ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
É batata (palha)!
A peleja dos tubérculos brasileiros contra o domínio das inglesas
Mariana Filgueiras | Edição 67, Abril 2012
Cristal é a mais velha. Tem olhos rasos, a cútis amarelada e a compleição levemente áspera. Miúda e durona, é daquelas que não esmorecem com facilidade. Já Elisa é altiva. Seu porte é ereto, e a pele, bem lisinha. Não é rija como Cristal – pelo contrário, amolece à toa. Ana, por sua vez, tem a epiderme mais avermelhada, olhos suaves como os de Cristal e pintas pretas esparsas que lhe conferem um charme coquete. É a mais popular de todas, e não seria exagero dizer que não há quem não goste dela. Clara, por fim, é a mais bem-feita de corpo. Alvíssima, tem o cabelo enrolado, é a maior de todas, não obstante seja a mais nova. Chama a atenção pelo vigor físico – não fica doente de jeito nenhum.
As quatro são os xodós dos cientistas do programa de melhoramento genético de batatas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Crias de laboratório, foram desenvolvidas nas unidades da instituição em Pelotas, no Rio Grande do Sul, Canoinhas, em Santa Catarina, e Brasília. Cristal nasceu em 1996. Elisa, em 2002. Ana é de 2007 e Clara foi gerada em 2010.
Há dezesseis anos, o grupo de pesquisadores tem uma meta: criar um harém de batatas perfeitas para competir com as espécies importadas, que ainda respondem por 70% do consumo nacional. E eles estão chegando perto: até o 25º Congresso da Associação Latino-Americana de Batata, a ser realizado em setembro, em Uberlândia, pretendem lançar mais uma espécie melhorada. A caçula já está na proveta e deve nascer e ser batizada em julho.
Não pense que Cristal, Elisa, Ana e Clara são transgênicas: as batatas da Embrapa são obtidas por melhoramento genético clássico, em que sucessivas gerações são cruzadas e selecionadas em função das características desejadas.
“Cada batata é boa para uma coisa: tem a que é melhor para fazer purê, para assar ou para fritar”, explicou o agrônomo Arione Pereira. “Mas não adianta: no supermercado, o pessoal só leva a mais bonita, geralmente a batata inglesa ou a holandesa Bintje.”
É dura e machista a lógica do mercado tubercular. Que as batatas sujas, disformes e esverdeadas perdoem os geneticistas, mas beleza é fundamental. A batata perfeita, objetivo último dos pesquisadores da Embrapa, tem de ser formosa. E ainda precisa ser boa de cozinha – é de se estranhar que nenhuma se chame Amélia.
Mas nem tudo é estética na área. “Nosso grande desafio hoje é fazer uma batata adequada às demandas da indústria”, explicou Pereira. “Nesse setor, o mercado que mais cresce no país desde 2006 é o da batata frita – chips e, principalmente, palha.”
Assim como o restaurante por quilo e o cheque pré-datado, a batata palha é um fenômeno tipicamente brasileiro. Em nenhum outro rincão do planeta a batata frita cortada em hastes finíssimas encontrou tanto sucesso. O viajante penará para encontrá-la no Peru, um dos países aos quais devemos o cultivo do tubérculo, e tampouco na Alemanha, que disseminou seu consumo no Velho Mundo (o rei prussiano Frederico II, responsável pela dispersão, recebe até hoje, em seu túmulo, em Potsdam, batatas depositadas no lugar de flores). Arione Pereira tem sua hipótese para explicar a popularidade: “É que batata palha enche o prato.”
Uma jornada pelas gôndolas de qualquer supermercado basta para atestar seu sucesso inconteste: tem batata palha extralonga, extrafina, sabor churrasco, salsa & cebolinha, sem glúten ou gordura trans. A popularização do estrogonofe, do self-service e das barraquinhas de cachorro-quente abriu o mercado para novas marcas e variações.
Cristal, Elisa, Ana e Clara foram concebidas para se adequar às idiossincrasias do paladar brasileiro. Se as mais velhas eram melhores para purê e salada, as mais novas já foram adaptadas aos novos tempos. Ainda é cedo para avaliar a aceitação de Clara em cozinhas e balcões, mas Ana já é um sucesso retumbante. Recentemente, teve até o nome estampado nos pacotes de uma marca popular de chips.
A popularidade de Ana se deve à sua alta concentração de “matéria seca”: batatas comuns contêm muita água, pouca massa e elevado teor de açúcar. Em contato com o óleo, o açúcar escurece e deixa a batata amarga e encharcada. Isso explica por que as batatas palha e chips de hoje em dia são mais claras, secas e crocantes que as mais antigas, escuras e gordurosas. “Tivemos de criar um novo tipo de batata para essa demanda, e Ana tem respondido bem”, contou Pereira. “Clara com certeza será um sucesso também”, apostou. Mais robusta que Ana, a caçula é resistente às pragas da lavoura.
O pesquisador faz mistério sobre a nova variedade de batata a ser apresentada em Uberlândia, que ainda precisa passar por testes de validação e ser registrada no Ministério da Agricultura. Nem nome ela tem ainda. O batismo das batatas criadas em laboratório, aliás, não é simples. “Geralmente damos nomes femininos, pois é comum associarmos as características das batatas às mulheres”, explicou o agrônomo. “Tem de ser simples, para facilitar a memorização do consumidor, e traduzir de imediato a principal característica da espécie.” A única exceção foi a primogênita Cristal, batizada em homenagem ao município gaúcho que a produziria primeiro.
E os cientistas ainda precisam tomar outra precaução. Na época em que Elisa foi criada, seu nome seria Lisa, em alusão à textura da casca. Mas um pesquisador da equipe se lembrou de que já havia uma marca de óleo de cozinha com o mesmo nome, o que poderia induzir o consumidor a fritá-la na hora do almoço, quando sua principal aptidão é o cozimento. Melhor não correr o risco.