ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Domador de gigantes
Um português surfa a Big Mama
Gian Amato | Edição 138, Março 2018
Era fim de tarde, ventava e fazia frio em 17 de janeiro na Praia do Norte, em Nazaré. A pequena vila no litoral português atrai surfistas do mundo inteiro atrás das ondas gigantes que ocorrem ali nessa época do ano graças a um desfiladeiro submarino que termina nas imediações da costa, o Canhão de Nazaré. A praia foi o palco da maior onda já surfada, com 23,8 metros – feito alcançado pelo norte-americano Garrett McNamara, em 2011.
Os big riders, como são conhecidos os surfistas de ondas gigantes, não duvidam que montanhas d’água ainda maiores podem se formar em Nazaré. Muitos perseguem o sonho de surfar a Big Mama – uma onda mítica de pelo menos 30 metros de altura, o equivalente a um prédio de dez andares. Para Hugo Vau, um português de 40 anos que há dez ganha a vida enfrentando vagalhões, não era diferente.
Do alto do Forte de São Miguel Arcanjo, dezenas de cinegrafistas e curiosos se aglomeravam para contemplar os big riders que tentavam a sorte no mar naquela tarde. Dali, os surfistas e os jet skis que os rebocavam até o pé de cada onda pareciam pontos diminutos. Foi o cinegrafista Jorge Leal quem primeiro avistou no horizonte uma série de ondas de tamanho atípico. Tratou de avisar por rádio Hugo Vau, que formava par com Alex Botelho, ora sendo rebocado por ele, ora pilotando o jet ski para o amigo. Na água havia três horas, os dois eram os últimos remanescentes no mar àquela altura.
Numa manhã recente, Vau contou ter sentido uma vibração anormal na água segundos antes de se encontrar aos pés de um vagalhão diferente de todos que ele já havia surfado em Nazaré ao longo de uma década. “Cruzou uma onda com outra e de repente dobrou de tamanho”, disse o português. Enquanto descia a temível montanha d’água, ele soube intuitivamente que aquele era um feito extraordinário. “Então a tal onda de mais de 30 metros realmente existe”, pensou consigo mesmo. A descida não durou mais de um minuto – o suficiente para ele sentir de novo o frio na barriga que o invadiu quando começou a surfar numa prancha de plástico, aos 5 anos. “Foi como se fosse a primeira vez.”
Após sair do mar, Vau recebeu cumprimentos efusivos dos amigos que estavam em terra firme, convictos de que ele havia domado a Big Mama. Estimativas sugerem que, de fato, ele surfou uma onda de 35 metros, mas o recorde precisa ser confirmado pela Liga Mundial de Surfe – que promove um evento dedicado às ondas gigantes em abril, quando pagará o prêmio de 75 mil dólares –, e homologado pelo Guinness Book.
Não há um método científico para se medir o tamanho de uma onda: o cálculo será feito proporcionalmente com base na altura do surfista (no caso, 1,80 metro), a partir das imagens registradas por Jorge Leal. Seja qual for o tamanho oficial, Vau sabe que passou a ser considerado um gigante da modalidade: “Mostrei o vídeo ao Kealii Mamala, um dos maiores big riders do Havaí, e ele chorou”, contou o português.
Hugo Vau tem os cabelos desgrenhados presos em um coque, aparelho nos dentes, barba e a pele marcada por décadas de exposição ao sol. Filho de um casal de bancários, é o único da família a ter se interessado pelo mar. Começou a ganhar a vida como professor de inglês quando já era fluente nas gírias do surfe e da pesca. Acabou por largar as aulas e comprar um barco no arquipélago dos Açores – levou um ano e meio só para reformá-lo. Custou a sobreviver da pesca. “Vamos ao mar sete dias e nada, até que em um único dia pegamos muito e quase compensa por todos os outros”, afirmou. Nesse aspecto, continuou, a atividade não é muito diferente do surfe. “Na verdade, é mais difícil”, corrigiu.
Vau lembrou que, em condições extremas como as daquele dia, o surfe pode ser mortal. No tsunami após o grande terremoto que devastou Lisboa em 1755, parte da cidade baixa foi varrida por ondas com tamanho estimado de 10 metros – menos de um terço do vagalhão encarado por ele. Há quatro anos, Maya Gabeira caiu da prancha ao surfar uma onda gigante em Nazaré e saiu do mar inconsciente e com o tornozelo fraturado (este ano, a brasileira voltou à Praia do Norte pela primeira vez desde o acidente e surfou uma onda de estimados 24 metros de altura, um dia depois do feito de Vau). O português sabe que a morte está à espreita a cada onda gigante. “Mas na Big Mama eu estava mais vivo que nunca”, afirmou. “O maior troféu em Nazaré é conseguir ir e voltar.”
O português é fã de Raul Seixas – e das metáforas que envolvem seu ofício. Ainda em Nazaré, poucos dias após surfar a Big Mama, ele compartilhou pelo WhatsApp a canção Metamorfose Ambulante, que considera uma síntese de sua trajetória. “Não tenho ideias feitas e estou sempre mudando”, comparou. “Exatamente como o mar.”
Semanas depois do possível recorde, Alex Botelho já estava novamente a rebocar Hugo Vau, só que agora pelas ruas de Lisboa, na manhã da segunda-feira de Carnaval. O surfista de 28 anos natural do Algarve assumiu o volante do Mercedes-Benz após entregar ao colega um pacote de castanhas quentinhas. O carro é um oferecimento do principal patrocinador de Vau e transportava a dupla na capital enquanto eles pescavam mais patrocínios em reuniões intermináveis.
Mas o português tende a ficar áspero longe do mar. Em tom seco, admitiu que sente falta da água. “Para sustentar a vida de surfista, tenho que ser quase um businessman”, explicou. “Não é o que eu gosto de fazer, mas…”
Vau seguiria naquele dia mesmo rumo ao Porto para mais um compromisso publicitário. Atuaria como embaixador de uma rede de hotéis de luxo, e as fotos do evento seriam publicadas no Instagram. A descrição de seu perfil na rede social enaltece a vida simples, mas promover a riqueza não parece ser motivo de conflito para o português. “Já tenho o que o dinheiro não compra, e posso ser humilde com 100 milhões de dólares”, desconversou. “Já ouviu Ouro de Tolo?”, perguntou o surfista, referindo-se à canção em que Raul Seixas questiona a fama e a fortuna acumuladas como artista. “É por aí.”