Garçom no gabinete do prefeito e professor de dança no subsolo da prefeitura, catorze andares abaixo, o funcionário público Gyleno dos Santos nunca erra o passo nas voltas que o governo dá no Rio de Janeiro FOTO: ROGÉRIO REIS
Dois pra lá, dois para cá
Como aprender a dançar no verão carioca do Choque de Ordem
Marcos Sá Corrêa | Edição 29, Fevereiro 2009
A nova administração não precisou de duas semanas para acertar o passo com o ritmo de sempre no Rio de Janeiro. Na segunda-feira, dia 12 de janeiro, às seis da tarde, o horário em que acaba o expediente no Centro Administrativo São Sebastião – a sede da prefeitura carioca –, começou o ano letivo de 2009 na sala de reuniões número 3 do Núcleo de Atividades Audiovisuais.
O funcionário Gyleno dos Santos ensina dança de salão naquele canto do subsolo que a garagem da prefeitura compartilha com o auditório, a enfermaria e o arquivo municipal. Dançarino profissional formado pela Academia Nice, Gyleno dos Santos é um craque em transições suaves.
Ele desliza no salão com o vôo rasante de calcanhares que, nos romances de Georges Simenon, faz o inspetor Maigret adivinhar de longe o ofício de quem ganha a vida equilibrando uma bandeja nas mãos. Catorze andares acima, Gyleno é garçom e serve o prefeito. Tem os pés plantados nos sacolejos gerados pelo fim da era Cesar Maia e o começo da administração Eduardo Paes.
Há oito anos a cidade não via uma troca de prefeito como se deve, com briga na eleição e choro na despedida. E Cesar Maia esteve impecável no seu papel. Na tarde de 31 de dezembro, ele desceu pela última vez de seu gabinete, um lugar de características tão idiossincráticas que parecia decorado para ele se sentir em casa para sempre.
Trazia na lapela um botão esmaltado com a foice e o martelo. Nas mãos, carregava um retrato emoldurado do médico pernambucano Pedro Ernesto, o interventor da Revolução de 1930 no Rio que espalhou escolas e hospitais pelo município até sair preso do cargo, por desavenças políticas com o regime que representava.
O broche comunista era um memento que aludia à sua militância estudantil, numa carreira que, de sigla em sigla, a idade levou ao DEM. E Pedro Ernesto, que ele acabara de nomear “o melhor prefeito do Rio em todos os tempos”, parecia ser uma alavanca de sua própria candidatura ao desagravo da posteridade.
O prefeito era, pois, um dos raros cariocas que, diante do réveillon, encarava o passado. A proximidade do futuro era visível até no grupo de secretários recém-exonerados que acompanhou Cesar Maia no bota-fora. Faltava a secretária de Propaganda e Pesquisa Leila Castanheira Garrido Alves, já em trânsito para o Conselho de Desenvolvimento Sustentável do prefeito Eduardo Paes. Era uma ausência notável. Leila Alves seguiu passo a passo a ascensão de Cesar Maia desde que o encontrou, como estagiária, no departamento de pessoal da Klabin Cerâmica, no primeiro emprego dele ao voltar do exílio no Chile.
Ao vê-lo no pátio de saída, a Banda da Guarda Municipal atacou La vie en rose, canção de Edith Piaf que marcava sua aparição em solenidades públicas. Ele ficou com os olhos marejados. No dia seguinte, não compareceu à transmissão do cargo para Eduardo Paes e embarcou, em 2 de janeiro, para um mês de férias na Europa.
Livre da sombra de Cesar Maia, Eduardo Paes expandiu-se no vácuo político. Fez tudo o que tinha prometido fazer, e tão depressa que logo na primeira semana provocou uma revolução semântica nas notícias da cidade. Da noite para o dia, “morador de rua” voltou a se chamar “mendigo”. “Remoção”, um termo caído em desuso, rebrotou no Diário Oficial, num decreto que designava 373 casas em 32 morros. E “favela” tomou o lugar do eufemismo “comunidade”.
Algum resultado já teve o Choque de Ordem – grafado assim, com maiúsculas –, como um programa de governo para acabar com a complacência do estilo Cesar Maia de lidar com a bagunça carioca. Em nome da nova política vigente, o novo prefeito derrubou, logo na estréia, 34 construções irregulares na Zona Oeste. Apreendeu 45 toneladas de alimentos em depósitos clandestinos do Centro. Tirou de Copacabana 48 mendigos que dormiam ao relento. Rebocou na orla da Zona Sul 36 Kombis usadas como depósito dos ambulantes no comércio da praia.
Antes que os jornais voltassem a chamar o Choque de Ordem de “enxuga-gelo”, com minúsculas, o programa parecia irreversível. “A ilegalidade vai ao chão”, noticiava em alto de página um título do jornal O Globo, no dia 6, sobre uma reportagem em que se aplaudia a motoniveladora que arrasara um prédio de dois pavimentos, “com banheira de hidromassagem”, num condomínio-pirata do Recreio.
Era o mesmo bairro onde, oito anos atrás, como secretário de Meio Ambiente de Cesar Maia, Eduardo Paes derrubou a Kananga do Hillos, outra torre do vale-tudo fundiário. As medidas que Eduardo Paes adotou para inaugurar a fase de mudança, portanto, estão longe de serem inéditas. Mas o prefeito é jovem, e isso conta.
Ele tomou posse antes de fazer 40 anos. Oito menos que a idade de Cesar Maia quando assumiu o primeiro mandato, há quase duas décadas. Tem tanta energia para gastar que (pelo menos por enquanto) não espera que o convidado para almoço suba até o gabinete. Ele mesmo desce a escadaria para recebê-lo no salão, movido não só pelo impulso de agradar como pelo afã de se mexer. “Ele não gosta de cadeira”, avisava Cesar Maia, que trabalhava sentado.
O atual prefeito admite que está, no momento, jogando pelo empate. O Choque de Ordem e o enxuga-gelo, ele bem sabe, andam em dupla. Tanto que, no dia 7 de janeiro, O Globo comemorava na página 10 o “Choque de Ordem sem trégua”, e na 11 afirmava que “A desordem volta a reinar”. Num caso, porque fiscais da prefeitura tinham impugnado trinta cartazes de propaganda em Botafogo. No outro, porque carroças de sucateiros estavam carregando para novos empreendimentos imobiliários o material de construção ciscado nos escombros de prédios que Eduardo Paes derrubara na véspera.
Nessas horas, as aulas de dança de Gyleno dos Santos são um conforto. Com ele, dois pra cá, dois pra lá não é empate, mas movimento. O som que sai do aparelho Phillips 3 em 1 (“adquirido em rateio”, explicou) é baixo como sua fala. Não atravessa os corredores para perturbar uma reunião do Conselho de Educação, na sala ao lado.
Ele escolhe, “para desenferrujar as pernas”, a voz de Caetano Veloso interpretando “Odara”, trilha musical da década de 80, quando o prefeito Saturnino Braga ia para o trabalho ao volante de seu próprio Fusca, embora isso não o impedisse, pouco depois, de levar o município à falência.
Gyleno tem 71 anos de idade e está há 26 no emprego. Lidou com cinco prefeitos – Jamil Haddad, Marcello Alencar, Saturnino Braga, Luiz Paulo Conde e Cesar Maia em dose tripla. “Dizem que fui o garçom da Santa Ceia”, ele comenta. Conhece Eduardo Paes desde o tempo em que ele aparecia por lá como candidato a vereador e ambos frequentavam o Vera Cruz, um velho clube da Abolição, na Zona Norte.
Ele conserva o guardanapo manchado pelo batom da princesa Diana, num jantar que serviu, em 1991, no Palácio da Cidade. Cesar Maia, a seu pedido, mandou instalar a parede de espelhos no fundo da sala de reunião, para as aulas de dança das segundas e quartas. Marcello Alencar discursou na cerimônia em que Gyleno recebeu a medalha Pedro Ernesto, a comenda mais brilhante da Câmara de Vereadores.
Gyleno mora em Del Castilho, um subúrbio industrial. Chega às sete da manhã na prefeitura. E, duas vezes por semana, com as aulas de dança das segundas e quartas, sai do emprego às nove e tanto da noite. Sua turma é uma confraria de funcionários e aposentados que formou, há onze anos, o Nó da Dança. “Era para se chamar Nós da Dança, mas descobrimos que havia outro com esse nome e tiramos o S”, ele esclarece, antes que se pergunte.
O Nó da Dança tem estatutos igualitários. Seus alunos pagam 40 reais por mês, “para o ônibus, porque o curso não tem fins lucrativos”. O caderno das contas roda de mão em mão durante a aula. O controle parece frouxo. Cada um chega quando pode, à medida que suas repartições se esvaziam na torre de vidro e concreto, onde 5 mil funcionários e 4 mil visitantes se cruzam durante o dia. Quem entra na sala 3 antes de mais nada abraça um a um os colegas como se, convivendo vagamente no mesmo prédio, eles só se encontrassem para valer ali dentro. Rubens de Souza, depois de suar por duas horas ensaiando coreografias, só ao sair se apresenta como chefe do protocolo da Casa Civil.
A maioria vai à aula de elevador. Mas a auxiliar de enfermagem Selma Pereira da Silva, que mora no município de Duque de Caxias e trabalha no subúrbio do Méier, vem de longe e se esfalfa há “sete ou oito anos” para pegar as aulas. Quando Gyleno chega, Selma já ajudou a empurrar para os cantos cadeiras e mesas, abrindo a pista de dança. Naquela tarde, ele encontrou o atual prefeito durante o almoço. Os dois posaram juntos na sala de refeições, Gyleno com jaleco branco de botões dourados abotoado até o pescoço, Eduardo Paes de colarinho aberto e mangas arregaçadas.
Gyleno anda remoendo um livro de memórias, tentativamente intitulado Segredos de Bandeja. O texto parece bloqueado por escrúpulos. A seu ver, o segredo de seu ofício é guardar os segredos alheios. “Eu escuto, aprendo, acabo sabendo de muita coisa”, disse. “E vou levar tudo comigo. Nem em casa comento o que ouço no trabalho.” Está ali para “levar água, café, pegar a xícara vazia e só conversar com quem puxa conversa”.
Três dias antes, no almoço com o prefeito, faltava Gyleno. Como o momento era de turbulência na prefeitura, perguntei se ele caíra em desgraça. “Quem? O Gyleno? Ele é maravilhoso. Está comigo lá no Centro”, respondeu Eduardo Paes. E aproveitou para apresentar o garçom do Palácio da Cidade, José Barbosa: “Ele faz um pão, tipo joelho, com queijo derretido e presunto, que é um perigo.” Minutos depois a ameaça ao regime veio à mesa, fumegando.
Mencionar Gyleno teve o efeito de botar a conversa no rumo da continuidade administrativa. Vista de fora, a prefeitura passava por um expurgo. De perto, recolhia os náufragos de Cesar Maia.
Eduardo Paes não precisou de muita acomodação para se sentir em casa no casarão de Botafogo que a Embaixada inglesa vendeu à prefeitura carioca em 1975. Tanto que nem se deu ao trabalho de desalojar o fantasma do antecessor. Na entrada, chumbadas nos arcos do pórtico, duas placas de bronze, datadas de 2005, preservam “o amor de uma pessoa por sua cidade”, encarnado em Cesar Maia, e “uma homenagem dos cariocas” à sua mulher, Mariangeles. No 1º andar, o corredor que desemboca no gabinete tem três retratos de Cesar Maia, numa galeria de ex-prefeitos que remonta ao século XIX.
“Três, né.” E isso é tudo que o novo inquilino tem a dizer sobre o antigo. No Palácio da Cidade instalou-se durante anos “o governo Mariangeles Maia”. Em torno das creches, dos abrigos para idosos e outros serviços beneficentes, a primeira-dama acolheu sob seu teto até a Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais, do ator Victor Fasano. Em troca, deixou a casa arrumadíssima. Foi-se o tempo em que porcos desciam do morro Dona Marta para fuçar os jardins da antiga embaixada. Hoje, nem os carros dos funcionários atravancam as alamedas.
Eduardo Paes considera o palácio “um dos melhores legados” que recebeu da família Maia. O outro é a residência oficial da Gávea Pequena, na Floresta da Tijuca. A primeira-dama restaurou-a de alto a baixo. Encontrou um chalé com infiltrações nas paredes, goteiras no teto e entupimentos na cozinha. Devolveu uma sede de fazenda do século XIX com ar-condicionado central e fachada lilás.
A família Paes está apaixonada pela Gávea Pequena. Se pudesse, o prefeito ficaria lá, ouvindo música clássica, sem fazer nada, como se suspeitava que Cesar Maia fizesse, quando andava sumido. Logo quem: ele ficava colado no computador até meia-noite. E, no gabinete no Centro Administrativo, não deixou 1 metro quadrado de parede sem pendurar um quadro. Trabalhava cercado por reproduções de cartazes soviéticos, manuscritos do pai e o fac-símile de sua ficha política. Nas mesas, espalhara 400 estatuetas de coruja, de Ganesh e do Homem-Tigre quíchua, todos os amuletos, que catava em viagens, contra mau-olhado e obstáculos impossíveis. Sem contar as miniaturas de Dom Quixote, o protetor dos canhestros.
Cesar Maia não era homem de rebarbar superstições. Carioca, morando de frente para o mar, só ia à praia uma vez por ano, na madrugada de 31 de dezembro, para molhar nas ondas um saquinho de lentilhas. Estreou como prefeito num ano de inundações e desabamentos e nunca mais abriu mão de um contrato de assistência meteorológica com a Fundação Cacique Cobra Coral, cuja médium Adelaide Scritori se atribui o dom de prevenir desastres climáticos. A exótica parceria foi revogada em dezembro – e reatada em três semanas por Eduardo Paes, assim que chuvas de janeiro o convenceram a, pelo sim, pelo não, reconciliar-se com os céus.
Ele nasceu no Rio no ano em que Cesar Maia se casou no Chile. Quer dizer, ele diz, “nunca vivi na Cidade Maravilhosa”. Formou-se em direito na PUC/RJ quando parte da turma fazia planos de ir embora para São Paulo. Foi assaltado oito anos atrás em seu apartamento no Jardim Oceânico, um condomínio fechado na Barra da Tijuca.
Por ter estudado economia no Chile, Cesar Maia achava mais fácil ler sobre assuntos técnicos em espanhol do que em português. O cosmopolitismo não o ajudou a sair do horizonte carioca da política. Nas duas vezes que ensaiou vôos políticos para fora do Rio, deu-se mal. Em 1998, Anthony Garotinho, um político de Campos dos Goytacazes, no extremo norte fluminense, derrotou-o na eleição para o governo do estado. Em 2005, ensaiava uma candidatura de oposição à Presidência da República, quando Brasília lhe atirou na retaguarda a intervenção federal nos hospitais da prefeitura. Venceu por unanimidade no Supremo a briga com o Ministério da Saúde. Mas perdeu o pé na campanha presidencial. E ganhou, de quebra, a imagem de um prefeito que ficara no cargo por falta de alternativa.
Nunca mais foi visto andando na rua em operações da prefeitura, mesmo que fosse para, cercado de repórteres, entrar em um açougue e pedir um sorvete. “Na época, eu achava que o carioca precisava me conhecer, exagerei na dose e peguei fama de maluco”, ele admitiu. Passou a tratar menos da rotina – que controlava praticamente por telepatia, com todos os números vitais do município arquivados na memória – e mais de assuntos que não diziam respeito diretamente ao seu cargo.
Lia diariamente, por exemplo, mais de uma dúzia de jornais, incluindo o El País espanhol e o ABC Color paraguaio. Redigia um boletim eletrônico que foi uma das primeiras publicações a comentar em português o golpe do bilionário Bernard Madoff no mercado financeiro. Fez 23 viagens internacionais no terceiro mandato. A maioria, pela América Latina. Na Venezuela, participou de um congresso chavista defendendo que o maior revolucionário bolivariano foi Francisco de Miranda, amigo de George Washington, Thomas Paine, Thomas Jefferson e amante de Catarina da Rússia. “Ninguém ali conhecia Miranda como eu”, ele garantiu. No Paraguai, deu palestras sobre José Gaspar Rodríguez de Francia, o Karaí Guazú, fundador do país, e sobre a irlandesa Elisa Lynch, a amante ruiva de Solano López.
Já Eduardo Paes se define como “francamente municipal”. A política, em si, não é seu forte. “Até quando era deputado federal eu fazia, nos fins de semana, o varejinho local, participando de discussões sobre a vida de bairro, e acompanhava de perto a crise do Rio.” Como subprefeito da Barra, ele frequentou reuniões no condomínio Village da Floresta, que a favela do Rio das Pedras ia cercando, à medida em que se levantava do lodo que cerca a lagoa de Jacarepaguá. Comparecia às assembléias armado com uma caneta de pequeno calibre, e verificava pessoalmente as denúncias.
Se o problema era grande, avisava na hora que estava fora de seu alcance. Prometia pouco. Foi tiro e queda quando lhe pediram para acabar com um chiqueiro na beira d’água, em nome da saúde pública. De dois em dois meses, era chamado ao condomínio para prestar contas das promessas que cumpria. Se paravam de chamá-lo, ele telefonava, marcando o encontro seguinte. A favela, não obstante, tomou conta do bairro. Mas ele tem eleitores no Village da Floresta até hoje.
Como prefeito, tem pressa de iniciar a revitalização do porto do Rio, o grande fiasco urbanístico da administração Francisco Pereira Passos, que no princípio do século passado aterrou dezenas de praias e ilhas para tapar com armazéns o que já foi a melhor vista do mar na cidade. Seus planos incluem demolir parcialmente a avenida Perimetral, um viaduto que cobre a área portuária como um tapume sombrio. Pretende instalar a prefeitura na praça Mauá, para deixar claro que a cidade, apesar das aparências, não acaba ali. Não quer fazer “mais um Puerto Madero”, imitando Buenos Aires. Prefere uma reforma como a de Boston, na Costa Leste americana, com “os armazéns conectados por telhados transparentes”.
O projeto é ousado. Mas o prefeito é cauteloso. Na praça Mauá, quatro anos atrás, Cesar Maia bateu de frente com uma ação popular, que abortou seu plano de pousar na água uma filial do museu Guggenheim, desenhada pelo arquiteto francês Jean Nouvel. Eduardo Paes evita a encruzilhada, comentando que talvez fosse o caso de encomendar a obra ao traço de Oscar Niemeyer. “Aí ninguém protesta”, disse.
Cesar Maia não tinha esse jogo de cintura. E, aos 63 anos, multiplicava a rigidez natural de seu temperamento por várias vértebras cervicais fissuradas devido ao estresse e à vida sedentária. Ultimamente, achava que as câmeras de televisão, quando saíam pelas ruas na companhia do prefeito, eram um ímã de protestos. Por isso, evitava festas, palanques e inaugurações. Esgotara a vontade de ir à praia na adolescência, quando morava em Ipanema e cursava o colégio Santo Inácio, em Botafogo, com o uniforme enfiado de qualquer maneira no corpo salgado. Em seu primeiro Carnaval como prefeito, varreu a pista do Sambódromo ao lado dos garis. No último, foi a Paris. O jornalista Nelson Motta pregou-lhe o título de “ex-prefeito em exercício”.
O sucessor vai a bar, toma chope, frequenta teatro, gosta de praia e, sobretudo, “é mesmo do samba”, para desgosto do assessor de imprensa Jan Teophilo. Com um chefe que assiste a ensaios de bateria e decora enredos, o jornalista se confessa “apavorado com o Carnaval que vem por aí”. Cesar Maia acordava às quatro e meia da manhã. Eduardo Paes levanta às seis. Só passa os domingos em casa – vendo filmes em DVD com os filhos e traçando potes de sorvete de macadâmia da Häagen-Dazs.
Por enquanto, ele goza de indulgências junto à imprensa. Sentou-se outro dia numa cadeira de rodas, em visita à quadra de basquete do Centro Integrado de Atenção à Pessoa com Deficiência, e tentou quatro vezes encaçapar a bola. Errou, mas escapou ileso do ridículo.
Cesar Maia sempre descrevia suas viagens como “de trabalho”, e dissertava a respeito delas em tom professoral. Em seu lugar, entrou um político que, ao sentar-se pela primeira vez em sua cadeira, apontando para os repórteres de televisão os porta-retratos sobre a mesa, contou seu encontro em Roma com o governador Sérgio Cabral, na visita em que nasceu sua candidatura a prefeito.
“Fomos almoçar e na volta estávamos passando pela via dei Prefetti.” A coincidência teria sido um augúrio. E ele fotografou a cena com o celular, sem notar que, em italiano, prefetto está mais para representante do poder central do que para administrador de cidade. Dias depois, ele ria tranquilamente do caso: “Só depois me avisaram que prefeito, lá, é sindaco.”
Com tantas diferenças para exibir, ele resolveu que está na hora de “acabar a campanha”, porque “a vida política gira” e “a rotina administrativa continua”. Quando pisou pela primeira vez no Palácio da Cidade, a assessora do Cerimonial Cristina Marcondes Ferraz procurou-o para declarar sua amizade a Mariangeles e Cesar Maia. Foi convidada na mesma hora a ficar no cargo. Paulo Pimenta, o administrador do Palácio, demitido em dezembro, foi renomeado em janeiro. A página oficial da prefeitura na internet manteve as obras efetuadas no período de 2001 a 2008.
“Cesar exonerou mais gente do que eu pedi, e acabei repescando boa parte da equipe”, disse Eduardo Paes. A cidade tem um “quadro de primeira”, ele acha, com gente que “dá para aproveitar em qualquer governo”. Se não fosse assim, “o Diário Oficial publicaria todo dia só os atos do prefeito”. E sai com “aquele monte de páginas mostrando que a máquina continua a fazer o que fazia antes”.
Onde não deu para manter as pessoas, preservou a linhagem. Da presidência da Comlurb saiu o engenheiro Paulo Carvalho Filho, que dirigia a empresa de limpeza urbana desde 1993, por escolha de Cesar Maia. “Botei no lugar a arquiteta Angela Fonti, ex-secretária municipal de Obras no tempo do Conde”. Em outras palavras: “Ali, blindei. Não se pode ‘brincar’ com uma companhia que mantém 13 mil garis nas ruas e varre três vezes por dia a avenida Rio Branco, mesmo se ela está sempre suja. Morro de medo que aquilo se desorganize”, disse.
Ele também excluiu do balcão das nomeações políticas as secretarias de Fazenda, Administração, Saúde e Educação. Fez, pessoalmente, seus seis subprefeitos. Tropeçou ao negociar os 33 administradores regionais que, entre outras prerrogativas, controlam os cadastros de imóveis, e arranjou um problema: a Zona Portuária, sua menina-dos-olhos, foi parar nas mãos de um indicado pela vereadora Clarissa Garotinho, herdeira de uma dinastia que se especializou em governar a bagunça.
Eduardo Paes é menos fanfarrão do que parece em entrevistas. Amigo de um lugar-comum, diz que prefere “não desarrumar o que vai bem”, porque “consertar o que vai mal é mais difícil”. Reconhece que o Choque de Ordem “tem muito de midiático”, mas nem por isso cessará a operação quando os jornalistas enjoarem do assunto: “No princípio, é pá, pum! Depois, nem tanto. Como essa história não acaba nunca, sei que vou governar uma cidade com mendigos na rua. Mas não posso desistir, exatamente porque o outro lado não desiste.”
Ou seja, o enxuga-gelo não é o oposto do Choque de Ordem, mas sua vitamina diária. “A cidade, daqui, vira uma coisa mais ampla do que violência, favela, van e mendigo. Se eu me esquecer de que ela tem também hospital e escola, vou apanhar dos jornais, com Choque de Ordem e tudo.”
O tempo não esperou dez dias para lhe dar razão. No feriado municipal de São Sebastião, faltaram plantonistas nos hospitais e postos de saúde. E O Globo cobrou: “Pelo visto, o Choque de Ordem não poderá se resumir a calçadas, praias e favelas. Terá de ser dado também em ambulatórios, guichês e balcões do serviço público.”
Se a briga política da campanha dissolve-se tão rápido em continuidade administrativa, por que não aplainar as transições, regulando por lei o que o governo que sai deve entregar ao que entra, com o mínimo de continuidade? A pergunta é do deputado Fernando Gabeira. Ele vem remoendo essas idéias desde que perdeu, por pouco, a prefeitura. E a resposta virá em forma de um projeto, que apresentará na Câmara, para regulamentar o que um governo que acaba precisa informar ao que começa, “seja amigo ou inimigo”.
Gabeira quer evitar, no futuro, bate-bocas como o do rombo de caixa da prefeitura, que a turma de Eduardo Paes estimou em 400 milhões de reais, para anunciar logo depois da posse que estava montado num saldo de 1,3 bilhão de reais. “Eu, pelo menos, não entendi essa conta”, diz Gabeira.
Para entendê-la, é preciso penetrar num bunker da prefeitura chamado Controladoria. É um dos nervos em que Eduardo Paes afirma que mexeu como se desarmasse uma bomba: “Ali, botei o Vinicius. E o Lino é meu amigo.” Vinicius Rocha Viana era, até dezembro, o subdiretor da Controladoria. E Lino Martins da Silva, o homem que criou e dirigiu até agora o sistema centralizado das contas municipais.
Cesar Maia costuma citar o pai, o engenheiro Felinto Maia, como a mão que o empurrou para o lado certo em três esquinas cruciais de sua carreira. Primeiro, quando ele se queixou do primeiro emprego, aquém de suas credenciais de economista. “Cesar, fique tranquilo”, disse-lhe o pai. “Você vai acabar dando certo, porque neste país poucos sabem as quatro operações e você sabe até regra de três.” Na mosca. O filho nunca mais perderia uma chance de mostrar que sabia mais do que os outros.
Mais tarde, como político, deu para se queixar de traições. O pai recomendou-lhe botar na gaveta, sempre à mão, os Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos, o poeta de “um urubu pousou na minha sorte”. Cesar Maia deve ter seguido muito esse conselho, porque, em 2008, quando puxava à mesa os primeiros versos do soneto – “Vês! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera” –, um coro se formava à sua volta, crescendo de tom até declamar “a mão que afaga é a mesma que apedreja”.
No caso da Controladoria, ele fez ao pé da letra o que ouviu do pai, no dia em que o governador Leonel Brizola o convidou para ocupar a Secretaria de Fazenda. Não tinha a menor idéia do que fazer com ela. “Não se assuste”, disse Felinto Maia. “Procure saber quem teve o melhor desempenho administrativo no estado do Rio. Pegue na equipe as pessoas que cuidavam do dia-a-dia e deixe tudo com elas. E vá aprendendo.” E assim Cesar Maia foi buscar seus assessores de confiança no plantel do almirante Floriano Faria Lima, o interventor que executara quase dez anos antes a fusão da Guanabara com o estado do Rio.
“Fui eu mesmo”, disse o professor Lino Martins, ao se reconhecer na história. Ele era inspetor-geral de Finanças, quando Cesar Maia o conheceu. Montou um núcleo de 400 “técnicos e não técnicos”, que fazem todos os cálculos da administração, não se vinculam a nenhuma secretaria e respondem diretamente ao controlador, que por sua vez só se reporta ao prefeito. Conclusão: “Pode passar em revista as notícias sobre a prefeitura nesses anos todos. Praticamente, não há escândalos. Basta as pessoas se convencerem de que alguém, longe de seu convívio mas sempre próximo, a qualquer momento examina todo o dinheiro que entra e sai no município.” E a consciência, como ensina o jornalista H. L. Mencken, “é aquela voz interior dizendo que alguém pode estar olhando”.
Segundo Lino Martins, os políticos pensam que a Controladoria serve para flagrar adversários, mas “sua verdadeira utilidade é pegar a tempo seus próprios erros”. Ela alimenta na internet as páginas do Rio Transparente. Mas a vereadora Andrea Gouvêa Vieira está convencida de que as contas do município são, no fundo, muito opacas. Ela prefere de longe o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal, o Siaf.
De tanto escarafunchar esses dados, ela constatou que, ano após anos, Cesar Maia mandava para a Câmara Municipal um orçamento “sem pé nem cabeça”. As contas só faziam sentido no fim de cada exercício. Os vereadores lhe davam carta branca para tirar da cartola, a qualquer momento, decisões imprevistas, como investir um terço dos recursos municipais, durante dois anos, na preparação dos Jogos Pan-americanos de 2007, a pretexto de equipar a cidade como candidata a sediar a Olimpíada de 2016. Foi assim, também, que ele gastou 518 milhões de reais na Cidade da Música, o belo monumento que o arquiteto Christian de Portzamparc concebeu na Barra para devolver “a centralidade cultural ao Rio”, como alegava Cesar Maia. Ou mostrar que o prefeito estava muito além do varejo municipal.
Cesar Maia não cabia há muito tempo no papel de xerife municipal que desempenhou na década passada, tentando aclimatar o regime da Tolerância Zero, copiado da administração de Rudolph Giuliani, em Nova York. O seu era um Choque de Ordem mais ou menos como o que está em vigor, com outro nome e a mesma opção preferencial por bater forte em quem é mais fraco. É por isso que os mendigos sempre são convocados para desfilar nessas paradas.
Ele nunca desistiu da comparação com Giuliani, mesmo quando o ex-prefeito nova-iorquino saiu de moda. “Ele tirou 800 camelôs de Manhattan e eu, 1 200 só do Centro”, repetia. Sobrou pouco de sua Tolerância Zero. Em 2000, seu filho, o deputado federal Rodrigo Maia, se aliou a Nadinho do Rio das Pedras, um incorporador das favelas que mais crescem no município. Nadinho – o paraibano Josinaldo Francisco da Cruz – elegeu-se vereador em 2004 com quase 35 mil votos. Três anos depois, foi preso por porte ilegal de arma, formação de quadrilha e a suspeita de que mandara executar o inspetor Félix dos Santos Tostes, chefe de sua milícia. Seu mais recente feito imobiliário é a Comunidade Piraquê, que brotou do nada em Guaratiba e aumentou, em oito anos, 81%.
A desordem do Rio de Janeiro se institucionalizara, como ele mesmo previa há muitos anos, citando Ralf Dahrendorf, o sociólogo da anomia. Em vez de invadir exclusivamente morros e baixadas, ocupava agora bancadas na Câmara de Vereadores e na Assembléia Legislativa. E foi presumivelmente para evitar o convívio com essas bases que Cesar Maia ficou invisível.
Primeiro, converteu-se ao e-mail. Antes, ele se comunicava muito com a equipe através de bilhetes, no estilo Jânio Quadros. Mas o bilhete precisa de pernas para circular. E o e-mail andava por sua própria conta. Livre das contingências impostas pela administração de carne e osso, adquiriu aos olhos de seus subordinados o dom da ubiquidade. “Às cinco e meia da manhã, eu às vezes estava recebendo mensagens dele”, contava seu chefe de gabinete João Marcos Cavalcanti de Albuquerque.
Ultimamente, Cesar Maira recebia quase 500 e-mails por dia. “Treinado”, dizia-se capaz de reduzir as mensagens “a um terço”, ler seu conteúdo “em segundos” e repassá-las laconicamente governo abaixo. Bastava um “SF/ cheque/ CM” para alguém na Secretaria de Fazenda entender que ele estava lhe mandando um problema às vezes de bom tamanho para descascar. Um cabeçalho do gênero “Imprima e leia pelo menos uma vez por dia! CM” condenava o destinatário a se interessar por uma entrevista do marqueteiro Andy Sermovitz, ensinando que propaganda boca-a-boca é mais convincente que a publicidade convencional. O banco traseiro de seu carro oficial, um Toyota Corolla, transformara-se numa escrivaninha móvel, com luz de leitura de haste flexível, notebook a postos na bolsa do encosto dianteiro e caneta Bic no puxador da porta.
Como se não bastasse, fazia o Ex-Blog, um boletim eletrônico com 30 mil assinantes. Entre eles, o editor Breno Arruda identificou 300 jornalistas nas redações cariocas e seis endereços diferentes no Palácio do Planalto. O prefeito lhe repassava os textos diariamente, às cinco da manhã. Publicá-los era fácil. Duro era fazer isso “sete dias por semana”.
No mundo real, havia as reuniões de secretariado, com pompa de convenção de empresa e disciplina de seminário acadêmico. Foram 384 reuniões em doze anos. Começavam no café da manhã, paravam para o almoço, beiravam com frequência a hora do jantar e uma delas, em 2001, durou 17 horas, varando a meia-noite.
Tratava-se de administração municipal. Mas nessas ocasiões Cesar Maia exibia documentários e trazia palestrantes para falarem sobre a história do Rio, a ascensão do nazismo na Alemanha ou o aquecimento global. Quando secretário de governo, o deputado Marcelino d’Almeida aproveitava o embalo das sessões para dormir. O ciclo acabou no dia 17 de dezembro, no salão Louvre 1 do Hotel Windsor, na Barra. Discutiu-se a crise da economia mundial, numa palestra do economista Sérgio Besserman Vianna que durou mais de duas horas. Antes, Cesar Maia falou da liberdade de imprensa em Karl Marx. A cadeira reservada no auditório para Jorginho da SOS, representante do Complexo do Alemão, permaneceu vazia.
Em circuito fechado, havia os almoços no Centro Administrativo – que, como suas viagens, eram sempre “de trabalho”. Apesar da reputação de “prefeito virtual”, ele despachava no gabinete cerca de sessenta processos por dia. E almoçava com sua equipe de estimação, fechando as portas aos pedidos e rapapés. A sala não tem janela. As cadeiras são de escritório. A mesa de granito azul ocupa a maior parte do cômodo estreito. A comida era requentada em forno de microondas.
Seu luxo, lá dentro, era conversar só com quem queria. Ou, melhor ainda, ser ouvido pelos escolhidos, como o cancerologista Jacob Klingerman, que, na qualidade de secretário de Saúde, jamais ouviu do prefeito um pedido de nomeação, ou do próprio Besserman, a quem, como presidente do Instituto de Urbanismo Pereira Passos, o prefeito “só pedia informação”.
O almoço do dia 10 de dezembro foi excepcionalmente longo. Acabou na hora do jantar. Deu tempo até para Maia relatar as minúcias de sua viagem ao Uzbequistão, em novembro, sem esquecer o processo educacional das escolas corânicas, as vantagens da vodca uzbeque sobre a russa e as entranhas da Samarcanda, onde repousa uma perna do profeta Daniel em um túmulo com 28 metros de comprimento, para atender às especificações da lenda de que o mártir cresceria exponencialmente depois de morto. Lá fora, nessas ocasiões, a prefeitura parecia funcionar por conta própria, acendendo e apagando 380 mil postes de iluminação pública, recolhendo 11 mil metros cúbicos de lixo por dia e ocupando 85 582 servidores municipais. Ele sabia os números de cor, até a cota de lâmpadas que podem queimar simultaneamente, antes que os cariocas começassem a protestar contra as ruas escuras. São 4 mil.
Com o Rio todo na memória, governá-lo parecia fácil. E o que não era fácil provavelmente já tinha passado à categoria dos assuntos insolúveis, como as vans, os camelódromos, as favelas e até as vagas de automóveis nas ruas, entregues a policiais, políticos, contrabandistas asiáticos e outras forças ocultas com as quais é melhor não se meter. Comandava uma prefeitura obediente numa cidade insurreta.
E, enquanto falava, não perdia de vista o garçom, de prontidão no fundo da sala, ao lado da cafeteira. Seis vezes, naquela tarde, enquanto discorria sobre outros assuntos, com um gesto imperceptível, fazia pousar à sua frente mais uma xícara de espresso. Não devia ser assim um fim de governo, pela definição do baiano Otávio Mangabeira, consagrada há mais de meio século na política brasileira. Mas, na prefeitura, por trás do café, estava Gyleno. E Cesar Maia aproveitou para apontá-lo como um funcionário público exemplar: “Está aqui todos esses anos. E nunca o ouvi dizer que um ex-prefeito tinha sobrancelha torta.”