ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Dramaturgia delivery
Neuroses urbanas em domicílio
Renato Terra | Edição 88, Janeiro 2014
Sentado numa cadeira, Artur se apresentou: “Sou empresário.” Vestia sapatos de couro, calça preta e blazer. Hesitou um pouco, mexeu nos óculos e completou: “Estou aqui porque minha filha está namorando um anão.” A revelação provocou risadas discretas na plateia que assistia ao monólogo. A cena se passava no consultório de um psicanalista, recriado com economia de recursos – a cenografia se limitava a uma cadeira. O protagonista se levantou e, constrangido, avisou ao analista que resolvera marcar uma conversa com a filha. “Descobri que ela estava grávida do anão.”
Era o início de um enredo algo embaraçoso, envolvendo a complexa logística do ato sexual entre humanos de estatura radicalmente diferente. Pai pressuroso, Artur temia que sua filha não viesse a conhecer a felicidade que só a realização plena do amor é capaz de propiciar. A filha logo o aliviou dessa angústia infundada. “Você não sabe o que a Branca de Neve estava perdendo”, esclareceu.
Ao fundo, era possível ouvir o barulho de crianças que brincavam num prédio vizinho. O esquete era encenado não num teatro, mas no apartamento em Copacabana de Patricia Ingo, a anfitriã daquela noite. Encostados nas paredes, os móveis abriam um clarão no centro da sala de estar. A plateia – uns 25 amigos dela – se espalhava por sofás, cadeiras e pelo chão. Aplaudiram quando o protagonista comunicou ao terapeuta que havia aceitado o anão como genro. “Minha filha está me fazendo virar outro.”
O ator e responsável pela montagem era Raul de Orofino, de 55 anos, jeitão expansivo e risada explosiva. Explicou que teatro em domicílio é como pedir pizza. “Você pede e eu levo – à sua casa, ao seu trabalho, aonde você quiser.” O artista já encenou seus monólogos em empresas, hospitais, universidades, aviões e até em plataformas de petróleo.
A ideia lhe ocorreu em 1990, quando se viu sufocado pelo confisco da poupança do Plano Collor. Como ator, tinha feito ponta em novelas da Globo e da Manchete, além de peças. Estreou nos palcos aos 4 anos, num espetáculo montado no Instituto de Resseguros do Brasil, sinal de que estava predestinado a fazer teatro em lugares improváveis.
Em seus espetáculos, Orofino assume quase todas as pontas da cadeia produtiva. Negocia cachês, escreve os textos e atua, conforme explicou num almoço poucas horas antes de encenar a peça em Copacabana. Além dele, apenas um assistente que cuida da sonoplastia e um par de conhecidos que ajudam na promoção. Apresentações em domicílio custam, em média, 30 reais por pessoa. Os cachês mais gordos vêm das apresentações corporativas, nas quais adapta as peças para enfatizar tópicos como liderança, motivação e cooperação. Num folheto distribuído depois do espetáculo, ele se define como “ator, autor e formador emocional”.
O repertório de Orofino inclui obras como Humor é Amor e Mário, o Teu Humor Está no Armário. O dramaturgo disse que gosta de atacar temas como o preconceito, a resistência às mudanças e o embrutecimento das relações humanas. Há limites do que pode ou não ser encenado em cada espaço. “Numa residência, não se devem abordar certos assuntos”, explicou. “Se decidir falar da morte da minha mãe, será pesado demais para você e seus amigos.”
Tal cuidado com a adequação do material não impediu que, certa vez, Orofino ferisse as suscetibilidades de um espectador. Interpretava, na ocasião, um homossexual que pela primeira vez levava uma mulher para a cama. No meio da encrenca, um jovem se levantou e pediu que a peça fosse interrompida. “Ninguém está gostando!”, exclamou, meio fora de si. Sem saber bem como reagir, Orofino devolveu: “Quando a gente não gosta de uma peça, vai embora do teatro. Aqui há outras opções: você pode ir para o quarto ou para a cozinha. Mas se ninguém mais estiver gostando, eu paro.” O rapaz se levantou e chispou para o quarto. Chorando, a mãe foi atrás. Passados longos segundos de denso constrangimento, uma jovem finalmente se pronunciou: “Calma, gente. Todo mundo aqui sabe que meu irmão é gay, mas finge não saber.” Voltando a si, Orofino retomou as rédeas da situação: “Intervalo! Daqui a pouco a gente volta.”
A peça montada na casa de Patricia foi O Homem do Feicebuque e Outras Histórias. Na encenação que dá nome ao espetáculo, um homem vai ao terapeuta para resolver a frustração de ter mais amigos nas redes sociais do que na vida real. Os quatro episódios encenados acontecem no consultório de um analista, figura recorrente nas peças de Raul Orofino. Nas outras cenas, os analisados eram Anacleto, um homossexual que entra para uma igreja evangélica em busca da cura gay; Carlos Alberto, engenheiro desempregado que retoma a carreira como faxineiro; e, Artur, sogro de anão, devidamente apresentado.
A cada transição de personagem, Orofino ia até uma arara no fundo da sala para uma rápida troca de figurino. Ao final de noventa minutos de peça, o ator foi bastante aplaudido. “Não acabou, não”, apressou-se em dizer. “Costumo separar uns cinco minutos depois da peça para bater um papo.” A conversa daquela noite durou mais de vinte minutos e percorreu os temas da impessoalidade das redes sociais, do pioneirismo de Orofino e dos eventuais aspectos biográficos dos personagens por ele criados. Um conviva quis saber se ele já havia encenado aquele texto na frente de um anão. Orofino respondeu que sim. “O anão me disse: ‘Finalmente pensaram em nós!’”