ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Dos tempos da brilhantina
Um prédio da década de 1950 encalha no asfalto de Fortaleza
Lianne Ceará | Edição 182, Novembro 2021
Nos dias de sol escaldante em Fortaleza, quem vai à Praia de Iracema sempre avista dois grandes “navios” encalhados. Um no mar, outro no asfalto.
No mar, a cerca de 1 km da praia, está o Mara Hope, petroleiro que encalhou ali em 1985 e nunca foi retirado. Corroído pelo tempo, pela água e pelos raios do sol, a embarcação enferrujada virou parte da paisagem.
No asfalto, está o Edifício São Pedro, prédio na forma de um navio de cruzeiro que foi uma das construções mais imponentes de Fortaleza e um dos hotéis mais famosos do Nordeste. Hoje é um amontoado de escombros. As paredes brancas ficaram turvas e cheias de pichações. O concreto está corroído, e as vigas, enferrujadas. Muitas das janelas que antes se abriam à vista mais privilegiada da capital cearense estão destroçadas. No lugar dos turistas, quem agora se hospeda nos oito andares são as plantas, os pombos, os ratos e os insetos.
Ninguém passa indiferente pelo São Pedro, que fica entre as avenidas Beira-Mar e Historiador Raimundo Girão – parte da orla cujo metro quadrado é um dos mais caros da capital cearense. Alguns pedestres preferem mudar de calçada ao se aproximarem do edifício, talvez com medo que desabe. Outros tiram fotos e observam, curiosos. Na vizinhança, novos hotéis e edifícios residenciais exibem seus vinte, trinta andares, indiferentes ao velho imóvel decaído.
Muita gente que vê o São Pedro em frangalhos não imagina que o prédio já foi chamado de “o Copacabana Palace cearense”, na época em que funcionava ali o Iracema Plaza Hotel. Inaugurado há exatos setenta anos, em 1951, pela família Philomeno Gomes, foi não apenas o primeiro edifício como o primeiro hotel a ser construído na orla (antes dele, os hotéis se concentravam no Centro da cidade).
Em seu auge, nos tempos da brilhantina, o Iracema Plaza Hotel era o destino óbvio de todos os artistas e autoridades públicas que vinham à Fortaleza. No pavimento térreo, funcionava um pequeno shopping, com lojas, salão de beleza e o restaurante Panela, o mais requintado da cidade. Quando o hotel fechou, nos anos 1980, o imóvel foi transformado em prédio residencial e ganhou o nome atual.
O presente de aniversário de 70 anos do Edifício São Pedro não foi dos melhores. Em agosto passado, a Prefeitura de Fortaleza indeferiu o seu tombamento provisório, em vigor desde 2006, afirmando que o imóvel possui “patologias em alto grau, sendo inviável economicamente recuperar a estrutura”.
Após a decisão, a superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Fortaleza recebeu diversos e-mails sugerindo que o pedido do tombamento fosse tratado em nível nacional. Um novo parecer deve ser divulgado até o final de novembro. À piauí, a família proprietária do imóvel não quis se pronunciar, alegando que as discussões sobre o prédio já se esgotaram e que “não tem como evoluir nessas pautas”. Em entrevista recente, Francisco Philomeno Júnior, falando em nome da família, disse que “a demolição é iminente”. Os fortalezenses aguardam, apreensivos e divididos sobre o melhor destino a dar a esse monumento do passado elegante da cidade que, infelizmente, virou um acervo de ruínas.
A funcionária pública Cláudia Belarmino mudou-se em 2001 para um apartamento alugado no terceiro piso do Edifício São Pedro. De sua janela, ela avistava o mar e podia ver o bloco Unidos da Cachorra passar pela orla durante o Carnaval e a queima de fogos na Praia de Iracema no Réveillon.
Quando se separou do marido, Belarmino permaneceu no São Pedro com seus cachorros. Os anos foram passando, e ela assistiu de sua casa à deterioração progressiva do prédio. Aberto para a rua e sem muros, o imóvel virou área de prostituição e foi invadido por usuários de droga que queriam se esconder da polícia ou simplesmente dormir ali. A solução encontrada pelos moradores foi erguer muros.
Em meados de 2010, alguns moradores do São Pedro, entre eles Belarmino, acionaram a Justiça, reivindicando o direito de morar no edifício de forma segura. “Meus vizinhos diziam que íamos ficar. Só que, pouco a pouco, eles foram abrindo mão e saindo, receberam as indenizações e foram embora”, conta. “Mas eu não queria indenização. Queria continuar morando lá.” Ela lutou durante quase sete anos na Justiça e foi uma das últimas moradoras a deixar o prédio. “Todo mundo me dizia pra sair, que eu estava louca, que ia entrar bandido lá.”
Ocorreu com Belarmino uma situação parecida com a da protagonista Clara no filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, que resiste a se mudar do edifício em que vive, alvo do assédio de especuladores imobiliários. Clara consegue vencer a disputa, mas Belarmino não teve sucesso: recebeu uma ordem de despejo.
Inconformada, ela deixou o apartamento 32 e alugou outro, no mesmo prédio. Mas o espaço estava bastante deteriorado e, pior, não tinha vista para o mar. Belarmino, então, desistiu do São Pedro e se mudou para Pacajus, município da Região Metropolitana da capital, onde vive até hoje. “Quando vou a Fortaleza, evito até passar por lá, porque me dá muita saudade.” Um dia desses, ela não resistiu e foi rever o São Pedro. “Passei, olhei, tirei foto. Fiquei três dias arrasada.”
O apartamento 32 é hoje um cenário de destroços, com azulejos quebrados, corredores que dão para o nada, pedaços do teto no chão. As portas sumiram, bem como os armários, que eram “de uma madeira boa, resistente”, garante Belarmino.
Depois da suspensão do tombamento, os muros de concreto e tijolo que cercavam o prédio foram demolidos. Com isso, não é incomum ver pessoas adentrarem ali com câmeras fotográficas e celulares, ansiosas por conhecer o local e, talvez, construir para si alguma memória, antes que tudo venha abaixo. Sem esconder o cansaço, o Edifício São Pedro resiste, enquanto espera pelo desenlace de sua história.