ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
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Uma palavra e 68 desembargadores
Roberto Kaz | Edição 176, Maio 2021
“Gostaria de saber: há alguma divergência? Vou colher os votos”, avisou o desembargador Luiz Antonio Moreira Vidigal, que preside o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, responsável pelo estado de São Paulo. A pergunta, protocolar, acabaria abrindo um portal no espaço-tempo do Poder Judiciário para que 68 desembargadores discorressem sobre os pormenores de uma palavra: “Foda.”
O debate se deu no dia 22 de fevereiro, durante uma sessão virtual do Tribunal Pleno – espécie de reunião de condomínio do TRT, em que os desembargadores se juntam para deliberar e por vezes julgar questões administrativas, disciplinares e judiciais envolvendo integrantes do próprio tribunal. Dentre os vários processos na pauta daquela segunda-feira, um versava sobre as acusações de parcialidade e falta de decoro de um juiz substituto, Josley Soares Costa. Era ele quem havia proferido o termo interdito.
O causo remonta a outubro de 2019, quando Soares Costa proferiu uma sentença favorável ao funcionário de um estacionamento que havia sido dispensado do serviço por justa causa. Indignado, o advogado da parte derrotada – ou seja, do empregador – resolveu vasculhar as redes sociais do magistrado, na esperança de encontrar algum indício de parcialidade. Achou um comentário no Instagram em que Soares Costa elogiava a foto de uma desembargadora crítica à reforma trabalhista aprovada em 2017, Ivani Contini Bramante. “Coisa linda do meu coração, a desembargadora mais foda do mundo”, escreveu ele. O advogado decidiu anexar uma cópia da postagem na reclamação disciplinar que apresentou ao Conselho Nacional de Justiça em abril de 2020. Após tramitar por um ano, o processo administrativo foi finalmente levado a julgamento, naquela sessão do Tribunal Pleno.
O primeiro voto foi proferido pelo corregedor Sergio Pinto Martins, relator do caso. Didático, Martins explicou que a suspeita de parcialidade do juiz carecia de provas. Mas recomendou que Soares Costa recebesse uma advertência por comportamento inadequado, pois o uso da palavra “foda” feria um dispositivo da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que obriga o magistrado a manter “conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
Em seguida, o presidente do tribunal abriu a sessão para divergências. E foi então que começou o debate semântico.
“A meu ver, está claro que o senhor juiz não foi grosseiro”, argumentou o desembargador Rafael Pugliese Ribeiro. “A palavra disponibilizada no nosso acervo linguístico não é boa ou ruim. Bom ou ruim é o uso que se faz dela. O termo foi usado sem o sentido de agressão, mas dentro de uma relação de amizade.” Ribeiro enumerou exemplos que atestavam a polivalência da palavra: “Aparece como título de música de MC Alysson [É Foda], da fanpage de Caetano Veloso no Facebook – ‘Caetano é Foda’ –, ou em títulos de livros, como A Sutil Arte de Ligar o F*da-se e F*deu Geral, os dois do autor Mark Manson [por motivos de clareza, ele não se referiu aos asteriscos na explanação].” Lembrou, por fim, que o termo havia sido utilizado “em importante evento de reunião de agente de Estado” e mencionou a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro num encontro ministerial em abril do ano passado: “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, só porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha.” Ribeiro votou pelo arquivamento.
O próximo a falar foi o desembargador Ricardo Artur Costa e Trigueiros, que votou de modo semelhante: “A magistratura nesse caso não sai desgastada pela expressão utilizada pelo doutor Josley. Pelo contrário, ele estava usando a palavra para elogiar a magistrada.” Já o desembargador José Ruffolo preferiu rebater a defesa de Ribeiro: “Eu divirjo em primeiro lugar quanto ao que foi dito pelo meu colega e amigo doutor Rafael. Nenhuma das citações que ele fez foi proferida por um magistrado.” Não só votou pela condenação, como propôs uma pena mais pesada no lugar da advertência: censura. “Determina o Código de Ética que o magistrado deve se portar escorreitamente tanto na vida pública quanto na privada”, afirmou.
A desembargadora Ivete Ribeiro revoltou-se: “Eu estava aqui ouvindo os votos e me lembrando de uma reunião ministerial em que foram falados 41 palavrões. Só o senhor presidente da República falou 33 palavrões. Então, que hipocrisia é essa? Num país em que um líder de governo fala vários palavrões e ninguém faz nada, eu vou condenar um colega que falou uma palavra sem ter um significado de baixo calão? Acompanho a divergência.” Já a desembargadora Cíntia Táffari recorreu ao argumento contrário: “Fico pensando em qual Brasil queremos, o modelo de conduta que queremos. No meu ver, essa é uma escolha ética, de postura. Eu não gostaria de ser elogiada nesses termos.” Ela votou pelo prosseguimento do processo.
O debate se estendeu por quase duas horas, com outros desembargadores proferindo seus votos. O desembargador Antero Arantes Martins considerou que a palavra “foda” fora utilizada por Soares Costa “com mau gosto, mas não com má intenção” – e, por isso, decidiu votar pelo arquivamento. Voto semelhante foi dado pelo desembargador Jonas Santana de Brito: “Palavras que já se incorporaram à linguagem rotineira do povo não devem mais ser consideradas chulas. Considero chula, deprimente e horrorosa a miséria que cada vez mais se abate sobre o Brasil, com mortes provocadas pela pandemia da Covid-19.” Já o desembargador Armando Augusto Pinheiro Pires explicou que a absolvição poderia abrir um grave precedente: “Daqui a pouco o juiz vai na rede social e escreve ‘caralho’. E a gente vai deixando, vai deixando.”
O julgamento terminou em empate: 34 votos pelo prosseguimento e 34 pelo arquivamento, o que acabou beneficiando o juiz Soares Costa. Eram necessários 47 votos para o processo ter continuidade. Procurado pela piauí, ele não quis ser entrevistado.
Minutos antes de sair o resultado, a desembargadora Maria José Bighetti Ordoño Rebello expressou seu choque com o uso da palavra, mas se disse incapaz de “manchar o prontuário de um magistrado por causa de um único deslize”. Ponderou: “Tenho certeza de que, depois de passar por todo esse aborrecimento, o doutor Giovani nunca mais vai utilizar essa expressão.”
O nome do doutor não era Giovani – era Josley. F…