronunciada no olho esquerdo. Se eu fechasse o olho direto e olhasse para o rosto de alguém, não conseguia discerni-lo. A sensação era muito parecida com a de ofuscamento.
Fui ao oftalmo, que diagnosticou uveíte, uma inflamação intraocular.
Ver cegueira.
Ele me receitou um monte de cortisona. E também colírios. Fazia pouco tempo que havia terminado de tomar os corticóides que o otorrino receitara. Meu rosto e meu couro cabeludo haviam se enchido de espinhas. Seriam, pelos menos, mais trinta dias de cortisona e complexos vitamínicos.
Eu estava tomando tanta coisa que resolvi comprar uma caixa para guardar os medicamentos. Na loja, fiquei na dúvida entre uma branca e uma preta. A caixa branca parecia muito óbvia. Comprei a preta porque ela parecia representar perfeitamente o período negro pelo qual eu estava passando.
Dias mais tarde, enquanto observava a caixa pousada na cadeira, fiz uma associação mais óbvia. Eu a comparei a uma caixa-preta de avião. Se eu sumisse da face da Terra e alguém, que não me conhecesse ou não soubesse o que eu estava passando, encontrasse minha caixa de remédios, o que pensaria?
– Colírios: essa pessoa tem algo na vista.
– Cortisona: essa pessoa tem algo sério na vista, mas também pode ter asma ou lúpus. Deve estar gorda e inchada.
– Vimpocetina: essa pessoa deve ter labirintite. Dever ser alguém velho.
– Vitergan: essa pessoa está com a resistência baixa.
– Hidroxizina: essa pessoa tem também urticária ou uma alergia. Deve ter falta de ar.
– Finasterida: o dono da caixa deve ser homem e está ficando careca ou… putz! O coitado tem câncer de próstata! Sabia que ele tinha câncer! E o que é pior, ele ficou broxa! Esse velho é um fodido.
Os comprimidos da Casa Dom Inácio confundiriam bastante. Levando-se em consideração que a pessoa não soubesse nada sobre João de Deus, ela imaginaria que eu estivesse com os nervos à flor da pele porque o rótulo indica “Produto fitoterápico – passiflora sp”. Imaginaria qualquer outra coisa, menos que eu tivesse uma lesão auditiva e zumbido.
O zumbido havia diminuído e estabilizado. Nos exames, minha audição tinha melhorado consideravelmente. Eu já conseguia ouvir a chuva caindo lá fora. Conseguia ouvir os movimentos do meu cachorro no quintal. Minha visão também havia melhorado. A mancha verde desvaneceu. Bom sinal.
Para ter certeza de como estava a distorção sonora, eu usava a voz da minha mãe e uma música do Chico Buarque, Olê, olá (versão ao vivo com participação de Maria Bethânia), como referências. Não me lembro por que escolhi essa canção em vez de qualquer outra do Chico, mas era a única que rompia meu jejum musical. A voz dele, da Bethânia e de minha mãe ainda soavam estranhas. Mau sinal.
Lá estava eu. Sem beber, sem ouvir música, sem ir ao cinema, sem (quase) fazer sexo. A cultura pop havia me deixado doente, imaginei brincando. Talvez eu tivesse assimilado cultura pop demais. Tinha virado uma espécie de “lixão”, transbordando de informações acumuladas em anos de consumo de música, cinema e afins, manifestadas em enfermidades nos meus sentidos. Não me lembro se cheguei a levar essa hipótese a sério, mas precisava colocar algo para fora. Em vez de consumir, eu precisava produzir cultura pop.
Fiz um curso de roteiro de história em quadrinhos on-line. Eu já tinha noção de enquadramentos e linguagem de quadrinhos. O curso me ajudou a fazer a coisa mais certinha. O roteiro que produzi quase saiu da gaveta. Era sobre uma stripper evangélica. Mas um amigo quadrinista que havia prometido dar vida à obra me enrolou e desistiu. Nesse meio tempo, também escrevi metade de um livro de terror infanto-juvenil baseado, em parte, nas peripécias do meu cachorro.
Esses projetos faziam parte do processo de interiorização a que fui arremessado depois que fiquei doente e dei uma pausa na minha vida social.
DEZEMBRO_Teve show da Madonna. Não fui. Eu não estava preparado. Eu ainda não estava curado. Meu cabelo estava cheio de falhas, especialmente na parte de trás do alto da cabeça. Não tinha jeito de esconder que estava doente.
As festas de fim de ano chegaram. Passei o Natal em casa com minha família. Réveillon, idem. Depois de comer, brindar e beber champanhe sem álcool, ouvi Olê, olá. Naquele momento, percebi, pela primeira vez, que a voz do Chico e da Bethânia soavam normais de novo. Eu já tinha notado que a voz da minha mãe e outras vozes já me soavam naturais outra vez, mas voltar a ouvir a música do Chico representou uma espécie de “certificação de cura”, de volta à normalidade, de paz com a cultura pop. E a letra, embora faça parte do contexto da ditadura militar da época, acabou tendo um significado particular para mim. Chorei.
4 DE FEVEREIRO DE 2009_Confirmaram a vinda do B-52’s ao Brasil, com show em São Paulo marcado para 18 de abril. B-52’s é minha banda favorita desde os 9 anos. Fiquei exultante.
Ver euforia.
Ver também compulsão.
Eu estava de volta! Meu zumbido estava domado. A hipersensibilidade auditiva parecia inexistente. Meus olhos estavam novinhos em folha. Resolvi dar um jeito no cabelo. Os fios compridos, em contraste com as arestas do couro cabeludo onde pontinhos de novos fios estavam surgindo davam uma aparência doentia. Raspei. Não havia mais sinais de falha. Ufa!
7 DE FEVEREIRO, SÁBADO_Decidi colocar um basta no meu período de abstinência alcoólica e de balada. Meu primo me convenceu a ir a uma festa com show do Double You, aquela bandinha dance dos anos 90 que fez menos sucesso que o Information Society, hoje tão decadente quanto. Eu não tinha mais nada para fazer e resolvi embarcar no revival-pop–trash. Por via das dúvidas, era só ficar longe das caixas de som.
Chapei. Mas não fiquei “soltinho” a ponto de expurgar da minha mente a preocupação com o som alto. Procurei ficar longe, circulando apenas nos cantos e laterais opostos ao palco, mas não aguentei ficar lá muito tempo. Fui embora sem dar tchau, antes do show acabar, temendo o pior.
8 DE FEVEREIRO, DOMINGO_O zumbido aumentou ligeiramente, assim como a sensibilidade a sons agudos. Isso me fez perceber que altos decibéis me fariam mal para sempre. Não tinha jeito. Era como ter a superaudição do Super-Homem, mas ser sempre atormentado pelo grito do Canário Negro, que faz os ouvidos do homem de aço sangrarem. Percebi que o zumbido não era mais meu principal problema (apesar de ter aumentado), mas a hipersenbilidade auditiva, a fragilidade dos meus ouvidos a altos decibéis, além dos sons agudos. Eu não poderia mais me arriscar em shows, festas e afins. E o show do B-52’s estava fora de questão.
Naquele momento, imaginei que fosse o começo da ruptura definitiva com o meu antigo eu. Havia dois de mim. O do passado, batendo na porta trancada, e o novo, atravessando um corredor sem fim.
MARÇO_O Carnaval passou batido, pois fiquei em casa. Eu ainda estava bastante paranoico. Mas havia uma regra: qualquer volume que me impedisse de ouvir normalmente a conversa de alguém podia causar problemas. Sendo assim, passei a frequentar a academia em horários em que não havia aulas aeróbicas com música alta, evitei bares com som ao vivo etc. Eu não era mais o cara da diversão. Tornei-me o cara “sossegado”, desencanado, que não curte muito balada. Mal sabiam eles. Eu queria uma rave.
Mais do que uma rave, queria ir ao show do B-52’s. Precisava ir. Não era um show qualquer. Não era pirraça. A banda significa muito para mim. O grupo representa um modelo de amizade que eu achava importante. Os integrantes eram amigos desde antes da formação da banda e “botavam para quebrar”. Eu tinha uma relação parecida com minha turma de amigos. Ir ao show seria quase como comungar com meus “gurus”. Seria o auge, a peça que faltava no meu histórico de diversão, uma festa de despedida de solteiro metafórica do meu antigo eu. Sem falar que os integrantes da banda estavam na casa dos 50 anos. Poderia ser a última turnê de um novo disco lançado depois de um hiato de quinze anos.
Por outro lado, ir ao show, na condição em que eu estava, poderia ocasionar uma volta a todo o pesadelo sonoro que gerou minha crise existencial. “Que triste demônio vive empurrando você a correr de um lado para outro nessas reuniões?”, escreveu o escritor israelense Amós Oz, no livro Rimas da Vida e da Morte, sobre os impulsos e dilemas do protagonista da história.
Após muita conversa com o otorrino, decidi encarar o show usando um protetor auricular. Como não pensei nisso antes? Descolei um modelo descartável de espuma, sem fios, que reduz o barulho em 29 decibéis. Parece que você está com rolhas nos ouvidos.
– Mas não fique muito perto das caixas de som. Não vai ficar igual bobo lá na frente do palco – recomendou o médico, durante a consulta.
18 DE ABRIL, SÁBADO_Dia do show. Meti o par de plugs laranja e meus óculos escuros brancos retangulares anos 80, e fui encarar o Credicard Hall. Sozinho porque meus amigos não se animaram a ir ao show. Postei-me no fundo, perto de uns casais. A espera já durava 45 minutos. Passei esse tempo tuitando.
O clima de decepção estava forte. Primeiro: teria que curtir o show de longe. Segundo: a banda não havia tocado Legal tender (hino da banda no Brasil). Terceiro: minha concepção de apresentações da banda tinha sido moldada por vídeos antigos vistos no YouTube, da época em que eles eram jovens.
E eles estavam velhos e inchados, com exceção de Keith Strickland, que parece ter sido encapsulado no tempo. Mas, ainda assim, seriam eles. Sim! Eram eles! A loira, Cindy Wilson; a ruiva, Kate Pierson; Fred Schneider, terceira voz do grupo; e Keith.
O show para mais de 4 mil pessoas começou com Pump, do último disco. Continuei no fundo, à esquerda, no meio de um pessoal pouco animado. O público, aliás, era dividido entre trintões saudosos e moderninhos mais jovens. De longe, eu via a turma da boca do palco pular com fervor. Eu não estava curtindo o show direito. Eu precisava pular perto do palco. Eu precisava ver a banda de perto.
“Are you ready for Idaho?”, perguntou Fred. Então veio a quarta música, a bomba Private Idaho (“Uhu-hu-u-hu-u-hu… Hu-u-hu-u-hu…”). Não aguentei. Como uma mosca hipnotizada por uma lâmpada, driblei a multidão sob protestos (“Pô! Não dá pra passar! Não tá vendo que tá apertado?”) e fui parar na terceira fileira, no lado esquerdo do palco. Vi os integrantes a poucos metros de distância. Cindy roubava a cena, pulando e agitando a cabeleira com um sorriso que espantava a senilidade do seu rosto. O.k., em outro contexto, ela pareceria a Joelma, do Calypso.
Só não dancei o “shoo-ga-loo” e o “coo-ca-choo” (danças bizarras inventadas pelo grupo) por falta de espaço. Fiquei na frente até a eletrônica Love in the year 3000, minha preferida das recentes, a 12ª a ser tocada no show. Pulei feito um “javali saltitante”. A definição pitoresca pertence a uma das músicas da banda. Um cara de 1,85 metro, pulando com um par de óculos escuros brancos que parece coisa de sessão 3D, não era difícil de ser identificado na multidão. Num breve momento, Cindy me apontou sorrindo, dando a entender “Olha, ele está no clima” ou então “Ha-ha-ha, olha que tonto”.
Após a música, voltei a atravessar o mar de cabeças, e fui para o fundo da pista, perto do balcão do bar. Tive minha redenção.
Encarnei vários “eus” ao longo do show, numa espécie de retrospectiva bizarra. Fui o atual cara encanado de óculos vintage temendo ficar surdo sem saber onde ficar, fui o garoto de 9 anos que parecia ter descoberto a fábrica de doces ao ver o vídeo da banda pela primeira vez, fui o adolescente que caçou vinis do grupo e dançou Love shack na danceteria junto com a garota dos sonhos.
No fim, não tocaram Legal tender mesmo, apesar do coro do público depois do bis. No geral, a plateia estava meio apática.
Deixei o Credicard Hall sentindo um certo rebuliço nos ouvidos. Talvez fosse só emoção.
19 DE ABRIL, DOMINGO_Minha audição parecia estar como antes. Foi um alívio.
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