João Cabral de Melo Neto, em 1968: o poeta se transfigurava em Sevilha, tornando-se um homem alegre e boêmio, adorado pelas pessoas da cidade CRÉDITO: HIROTO YOSHIDA_1968
Don Juan em Sevilha
A temporada de João Cabral de Melo Neto em sua cidade preferida
Ivan Marques | Edição 182, Novembro 2021
Segundo Clarice Lispector, o imponente Hotel Inglaterra, em Sevilha, parecia um cenário do filme Casablanca. Ladrilhos, ventiladores, palmeiras, uma claraboia no salão central, tudo isso compunha, na lembrança da escritora, um ambiente de “polidez e calor”. A visão que se tinha do terraço era impressionante. A frente dava para a Plaza Nueva. A poucos metros, avistavam-se a catedral, a torre da Giralda e a Maestranza, a praça de touros mais antiga da Espanha, construída no século XVIII. “Parece um cenário de filme passado em Casablanca, sim, mas no princípio do século”, emendou o poeta João Cabral de Melo Neto na resposta enviada à amiga, que então residia em Washington. Depois de dois dias no Inglaterra, o poeta resolveu se mudar para outro hotel no centro histórico, o Madrid, que lhe pareceu mais autenticamente espanhol.
João Cabral chegou à capital da Andaluzia, de automóvel, em 24 de abril de 1956. Era uma chuvosa noite de terça-feira. “Sevilha é uma cidade pequena, porém fabulosa”, escreveu a Stella, sua mulher, que permanecera no Rio de Janeiro para organizar a mudança e a viagem da família. Saudoso das touradas, logo na primeira semana o poeta foi até a cidade de Jerez, a Oeste da Andaluzia, para ver uma corrida da ganadería de Pablo Romero, famosa por seus toros de lidia.[1] Na ocasião, apresentaram-se Rafael Ortega e Antonio Ordóñez, matadores conhecidos, que não o surpreenderam. Sobre o último, a opinião de João Cabral, registrada no poema Alguns Toureiros, não era lisonjeira: perfume de renda velha,/de flor em livro dormida.
Enquanto se encontrava no Rio, sem dinheiro – “lutando como um desesperado para que me dessem um posto [no Itamaraty]”, como escreveu a Lauro Escorel –,[2] João Cabral nem sequer sonhava que o mandariam outra vez para a Espanha. Um posto em Sevilha, cidade que ainda não conhecia, era algo inimaginável. Estava ansioso para sair do Brasil. Quando assinaram a nomeação, não conseguiu esperar mais nada. Entre a publicação do decreto e sua partida, decorreu apenas uma semana. A Tribuna da Imprensa[3] ficou em silêncio, mas não faltou quem soltasse uma nota maliciosa. “Finalmente, após vários anos retido no Rio por ser simpático ao credo comunista, foi nomeado para a Espanha o cônsul-poeta João Cabral de Melo Neto: Franco[4] não gosta muito das ideias do seu novo hóspede”, comentou no início de abril a revista O Mundo Ilustrado.
Em vez de dar destaque à transferência, o jornal de Carlos Lacerda achou mais curioso divulgar uma nota sobre a venda da tipografia de Cabral,[5] motivada pela viagem. Disputada, segundo o jornal, por vários intelectuais e artistas, a prensa acabou indo parar nas mãos da escritora Elza Bebiano, que a doou ao Priorado da Virgem, um mosteiro de monjas beneditinas localizado em Petrópolis. Em Sevilha, ao escrever para o português Alberto de Serpa, com quem tinha editado a revista O Cavalo de Todas as Cores, João informou que se desfizera do equipamento por necessidade, após ter ficado longos meses fora do Itamaraty. “Melhor vendê-la do que vender-se”, comentou.
O risco de constrangimentos de natureza política, previsto pelo redator de O Mundo Ilustrado, de fato existia. Resolvido o problema com Lacerda, o Itamaraty continuou procedendo com cautela. Para evitar uma reação negativa da ditadura franquista, por João Cabral ter sido acusado de comunista, a solução encontrada pelo ministro Macedo Soares, que era historiador, foi lotá-lo tecnicamente em Barcelona, como cônsul adjunto, mas comissioná-lo para fazer pesquisa histórica sobre o Brasil. Dessa maneira, ele ficaria temporariamente afastado da vida consular. “O senhor não vai ser cônsul”, disse-lhe o ministro, “o senhor vai morar em Sevilha para fazer pesquisas no Arquivo Geral das Índias.”[6] Como Brasília estava prestes a ser construída, o pretexto que se arranjou foi a conveniência de o governo estar preparado para eventuais disputas de fronteira com os países vizinhos. João Cabral recebeu então o encargo de levantar o material sobre o Brasil e a América Latina existente no arquivo de Sevilha, que na época ainda não possuía consulado brasileiro.
O poeta não viajou diretamente para a Espanha. Por sugestão de Otto Lara Resende, desembarcou primeiro em Paris, com o objetivo de comprar um automóvel. Hospedou-se no luxuoso Hôtel Vernet, próximo da Avenida dos Champs-Élysées, no oitavo arrondissement. Evaldo Cabral de Mello, seu irmão,[7] vivia desde o ano anterior em Madri, com uma bolsa do Instituto de Cultura Hispânica, e foi encontrá-lo na França. Na época também estudavam na Espanha dois companheiros de sua geração literária no Recife, Paulo Fernando Craveiro e Félix de Athayde. Este último, também poeta, se tornaria a partir de então um dos amigos mais próximos de João Cabral.
Na madrugada de 13 de abril, os dois irmãos partiram para Barcelona, no sofisticado Chevrolet Bel Air, de cores cinza e branca, adquirido pelo poeta em Paris. A extravagância não lhe custou pouco dinheiro. Em carta a Stella, ele atribuiu a Otto a responsabilidade pelo rombo em suas finanças. Na primeira noite, os viajantes dormiram em Carcassonne, uma cidadela medieval do Sul da França. No dia seguinte, chegaram a Barcelona, a tempo de assistir à corrida de touros do domingo, e se hospedaram no hotel Majestic, no Passeig de Gràcia.
O reencontro de João Cabral com Barcelona foi surpreendente.[8] A cidade, em todos os aspectos, lhe pareceu melhor, como se tivesse progredido dez anos em cinco. Joan Miró o convidou para almoçar em sua casa. No ano anterior, havia pedido notícias dele ao poeta Murilo Mendes, com quem Miró se encontrara em Paris. Tinha planos para novas edições do ensaio escrito por João Cabral a respeito de sua obra.[9] Ao encontrar o pintor no hall do hotel, Evaldo ficou admirado não só com a simpatia, mas com a baixa estatura de Miró. O garçom Pepe Martínez[10] tinha se transferido para Madri, levado pelo toureiro Julio Aparicio. Na correspondência com Stella, João também deu notícias a respeito de outros amigos e dos lugares que frequentavam, como a Macarena, tradicional tablado de flamenco, e a taverna Venta del Charco de la Pava, que se transformara num salão de bilhar.
Depois de uma semana em Barcelona, os viajantes seguiram para Madri, onde se despediram. João tomou sozinho a estrada, dirigindo mais 530 km até Sevilha. Durante todo o percurso, desde Paris, a viagem foi acompanhada pela chuva. O poeta engoliu altas doses de vitamina C e resistiu o quanto pôde ao mau tempo. Entretanto, após a chegada a Sevilha, sentiu-se muito mal e, com 39ºC de febre, foi obrigado a procurar um médico. Também vinha sofrendo de dores de estômago, que a princípio atribuíra ao vinho francês. Seu medo era estar desenvolvendo uma úlcera. Para João, todos esses incômodos eram agravados pela vida de turista, sempre de passagem pelos lugares. “Estou louco para voltar a morar em casa”, reiterava sempre à esposa. A hospedagem em hotel, que o deixava irritado, se prolongaria ainda por mais de um mês. Nessas condições, ele nem conseguia ler. Sorte dele que a cidade era convidativa para os passeios. “Sevilha é a única cidade do mundo onde me parece agradável trocar pernas pela rua”, escreveu.
João Cabral demorou para conhecer a Andaluzia e sua capital, Sevilha. Quando residia em Barcelona, visitara Madri e o Norte da Espanha, além de percorrer a Catalunha. Por causa da distância, porém, não tinha se disposto a viajar até Sevilha. Mas sempre fora encantado por sua música popular, o flamenco. O fascínio que sentia era menos pela paisagem andaluza do que por sua riqueza humana e cultural. Outras cidades da região também o atraíam, como Huelva e Cádiz. Embora diferente da capital, a austera Córdoba, visitada logo nos primeiros dias, lhe parecia ter a mesma força andaluza. Nada, porém, suplantava a beleza de Sevilha, para ele a cidade mais encantadora da Espanha – embora a Espanha verdadeira, a seu ver, nada tivesse a ver com Sevilha.
Ao viajar por Castela e pelo Norte do país, partes secas, o poeta pôde se deparar com muito de sua própria terra pernambucana. As regiões da Mancha e de Aragão o fizeram evocar diversas vezes o Nordeste brasileiro – afinidade que passaria a explorar em sua poesia, a partir de Paisagens com Figuras. João achava que a aridez da meseta castelhana, próxima a Madri, poderia ser comparada à que se encontrava no sertão e no agreste. A Andaluzia, ao contrário, era uma região úmida, a mais fértil do país. Em sua visão, Sevilha era uma cidade profundamente feminina, oposta à aspereza masculina das paisagens secas do Nordeste brasileiro e da Espanha. Na Andaluzia, ele se encontrava diante de uma paisagem realmente estrangeira, que tanto atraía como assustava. Com o tempo, o brilho dessa outra Espanha também o cativaria.
Para João Cabral, Sevilha foi uma revelação – depois do Recife, passou a ser sua cidade preferida. Como a capital andaluza não era grande, rapidamente pôde conhecê-la de um extremo a outro. Tinha o hábito de caminhar durante horas a esmo, indo e vindo por suas ruas estreitas. A cidade lhe parecia tão íntima que era como se andasse no corredor de sua casa. A afinidade foi ressaltada já na primeira carta enviada de Sevilha a Lauro Escorel, em maio de 1956:
É a cidade mais simpática que vi em minha vida. Pequena, à l’échelle humaine [na escala humana], toda gente se conhece, anda a pé, todas as mulheres dançam sevilhana e todos os homens entendem de corrida de touros. Sinto-me no meu elemento. E com grandes planos literários por cima – evidentemente limitados à poesia porque já não me dispersarei escrevendo ensaio de prosa.
Encontrar casa grande, boa e mobiliada não foi tarefa simples. A primeira que lhe interessou ficava a 4 km do Centro, em Heliópolis, um bairro sossegado, com parques e colégios próximos para as crianças. O problema era o valor cobrado pela dona do imóvel: 7 mil pesetas por mês. “Como não gosto do 7 e ela não quis deixar por 6, desisti”, contou o poeta. Logo depois, porém, a dificuldade de encontrar outro lugar que lhe agradasse o fez voltar atrás e abrir mão do capricho. O endereço era Calle Bolivia, nº 29. Cercado de jardins, o chalé de paredes brancas tinha espaço de sobra – dois pavimentos grandes acrescidos, na parte superior, de outros dois menores – e ficava isolado numa esquina, perto de um canal que levava ao Rio Guadalquivir.
Arranjada a casa, faltava ainda aguardar a vinda da família. Para que a viagem não fosse adiada, o poeta dava notícias alarmantes a respeito do seu estado de saúde. O estômago, que havia melhorado, voltou a ficar péssimo. Segundo ele, a gastrite se transformara em úlcera e, a continuar a dura vida de hotel, longe do ambiente familiar, temia que a úlcera se tornasse um câncer. Stella ouvia as queixas com a paciência de sempre e seguia desempenhando suas funções. Apenas em 16 de junho, após quase três meses de separação, a família chegou à Espanha.
João estava ansioso para organizar sua vida e voltar a escrever poesia. Em carta a Lauro Escorel, disse que só pretendia fazer poemas por mais nove anos, isto é, até os 45: “Porque em geral, a essa idade, vem a arteriosclerose cerebral e nos transformamos em Gilbertos Freyres.” Achava que, depois dos 45, o escritor apenas se repetia, e citava como exemplo Carlos Drummond de Andrade. Também estava curioso por receber recortes dos jornais brasileiros, com a repercussão de Duas Águas, e manifestou sua alegria ao saber da opinião favorável de Escorel sobre Morte e Vida Severina: “Se você topa também a segunda ‘água’ – me pareceu sempre que você não havia gostado de O Rio –, é porque a coisa não é tão somente concessão ao relaxado, como às vezes me ocorre pensar.” Relatou ainda estar aproveitando as horas vagas para aprender árabe. Queria ler no original a poesia árabe, que lhe parecia fabulosa, apesar das traduções ruins: “É a poesia mais plástica, visual e objetiva que conheço.”
Nesse mês de junho, João escreveu também a Afonso Arinos de Mello Franco. Contou que estava gostando daquela cidade “amável e graciosa” e que se sentia animado para escrever poesia. “Tenho trabalhado em novas coisas, com bastante entusiasmo. Creio que de O Rio para cá é que comecei a escrever poesia.” Seu maior desejo era que o Itamaraty o esquecesse em Sevilha.
De início, quase não pôs os pés no Arquivo Geral das Índias. Enquanto a vida esteve de pernas para o ar, não conseguiu se dedicar a nenhum trabalho. Sua única providência foi contratar um auxiliar de pesquisa para fazer um levantamento preliminar. Com o tempo, porém, a paixão por história o deixou cada vez mais interessado na documentação inesgotável que tinha à sua disposição. Durante meses, iria todas as manhãs ao prédio renascentista localizado no centro histórico de Sevilha. Às vezes apareciam logo cedo “enxames de batinas negras”, invadindo todas as mesas. Eram os “padres sem paróquia”, a quem o poeta dedicaria mais tarde um poema – padres recém-ordenados que ali matavam a manhã, “fingindo pesquisas para nada”. Havia muitas vantagens em poder estar em Sevilha como pesquisador, sem chefes e sem “caceteações” de consulado. Mas a situação também tinha inconvenientes, conforme relatou o poeta a Clarice Lispector. “Posso passar dias sem trabalhar, mas posso também, como nestas últimas semanas, ficar dias e dias mergulhado entre documentos, gastando-me intelectualmente com eles.” Em tais circunstâncias, o plano de escrever o máximo de poesia, “quase schmidtianamente”,[11] acabou indo para o brejo. A mesma queixa foi feita a Lauro Escorel. A pesquisa no Arquivo Geral das Índias o absorvia mais do que o trabalho mecânico da burocracia consular. Tomava-lhe não apenas o tempo, mas sobretudo sua energia mental. Não fosse isso, Sevilha teria realizado seu ideal como diplomata: “Um posto agradável, calmo, onde pudesse somente escrever.”
A Semana Santa em Sevilha durava seis dias. De segunda a sábado, dezenas de confrarias chegavam ao Centro da cidade. A cada dia, seis procissões percorriam o trajeto da Calle Campana até a catedral. Primeiro vinha o estandarte da confraria; depois os penitentes encapuzados, carregando grandes velas acesas; em seguida o andor de Cristo, seguido por outros encapuzados; finalmente, a apoteose, que era o andor da Virgem, com a banda de música logo atrás. Por último vinha o povo. As procissões tinham início às três da tarde e se estendiam até a madrugada. Avesso ao catolicismo, João Cabral dizia que a única coisa capaz de lhe dar um certo sentimento religioso era a Semana Santa em Sevilha. Um detalhe o deixou impressionado: a imagem do Cristo, que todas as confrarias exibiam em tamanho natural, era a de um homem maduro, de quarenta anos, mas a da Virgem era de uma moça, que parecia sua filha. Na opinião do poeta, o sevilhano, muito mulherengo, tinha um interesse quase sensual na Virgem.
Fundada pelos iberos, conquistada pelos romanos e depois transformada em capital de um reino muçulmano independente, a capital da Andaluzia foi uma das cidades mais ricas do mundo. No tempo das navegações, de lá saíram os conquistadores do Novo Mundo. No porto de Sevilha desembarcavam os galeões com os tesouros que vinham das Américas. As casas mouriscas e sevilhanas tinham uma fachada rústica, sem qualquer interesse arquitetônico. As paredes, quase sem janelas, eram rebocadas e caiadas. Todavia, quando adentrava as casas, João Cabral tinha uma surpresa ao ver o esplendor do pátio interno, todo azulejado. No Recife, o comum era apenas a fachada ser revestida de azulejos. Já em Sevilha – a exemplo do que se via em Tânger, no Marrocos, e em outras cidades do Norte da África, que ele passou a visitar regularmente –, a função do azulejo era refrescar o interior das casas. O árabe, pensou o poeta, vivia “para dentro”. Não tinha interesse em mostrar ao público seu harém e suas riquezas.
Pela Calle Sierpes, a principal da cidade, batizada com esse nome por seu traçado serpenteante, em vez de reto, o poeta caminhava todos os dias. No princípio da rua havia o café Los Corales, onde ele gostava de tomar o primeiro chope. Depois seguia em direção ao La Campana, no outro extremo da via. Entre os dois endereços, no meio da Calle Sierpes, se localizava o Real Círculo de Labradores, o clube mais sofisticado de Sevilha, que ele também frequentava. O clube era fechado, mas, por ser diplomata, João foi admitido como sócio.
Foi no Los Corales que conheceu Juan Belmonte, o célebre toureiro sevilhano – o primeiro que ousou pisar no terreno do touro, como diziam os espanhóis, renovando completamente o antigo modo de lidiar. Famoso desde 1913, Belmonte estava com mais de 60 anos. Era fazendeiro e, sempre vestido de branco, ia com frequência à Calle Sierpes, para se encontrar com outros matadores aposentados.
Embora a capital andaluza fosse a terra dos toureiros, as corridas de touros ali eram menos frequentes que as de Madri e Barcelona. Ocorriam apenas em temporadas especiais. Na Feira de Sevilha, a Plaza de Toros de la Maestranza recebia os matadores mais importantes da Espanha. O toureiro preferido de João Cabral era cordovês, mas tinha sido na praça sevilhana que Manolete obtivera sua consagração. Para compensar a falta de corridas, o poeta visitava assiduamente as cidades próximas. Em Córdoba, ele viu tourear seu amigo Julio Aparicio e foi visitá-lo ao final do espetáculo.
A entrada do touro na arena podia ser comparada com uma enchente, disse João Cabral ao poeta Décio Pignatari, que em junho de 1956 se hospedou em sua casa. “A enchente acontece de repente”, explicou. “De repente o rio incha e invade a cidade.” Assim também era, segundo ele, a entrada do touro: algo previsível e, ao mesmo tempo, sempre novo e emocionante.
Pignatari estava na Europa desde 1954, vivendo a duras penas, com uma parca mesada paterna. Em Paris, tivera contatos com o músico Pierre Boulez. Em Ulm, na Alemanha, conhecera o poeta Eugen Gomringer, secretário de Max Bill, pioneiro da arte concreta que havia participado, em 1951, da 1ª Bienal Internacional de São Paulo. Na Itália, grávida do primeiro filho, sua esposa, Lilla, decidira voltar ao Brasil. Pignatari tinha permanecido na Europa e, antes de retornar, passou pela Espanha.
Durante os passeios, João falava do seu Chevrolet Bel Air “como se fosse nome secular de alguma nobiliarquia automotiva”, escreveu Pignatari. Eram constantes seus elogios ao carro, que ele considerava um Cadillac mais econômico, de menor sofisticação, escolhido para evitar olhares mais críticos em relação ao Itamaraty. Todavia, Pignatari notou que, para os sevilhanos, se tratava mesmo de um Cadillac. Todos paravam embasbacados diante do enorme rabo de peixe, um dos poucos em circulação em Sevilha.
Embora admirasse o tamanho acanhado da cidade, onde não havia tantos automóveis, João muitas vezes ousava meter sua banheira nas ruas apertadas. Às vezes tinha dificuldade para manobrar o carro ou para introduzi-lo numa via muito estreita. Foi o que aconteceu na presença de Millôr Fernandes, outro visitante em seus primeiros meses em Sevilha. Ao vê-lo naquela agonia, dirigindo aos trancos e barrancos pela cidade, Millôr não perdeu a piada: “É o próprio barbeiro de Sevilha.” A mesma brincadeira seria feita pelo diplomata João Augusto de Araújo Castro, que também saiu apavorado de uma aventura automotiva, cheia de barbeiragens, com João Cabral.
No final de 1956, João Cabral enviou a Drummond e sua mulher, Dolores, uma mensagem brevíssima, escrita num cartão da Cueva de los Amayas: “Aos caros padrinhos, com os melhores votos para 1957.” A famosa casa de flamenco se localizava no bairro Sacromonte, em Granada, a cidade andaluza da qual ele menos gostava porque, a exemplo de Salvador, na Bahia, lhe parecia muito cenográfica. Alguns meses depois, um novo cartão-postal – dessa vez do Concurso de Balcones, que tradicionalmente ocorria durante a Feira de Sevilha – seria enviado, com uma saudação igualmente telegráfica: “Aos caros padrinhos, com o melhor abraço de Stella e João Cabral.” Na mesma época, outro bilhete enviado de Sevilha, apresentando o escritor Eduardo Portella, encerraria de vez a correspondência entre os dois poetas, mantida desde 1940.
Em junho de 1957, Stella embarcou, sozinha, para o Rio de Janeiro, a fim de participar da 16ª Conferência Mundial da Associação Mundial de Bandeirantes,[12] que seria realizada no Hotel Quitandinha, em Petrópolis. Entre os objetivos da viagem estava também a resolução, no Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (Ipase), de pendências relativas à dívida do apartamento de Botafogo, no Rio de Janeiro, que fora alugado a Eduardo Portella.
Naquele ano, o verão em Sevilha foi dos mais ardentes. Quase todos os dias, a temperatura ultrapassava os 42ºC. “O calor aqui está com a peste”, relatou João à esposa. Do Rio de Janeiro, Stella partiu diretamente para Roma, onde participou, em outubro, de outro congresso de bandeirantes. Nesse ínterim, João fez viagens a Tânger e a Cádiz, que, mesmo cheia na estação mais quente, ele considerava uma delícia de cidade. Além da praia de areia fina, Cádiz possuía museus com telas de Goya e Zurbarán e tabernas onde se ouvia flamenco. Lá ele também gostava de comer mariscos.
Aproveitando as férias escolares, os meninos passaram a frequentar aulas de equitação no Real Club Pineda. As aulas começavam às oito da noite, mas, no dia de montar, a ansiedade era tanta que Rodrigo, então com 10 anos, e Luís, perto de completar 8, vestiam o uniforme já ao meio-dia. Isabel, com apenas 2 anos, também se arriscou a montar. “Eu é que ainda não pude começar”, escreveu João.
Para as crianças, além de lembrar os tempos felizes de Carpina,[13] o clube era um alívio para a carga horária puxada do período letivo. No colégio de freiras onde estudava Inez, sua filha mais velha, as aulas tinham início às sete da manhã e se estendiam até as sete da noite. A menina não se dava bem com as religiosas e não perdoava Stella por tê-la matriculado naquela escola. Os desentendimentos entre mãe e filha se tornariam frequentes.
De Sevilha, João Cabral encaminhava à esposa os boletins com as notas das crianças nos exames. Stella era responsável por tudo que dizia respeito à educação dos filhos. Dela dependia, na verdade, todo o funcionamento da casa. Sem a esposa, a existência do poeta desabava. Quando ela voltava, tudo entrava nos eixos.
De manhã, o poeta dava um pulo no Arquivo Geral das Índias. Tinha que supervisionar o trabalho de pessoas contratadas para auxiliá-lo na pesquisa sobre as fronteiras espanholas do Brasil. Mas a maior parte do trabalho ele realizava em casa, onde fazia anotações em numerosas fichas. Além da documentação do Arquivo Geral das Índias, ele também consultava outras fontes. Frequentemente tinha que correr atrás de livros. Quando Lauro Escorel deixou a Embaixada do Vaticano rumo a Buenos Aires, seu novo posto, João foi encontrá-lo em Madri. Um mês depois, o amigo mal se acostumara à cidade e o poeta não hesitou em incomodá-lo, solicitando os dois tomos do livro Campaña del Brasil: Antecedentes Coloniales, uma coleção de documentos impossível de encontrar na Espanha.
Enquanto João trabalhava, era preciso que o ambiente doméstico estivesse no mais absoluto silêncio. Como as crianças estudavam em tempo integral, o sossego estava garantido e ele podia se concentrar em suas fichas. Tudo era feito conforme seu gosto e suas preferências. Ainda assim, não era difícil vê-lo com os nervos à flor da pele dentro de casa. Nesses momentos de irritação, mesmo que houvesse visitas, João não controlava os rompantes, conforme puderam observar Décio Pignatari e Evaldo Cabral de Mello.
Antes de retornar ao Brasil, Evaldo esteve um mês em Sevilha, hospedado na casa do irmão. A experiência de testemunhar, mais de uma vez, sua permanente inquietação e as tensões que ele criava no convívio doméstico não lhe deixou nenhuma dúvida: Stella, além de ser seu braço direito, dedicava ao marido a paciência de uma santa. Na hora das refeições, eram frequentes as reclamações sobre a qualidade da comida. O poeta comia pouco e, de ordinário, resmungava diante do que lhe serviam à mesa. “Isso faz mal para o fígado”, dizia. Pratos gordurosos, nem pensar. Tinha saudade do que comia no Recife, na casa dos pais. Sentia falta de feijão e farinha – alimentos que Félix de Athayde, o sempre prestativo companheiro de geração de Evaldo, prometeu lhe arranjar com uma tia pernambucana. A mania de dizer que tudo era uma porcaria às vezes conduzia o poeta a exageros. Evaldo estava presente no dia em que ele, para surpresa de todos, atirou para o alto o prato de comida servido pela copeira. Durante algum tempo, restos de alimento ficaram grudados no teto, que era baixo. As crianças, depois do susto, começaram a achar graça, apontando para cima. Ao entrar na sala de jantar, Adela Sanchez, a cozinheira portuguesa contratada quando a família morou em Barcelona, ficou boquiaberta, sem compreender como alguém pudera fazer uma imbecilidade daquelas.
Adela era uma excelente cozinheira, e os visitantes sempre iam cumprimentá-la. Fazia pratos elogiados de culinária portuguesa, como a pescada arrepiada. Quando havia convidados para o jantar, os meninos eram proibidos de comer à mesa. Para consolá-los, ela preparava especialmente para eles “passarinho frito” – bolinho frito em formato de pássaro, moldado com purê de batatas –, dizendo que se tratava de comida de rei. Também lhes contava casos da própria infância, em Évora, quando usava cabelo curto e era chamada de “rapaz com saias”. Dizia que sabia atirar pedras, tinha ótima pontaria e não levava desaforo para casa. Na condição de empregada, porém, já com quase 60 anos, era obrigada a engolir as variações de humor dos patrões.
Outra queixa constante de João Cabral era o frio. O chalé da Calle Bolivia, que a princípio estava disponível apenas no verão, teve seu aluguel prorrogado por vários meses. Mas a casa não tinha calefação, o que, para ele, constituía um grande defeito. No primeiro inverno passado na cidade, a alternativa foi utilizar a mesa camilla, aquecida por um braseiro –[14], engenhoca que contribuiu para estimular sua produção literária, conforme relatou a Lauro Escorel. Para resolver de vez o problema, a família se mudou para outro chalé, equipado com aquecimento central. O endereço era bem próximo, Calle Lima, nº 20. Nessa casa, maior do que a primeira, cada um dos meninos podia dormir em seu próprio quarto.
Foi na Calle Lima que a família ouviu, em junho de 1958, num radinho de pilha, a final da Copa do Mundo na Suécia, a primeira conquistada pelo Brasil. A festa foi tão grande com a vitória de 5 a 2 da seleção de Pelé, Garrincha e Didi, entre outros craques, sobre a equipe da Suécia, que no final da partida todos pulavam de alegria. Na Espanha, em vez de torcer para os grandes times, como Real Madrid, Atlético ou Barcelona, João preferiu dar seu apoio ao Real Betis Balompié, de Sevilha. Conservava-se, assim, fiel ao seu histórico, que alguns consideravam masoquista, de torcedor de times menores. Na verdade, o futebol espanhol estava longe de interessá-lo como o toureio. Por brincadeira, costumava dizer que havia apenas duas coisas na Espanha de que não gostava: futebol e paella.
Nesse novo verão em Sevilha, João compreendeu por que os andaluzes tinham fama de abúlicos e, em carta a Clarice Lispector, disse que se sentia já “irremediavelmente estragado”. Com a presença de Stella, a família dessa vez pôde passar as férias em Estepona, uma praia imensa e exuberante situada entre Málaga e Cádiz. “Como vai esse inveterado playboy das águas do sur?”, perguntou Félix de Athayde ao escrever de Madri a João Cabral.
O descanso veio compensar o exaustivo trabalho de finalização da pesquisa no Arquivo Geral das Índias. Dois anos depois da chegada a Sevilha, o poeta havia concluído o levantamento dos papéis referentes ao Brasil. Um enorme tempo foi consumido na organização do relatório, especialmente nos últimos meses. O inventário, compreendendo documentos de 1493 a 1830, era o maior realizado até então por um brasileiro em um arquivo da Espanha.
“O poeta não é bom apenas no verso, mas no que lhe dê na telha”, escreveu Drummond em junho de 1958, em sua crônica no Correio da Manhã, ao noticiar brevemente o fim da pesquisa. Durante anos, o Itamaraty não deu bola para o relatório. Apenas em meados da década de 1960 o trabalho seria publicado: um catatau de 779 páginas, intitulado O Arquivo das Índias e o Brasil. Na introdução do volume, o historiador José Honório Rodrigues considerou o desempenho de João Cabral “primoroso, no método, na colheita e no resultado”. E arriscou dizer que o contato com os documentos históricos, fazendo-o reviver velhas coisas, teria produzido no autor uma emoção romântica: “O mistério da vida, da morte e do tempo deve ter excitado sua imaginação de poeta.”
No popular bairro de Triana, todos conheciam Don Juan, frequentador de arenas e cabarés, amante do cante jondo, amigo de inúmeros cantores e bailarinos de flamenco. Dono de um deslumbrante Chevrolet, enorme como sua simpatia, que não cabia nas ruas sevilhanas. Era o poeta e cônsul brasileiro João Cabral de Melo Neto. Pregunten a Juan, era comum que dissessem quando alguém precisava de informações sobre a cidade, que ele estudara de ponta a ponta. Outrora encabulado, João Cabral em Sevilha se transfigurava. Os ternos claros, que então passou a usar, eram um dos sinais da metamorfose. Na capital andaluza, tornava-se um homem alegre e boêmio, adorado por todos.
Depois da Plaza Nueva, atravessando-se a ponte sobre o Guadalquivir, desaparecia a Sevilha monumental do centro histórico, o Casco Antiguo, e tinha início a Sevilha popular de Triana, habitada pelos ciganos. Ali João passava tardes inteiras nas bodegas, tomando manzanilla e xerez, os vinhos da Andaluzia. À noite, desfrutava dos cabarés e tablados. Em sua primeira vivência na Espanha, o poeta estivera em casas de fiestas e se tornara admirador do flamenco. Os catalães, não muito apreciadores do canto flamenco, estranhavam que ele frequentasse esses lugares, que, porém, não o haviam marcado tanto naquele período como a tauromaquia. Em Sevilha, João percebeu que a música e a dança flamencas que havia admirado em Barcelona eram encenações para turistas. Na Andaluzia, finalmente poderia conhecer de fato, em seu berço, o flamenco. Diante da oferta abundante e autêntica, sentiu-se como um peixe na água.
Com intelectuais, à exceção dos historiadores que o ajudaram no Arquivo Geral das Índias, João Cabral teve pouco contato nesse período. Não havia grandes escritores morando em Sevilha. O mais importante era o ensaísta e poeta Joaquín Romero Murube, que lhe deu permissão para ler nos jardins do Alcázar,[15] do qual era diretor. Também faziam falta boas livrarias, sendo as locais não muito sortidas. A saída foi frequentar as bibliotecas da Casa Americana e do Instituto Britânico. A literatura inglesa, bem mais que a espanhola, preenchia seu tempo de leitura, conforme relatou a Clarice Lispector. Outros livros ingleses eram encomendados às livrarias de Madri, por intermédio de Félix de Athayde.
O escasso contato com letrados e letras da Espanha foi compensado pelo convívio com a graça, o espírito e a verve do andaluz. Quando não estava trabalhando, João Cabral saía pelas ruas em busca dessa Sevilha profundamente popular. Seus amigos eram a gente do flamenco. No meio dos ciganos, que as classes superiores viam como marginais, encontrou sua roda.
Após esse intenso convívio, diria que, para ele, Federico García Lorca havia perdido um pouco de originalidade.
No ambiente esfumaçado, os músicos emudeciam quando a bailaora de olhar ardente batia forte com o salto no estrado de madeira. Ao som de guitarras, palmas e olés da assistência, seu corpo passava a executar a dança sincopada, selvagem – com “o caráter do fogo”, mesmo gosto dos extremos,/de natureza faminta, diria João Cabral no poema Estudos para uma Bailadora Andaluza. No Rio de Janeiro, ao ver pela primeira vez, sentado numa das primeiras filas, um espetáculo de balé, o poeta tivera uma decepção quando ouviu o barulho dos pés da bailarina tocando o chão depois do salto. Compreendera então que no balé clássico todo esforço consistia em negar a lei da gravidade. Pois no flamenco ocorria exatamente o contrário: era uma dança de “patada no chão”.
A dança e o canto de origem gitana e influência moura constituíam o ponto alto da Feira de Sevilha, cuja tradição vinha da Idade Média. Em abril, no Prado de San Sebastián, os sevilhanos armavam casetas – tendas compostas de uma varanda, uma pequena sala e um bar –, onde recebiam os amigos. João Cabral não apenas frequentava como também promovia festas, especialmente quando tinha hóspedes em casa. Nessas ocasiões, convidava sua roda de amigos – cantores, guitarristas, bailarinas –, para cantar e dançar em sua casa.
No aniversário de 10 anos de Inez, que coincidiu com os dias da Feira, a residência da Calle Lima se transformou numa enorme caseta, cheia de ciganos e toureiros. O escritor e jornalista Edilberto Coutinho ouviu na casa do poeta um cantaor interpretar, em ritmo flamenco, as canções Casinha Pequenina e Mulher Rendeira, gravada em 1957 por Volta Seca, antigo membro do bando de Lampião. As letras foram ensinadas por Rodrigo, o filho do poeta. Todos em casa, inclusive João Cabral, apreciavam ouvir os discos trazidos por Stella: Volta Seca, Luiz Gonzaga, Francisco Alves e outras lembranças do Brasil. O poeta dizia que só passara a valorizar certa canção brasileira – em especial o frevo – depois de conhecer o canto andaluz.
Se a música, em geral, lhe dava sono, o flamenco, ao contrário, o deixava sempre desperto. Arrepiava-o, ou melhor, era como se esfolasse sua pele. Depois de estudar a fundo os touros em Barcelona, Cabral adquiriu em Sevilha um conhecimento pormenorizado do canto flamenco. “É realmente algo de fabuloso”, escreveu em fevereiro de 1957 a Murilo Mendes, “e não creio que exista em nenhum outro lugar uma manifestação de arte popular da altura do cante espanhol.” Murilo concordou que o flamenco seria uma das coisas “mais reveladoras da qualidade funda da España”. Para João Cabral, a música andaluza, associando-se ao movimento da dança, se tornava visual. O flamenco era uma música que ele conseguia ver, e isso lhe agradava. Estudante aplicado, aprendeu a reconhecer os diversos gêneros: a sevillana, a malagueña, o fandanguillo de Huelva, as alegrías de Cádiz, a bulería de Jerez. Seu preferido era o cante sem acompanhamento, a palo seco – como o martinete, dos ciganos ferreiros, que era acompanhado do martelo na bigorna. Quanto às danças flamencas, de olhos fechados poderia distingui-las: as bulerías, os jaleos, os soleares, os fandangos, as seguidillas e outras variações praticadas nos bairros pobres da Andaluzia. Para os espanhóis – como o poeta e crítico de arte Rafael Santos Torroella e sua mulher Maite, que também o visitaram em Sevilha –, parecia espantoso que alguém vindo de fora chegasse a conhecer tão profundamente uma cultura que não lhe pertencia.
Para os amigos brasileiros, não poderia haver melhor guia em Sevilha. “Você está notando que aquilo não é flamenco nem aqui nem na China”, diria ele, com didatismo, ao visitante. Estava sempre preocupado em revelar a beleza do autêntico flamenco. Em resposta a uma consulta de Murilo Mendes, foi categórico. As danças jota aragonesa e pasodoble, para ele, nada tinham a ver com flamenco: “São menos flamenco do que Thiago de Mello é poesia”, sentenciou. Uma comparação semelhante foi feita na visita de Afonso Arinos de Melo Franco Filho, que na ocasião também vivia em Roma, recém-casado com Beatriz. Quando viajou a Sevilha, o casal se hospedou no chalé de João Cabral e também foi levado a bailes de flamenco. Numa noite, após a aplaudida performance de um bailarino, o poeta segredou a Afonsinho: “Esse aí ainda é o Lêdo Ivo.[16] Espere só até entrar o João Cabral.”
Acompanhado de uma bailarina, João assistia certa vez a um espetáculo de flamenco do qual participava um cantor madrilenho. “Você gosta desse cantor?”, perguntou à andaluza. A resposta negativa que ouviu foi reveladora: No se expone, explicou a moça. Era preciso cantar no extremo da voz – fazer no extremo, onde o risco começa, escreveria ele no poema Coisas de Cabeceira, Sevilha. Na visão de Cabral, era isso que aproximava o toureiro Manolete do canto flamenco. A toureiros e cantadores, atribuía ele os mesmos adjetivos: “deserto”, “desperto”, “agudo”. Em ambos os casos, o sujeito se dispunha a correr o risco máximo, que podia ser o da própria morte. Entre as flores do flamenco, crescia um “punhal oculto”, diria mais tarde em outro poema, lembrando-se de Lorca.
Durante a permanência de Stella no Brasil, Aloísio Magalhães, que vivia nos Estados Unidos, se abrigou por quase dois meses na casa do poeta. O artista chegou a Sevilha no final de junho de 1957 e permaneceu até meados de agosto. Nesse período, eles fizeram viagens – de saída, passaram uns dias em Tânger – e também conceberam projetos editoriais. Chegaram a planejar uma edição de poemas cabralinos inéditos, com ilustrações que seriam apenas manchas de cor, a ser publicada por O Gráfico Amador. Dos amigos de João, Magalhães foi o que melhor se ambientou nos tablados e cabarés. Numa de suas cartas a Stella, o hábito de tudo relatar fez o poeta cometer uma indiscrição. Disse que ele e Magalhães estavam se divertindo à beça e que, por isso, seu humor havia melhorado. “Mas não tenha ciúmes que se trata de farras secas (secas de mulheres, não de vinhos)”, acrescentou. “O Aloísio não é Souza Leão[17] e não tem o sexo na cabeça (aliás, você não tem ciúmes mesmo).”
Não foram poucas as amigas bailarinas de João Cabral em Sevilha. Depois de viver no meio do flamenco, o poeta pôde comprovar que, a exemplo do seu trisavô José Antônio Gonsalves de Mello, que chegara a trabalhar como ponto do Teatro de Santa Isabel, no Recife, também ele tinha certa fascinação por atrizes. João considerava a sevilhana, com sua pele morena, elegância e graça natural, a mulher mais bonita que tinha visto na vida. Uma de suas diversões era assistir, na Calle Sierpes, ao desfile das mulheres que andavam com saltos altíssimos, ouvindo com bom humor os piropos, tradicionais galanteios dos rapazes.
Na bailarina andaluza, o poeta não admirava apenas a sensualidade. Também o atraíam o humor e a linguagem cheia de expressões vivas e imagens concretas, originais. Uma vez, estava com uma amiga sevilhana, na calçada do bar La Campana, quando passou por perto um mendigo muito sujo. Comentário da moça: “Esse não toma banho nem debaixo de um guarda-chuva.” Em Sevilha, tal como na literatura espanhola primitiva, João encontrou um povo que se expressava com o mesmo vocabulário concreto que ele perseguia em sua poesia. Em outra ocasião, ao elogiar a beleza dessa mesma sevilhana, ouviu a seguinte resposta: “Eu, linda? Se você botar meu retrato numa cédula de 500 pesetas, não me pegam nem com uma alça.” Para todas as coisas do mundo, os sevilhanos conheciam provérbios. Também sabiam improvisar com a maior naturalidade, como se estivessem inventando movimentos no palco. Olhar e ouvir tudo aquilo deixava o poeta fascinado. Em carta enviada em março de 1958 a Lêdo Ivo, depois de pedir notícias dos amigos, João observou: “Não conto daqui porque você não conhece os personagens (e as personagens) e não haveria de apreciar o que eu contasse.” A ênfase entre parênteses valia por uma confissão, não deixando dúvida quanto à natureza das aventuras que não seriam aprovadas. Numa ocasião, voltando do colégio com a empregada, Inez viu o Chevrolet rabo de peixe cruzar a rua e chamou alto: “Papai!” A criada puxou a menina e pediu que ela calasse a boca. Tarde demais. João freou bruscamente e olhou para a filha. Estava com duas mulheres no automóvel. Em um segundo decidiu mandar embora a empregada e, com naturalidade, pediu que Inez entrasse no carro para participar do passeio, ou melhor, do programa empatado. Sevilha, que todos os visitantes amavam, não por acaso passou a ser uma cidade odiada por Stella.
Numa igreja do bairro Triana, João Cabral contou à poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen a lenda do Cristo cachorro. Estavam visitando a Basílica do Santísimo Cristo de la Expiración, na Calle Castilla. Diante de uma escultura do século XVII, popularmente conhecida como El Cachorro, do artista barroco Francisco Ruiz Gijón, João narrou a história que ouvira de um cigano. De acordo com a lenda, o modelo da obra havia sido um indivíduo de apelido El Cachorro, apunhalado pelo próprio escultor. Mas outra versão dizia que o artista apenas testemunhara o assassinato do cigano, de extrema beleza, que toda noite era visto atravessando o Guadalquivir. Na outra margem do rio, habitada pela aristocracia, ele teria se tornado amante da mulher de um fidalgo, que o coseu a facadas.
A obra de Sophia de Mello Breyner Andresen fora apresentada a João Cabral por um primo da poeta, o historiador Ruben Alfredo Andresen Leitão, com quem tivera contato em Londres. Ela, porém, nunca havia lido nada dele antes de conhecê-lo em Sevilha. Nascida no Porto, Sophia vivia desde 1947 em Lisboa, casada com o jornalista Francisco Sousa Tavares. Em setembro de 1958, recebeu a visita do poeta carioca José Paulo Moreira da Fonseca e de sua mulher, Lígia, que estavam a caminho de Sevilha, convidados por João Cabral. “Por que vocês não vêm também?”, perguntaram a Sophia. O convite foi aceito, e os dois casais embarcaram para a Espanha.
O primeiro encontro com Cabral aconteceu na Plaza Mayor. No meio da confusão, Sophia viu se aproximar um homem pequenino, cujo semblante lhe pareceu triste. Jamais esqueceria as primeiras palavras que ele lhe dirigiu: “Gosto muito de sua poesia, tem muito substantivo concreto.” Como nada sabia de suas ideias, ela ficou espantada com a declaração. Só pôde entendê-la depois, ao tomar contato com os poemas dele. Antes de conhecê-los, foi a pessoa de João que a deixou encantada.
Naquele mês de setembro, o tempo em Sevilha estava excelente. Todos os dias, o poeta recebia os dois casais para o almoço. Durante a tarde, João e Sophia liam versos um do outro. Como ele não gostava de ler em voz alta, ela se encarregava de recitar todos. À noite, iam ver os bailes flamencos. Sophia logo percebeu que aquele homem triste sabia também ser divertido, o que lhe pareceu uma combinação rara. Passavam horas em discussões animadas sobre ciganos, bailarinas e sílabas, lembraria ela mais tarde. Além dos passeios por Sevilha, o roteiro incluiu visitas a outros pontos turísticos, como a Mesquita de Córdoba. De volta a Portugal, Sophia escreveu a João e Stella, agradecendo pela “magnífica hospitalidade”. E insistiu para que a visitassem em Lisboa, onde João, além de encontrar poetas portugueses que admiravam sua obra, poderia fazer uma conferência sobre o flamenco.
Após descobrir a Andaluzia em companhia de João Cabral, Sophia devorou o volume Duas Águas, que recebera dele, com dedicatória. Apaixonou-se por Uma Faca Só Lâmina e elogiou também a poesia ascética de livros como Paisagens com Figuras. “Você torceu o pescoço da eloquência e da retórica”, enfatizou. “Admiro profundamente a sua poesia porque eu sei como é difícil não dizer coisas demais.”
Três anos depois, comprovando as marcas profundas que lhe deixaram tanto a obra cabralina como a viagem a Sevilha, Sophia publicou o volume O Cristo Cigano, inspirado na lenda andaluza que ouvira em Triana. No poema de abertura, A Palavra Faca, a autora deixou registrada sua homenagem ao amigo, além de fazer alusão à história “por João Cabral contada”. O tema do livro – “o encontro com Cristo”, nas palavras de Sophia – destoava, porém, dos que atraíam João Cabral e a aproximava de outro poeta brasileiro de sua admiração, Murilo Mendes.
Aproveitando as férias de verão na Universidade de Roma La Sapienza, onde dava aulas, Murilo Mendes também esteve em Sevilha e por pouco sua estadia não coincidiu com a de Sophia. Desde que soubera, por uma carta do poeta e crítico Willy Lewin, que Murilo estava de mudança para a Itália, João vinha insistindo para que ele e a mulher, a também poeta Maria da Saudade Cortesão, fossem rever a Andaluzia, “com mais vagar e de automóvel”, podendo “enveredar por coisas onde trens não nos levam”. Entre 1953 e 1955, contratado pela Divisão Cultural do Itamaraty, Murilo havia atuado como adido cultural e também como professor visitante em diversas instituições europeias, incluindo a Universidade Complutense de Madri, de onde fora retirado a pedido do governo franquista. A exemplo de João Cabral, tinha se tornado um aficionado da Espanha. Em 1957, depois de um ano no Brasil, ele e Saudade passaram a viver em Roma. Stella chegou a visitá-los, em outubro daquele ano, no apartamento deles na Viale Castro Pretorio.
O disco Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, integrante da coleção de poesia do selo Festa, dirigida por Irineu Garcia, tinha acabado de sair no Brasil. O long-play de 10 polegadas trazia 16 poemas, 8 de cada poeta, gravados em estúdio, sem trilha sonora. Na apresentação, Tristão de Ataíde[18] escreveu que, salvo pela presença de Deus em Murilo Mendes, havia uma grande semelhança entre os dois poetas: a sobriedade, a concisão, “a mesma predominância dos metais sobre as cordas”. De Sevilha, na mesma carta em que convidava Murilo para excursionar pela Espanha, João disse ao amigo que achara muito inteligente a nota do crítico. Estimulado pela percepção daquele denominador comum, formulou então uma observação que se tornaria famosa a respeito do poeta que tanto o influenciara em seu primeiro livro, Pedra do Sono, de 1942:
Sua poesia me foi sempre mestra, mas por outra coisa: pela plasticidade da imagem, pela novidade da imagem; sobretudo, foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo.
A revelação de Tristão de Ataíde o entusiasmou. João imaginou que “poetas de cordas” seriam Ribeiro Couto, Verlaine e outros chatos, ao passo que o “canto de metal” seria como o cante jondo, o autêntico flamenco, sobre o qual ele já vinha compondo poemas. Ao longo de 1957, Murilo Mendes recebeu em Roma duas importantes composições de João Cabral: A Palo Seco, cujos versos lhe deram “uma saudade terrível da cidade de Córdoba”, e Poema(s) da Cabra, que considerou uma obra-prima. “Aqui a sua estupenda ideia de unir numa linha ideal Espanha e Pernambuco encontra sua adequação mais perfeita, a medida justa”, escreveu Murilo, que era dezenove anos mais velho.
A excursão a Sevilha demorou a acontecer, mas não por falta de desejo. Em setembro, Murilo disse que a viagem seria a realização de um dos sonhos de sua vida: “Passear na Espanha com meu amigo João, espanhol como poucos.” Quase um ano depois, em agosto de 1958, Cabral voltou ao assunto e cobrou a promessa: “Gostaria muito de ver certas coisas em sua companhia e como brevemente deverei ser removido talvez já não terei a oportunidade.” Passadas algumas semanas, Murilo e Saudade enfim chegaram a Sevilha. Por cinco dias, hospedaram-se no chalé da Calle Lima – “conversando poesia de manhã à noite”, conforme diria o poeta mineiro em carta a Lêdo Ivo.
Em Sevilha, Murilo submeteu ao amigo a versão final do seu novo livro, intitulado Tempo Espanhol. Ao comentar os poemas meses depois, já transferido de Sevilha, João voltou a traçar um paralelo entre as duas obras, dessa vez a propósito da temática espanhola. Observou que a Espanha de Murilo, com sua “veemência explosiva”, nutrida de catolicismo, deixava a dele “humilhada”. De sua parte, o que lhe interessava era apenas a Espanha realista, materialista, “a Espanha das coisas”. Daí o vezo de amesquinhar até mesmo as manifestações do seu lado “espiritual”, como a corrida de touros e o cante flamenco: “Eu as diminuo às dimensões de uma lição de estética.” Sentia-se incapaz de falar da Espanha medieval, gótica. Por essa razão, considerava a Espanha de Murilo mais total e completa.
Tempos mais tarde, Sophia de Mello Breyner Andresen ouviu de Murilo Mendes uma história extraordinária. Ele contou que, numa das noites que passara em Sevilha, João Cabral, afundando-se na própria tristeza, anunciou que iria se matar. Preocupado com a ameaça, Murilo mal conseguiu dormir. De manhã, quando viu o amigo aparecer na sala, logo perguntou se ele estava bem. A resposta foi surpreendente. João Cabral disse que desistira do suicídio ao se dar conta de que seria enterrado em Sevilha. O problema, explicou com ar sério, era o cemitério de estilo barroco da cidade. Como tinha horror a tudo que vinha do barroco, não poderia suportar tal ideia e descansar em paz.
Trecho do livro João Cabral de Melo Neto: Uma Biografia, que a Todavia publica neste mês
[1] Ganadería: a criação de gado; toros de lidia: touros bravos. (As notas são da piauí.)
[2] O embaixador e intelectual paulista Lauro Escorel Rodrigues de Morais (1917-2002), amigo do poeta, sobre quem escreveu o livro A Pedra e o Rio: Uma Interpretação da Poesia de João Cabral de Melo Neto (1972). É pai de Eduardo Escorel, diretor de cinema, montador e colunista da piauí, e de Lauro Escorel, também diretor de cinema.
[3] A Tribuna da Imprensa, jornal de Carlos Lacerda, desencadeou em 1952 uma campanha contra alguns diplomatas, afirmando que eles faziam parte de uma “infiltração comunista” no Itamaraty. Pressionado, o presidente Getúlio Vargas colocou em disponibilidade inativa, sem remuneração, cinco diplomatas, entre eles João Cabral de Melo Neto e Antônio Houaiss. Em 1954, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou a favor da reintegração de todos eles.
[4] O ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975).
[5] A impressora manual Minerva, adquirida quando o poeta servia como cônsul em Barcelona e com a qual editou trabalhos de vários autores, inclusive Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector.
[6] Arquivo criado em 1785 em Sevilha para reunir toda a documentação a respeito das colônias espanholas.
[7] O poeta retirou um “l” de seu sobrenome para que seu nome inteiro ficasse com um número par de letras.
[8] Barcelona foi o primeiro posto diplomático de João Cabral, como vice-cônsul.
[9] Joan Miró (publicado no Brasil em 2018 pela editora Verso Brasil).
[10] Com quem João Cabral travara amizade num restaurante especializado em servir toros de lidia, em Barcelona.
[11] Em referência ao poeta carioca Augusto Frederico Schmidt (1906-65).
[12] A mulher de João Cabral era chefe bandeirante.
[13] Município de Pernambuco, onde o pai de João Cabral tinha um sítio.
[14] Mesa em geral redonda, com um orifício central na parte inferior para se colocar o braseiro.
[15] Real Alcázar de Sevilha, um conjunto de palácios próximo do Arquivo Geral das Índias.
[16] O poeta e tradutor alagoano Lêdo Ivo, que morreu aos 88 anos em Sevilha, onde estava a passeio, em 2012, após um infarto.
[17] Em referência a seu bisavô materno, o bacharel Felipe de Souza Leão.
[18] Pseudônimo de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), crítico literário e pensador católico carioca.