ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Dupla quarentena
Como a pandemia estendeu por semanas o habitual isolamento de inverno
Luciano Dutra | Edição 165, Junho 2020
De Reykjavík
Na Islândia, país localizado na vizinhança do círculo polar ártico, a vida é normalmente contida pelos rigores do clima e da escuridão. Entre meados do outono e a chegada da primavera (de final de novembro ao final de abril), os islandeses tendem a ficar recolhidos em suas casas durante a maior parte do tempo, numa espécie de confinamento voluntário. No auge do inverno, em janeiro, a temperatura chega a baixar para -15ºC ou menos em algumas regiões, e o sol, no mesmo mês, só aparece depois das dez da manhã, apressado em sumir de novo, em torno das quatro da tarde.
Neste ano, além do confinamento tradicional, muitos islandeses tiveram que aderir a outro, imposto pelo avanço do novo coronavírus. Apesar de não ter sido decretada quarentena no país como um todo, certas regiões tiveram que fazê-la obrigatoriamente, por determinação do governo, como o Arquipélago das Vestmannaeyjar, no Sul, e a região dos Fiordes do Oeste, que tiveram surtos da doença. Mas em toda parte os islandeses, apreensivos, tomaram seus cuidados, evitando espaços públicos e aglomerações. Com isso, o isolamento de inverno se estendeu para além do tempo habitual.
O reduzido número de habitantes (cerca de 360 mil pessoas) e o isolamento geográfico da ilha foram elementos importantes para conter os casos. Porém, mais determinante foi o fato de o governo seguir à risca as recomendações de uma tríade de autoridades – formada pelo epidemiologista-chefe do país, a diretora da agência reguladora da saúde e o chefe da defesa civil – e a população confiar nas orientações.
Na Islândia, onde são frequentes tufões, deslizamentos de terra, avalanches, terremotos e erupções vulcânicas, as pessoas costumam dar ouvidos aos alertas emitidos pelas autoridades competentes. Desde a segunda semana de março, diariamente, sempre às duas da tarde, parte da população interrompe suas atividades para ouvir, na tevê pública, o trio de especialistas do governo fazer o seu comunicado sobre a situação local da pandemia.
O primeiro caso de contágio foi confirmado em 28 de fevereiro: um homem que viera da Itália. Em março, houve uma abrupta escalada do número de doentes, e entraram em vigor no dia 13 as primeiras medidas oficiais de proteção, um mix de ordens e recomendações em abordagem mais liberal, parecidas com as da Suécia, que, entretanto, não foi bem-sucedida na contenção do vírus.
O rastreamento de doentes e seu isolamento ocorreram com rapidez e eficiência, combinados com a aplicação maciça de testes (em mais de 15% da população). Foi decretada a obrigatoriedade da quarentena para quem tivesse mantido contato nos catorze dias anteriores com pacientes infectados. As aulas em escolas de ensino médio e superior foram suspensas. Recomendou-se ainda que todos mantivessem a distância mínima de 2 metros uns dos outros e, no período mais restritivo, que não se juntassem mais do que vinte pessoas em locais fechados ou ao ar livre.
Essas medidas afetaram bastante o comércio, como os restaurantes, que em razão da pouca frequência concentraram-se nas entregas em domicílio. Nas lojas, via-se apenas algumas poucas pessoas. Reykjavík se transformou num cenário fantasmagórico. Era ao mesmo tempo curioso e perturbador ver as ruas praticamente vazias, mesmo no horário comercial.
Na primeira semana de abril, a Islândia atingiu o pico de contágios. Mas, pouco após, o número se estabilizou. Em 4 de maio, quando já chegara a primavera, o governo decidiu abrandar as medidas de segurança. Até o último dia 28, o país teve dez mortes e 1 805 casos positivos.
Agora, curiosamente, ouve-se mais a língua local no Centro de Reykjavík, pois os turistas estrangeiros desapareceram. As restrições às viagens internacionais estão permitindo que os próprios islandeses façam algum turismo em seu país, o que para muitos se tornara proibitivo, com a escalada dos preços de alojamento e alimentação, em decorrência do aumento de visitantes estrangeiros.
As piscinas públicas, que estavam fechadas desde março, foram reabertas à meia-noite de 18 de maio, com muita festa. Esses locais alimentados por águas geotérmicas são verdadeiros spas ao alcance da população e exercem uma função social importante na Islândia, como pontos de encontro – à maneira dos botecos no Brasil. A partir de agora, contudo, a frequência a esses lugares estará sujeita a várias regras sanitárias.
Eu trabalho como tradutor e diagramador numa empresa da área farmacêutica responsável pela logística de mais de dois terços dos remédios utilizados na Islândia – um elo importante na cadeia de suprimento do sistema de saúde do país. Desde meados de março, parte dos funcionários passou a trabalhar em casa, inclusive eu.
Vivo em um apartamento de 40 m2, no segundo piso de um prédio de três andares na região central de Reykjavík, com minha companheira, Francesca Cricelli, e nossa indomável gata, Nala Björk. Durante o período de isolamento social, passávamos o dia trabalhando, cozinhando, conversando, praticando ioga, assistindo a filmes na tevê e conversando, pela internet, com amigos e parentes espalhados em três continentes. De vez em quando, recebíamos a visita de amigos. Eles nos chamavam da rua, nós abríamos a janela e nos falávamos por longos minutos.
Com a primavera, os dias voltaram a ficar mais longos do que as noites na Islândia. O sol tem aparecido perto das quatro da manhã e só vai embora depois das 23 horas. Na capital, a temperatura já começou a atravessar a fronteira dos 10ºC. A flora da ilha reemergiu, muito verdejante, depois de meses acossada pelos ventos boreais e soterrada pela neve.
É nessa época que, na região rural, as ovelhas, depois de meses confinadas nos galpões, dão à luz os seus filhotes, que saem saltitantes pelas pastagens. Com o fim da quarentena, eu e minha companheira nos sentimos como esses borregos recém-paridos – e também damos nossos saltos pelos parques de Reykjavík.