ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
É mole?
Miniaturista carioca levará 25 anos para se ombrear com Luís XIV
Clara Becker | Edição 50, Novembro 2010
Até sentir uma necessidade incontida de ter um sofá vitoriano para sentar o seu bonequinho Playmobil, Felipe Rodrigues Calazans Pereira Caldas foi uma criança como outra qualquer. Ao manifestar, muito precocemente, um gosto especial pelas artes decorativas dos séculos XVII, XVIII e XIX, viu-se forçado a abandonar os tijolinhos Lego, tão pobres em seu poder de reproduzir cadeiras Luís XVI ou cômodas em estilo Regência. Do refinamento ansiado por sua mente inquieta, só a massinha de modelar daria conta. Assim foi que em pouco tempo, com esmero e talento, as mãozinhas do menino Caldas fabricaram duas belas poltronas e um elegante sofá para compor o ambiente de suas peraltices.
O tempo passou, e hoje, aos 27 anos, designer formado, Caldas continua dedicado à sua obsessão. Há uma década ele iniciou seu projeto mais ambicioso: a construção de um palácio inspirado em Versalhes, com empréstimos ocasionais de outras glórias do patrimônio arquitetônico mundial, de preferência de origem nobre. A verossimilhança é a sua baleia-branca. Caldas estudou encarniçadamente as plantas baixas de inúmeros palácios para erguer a versão massinha do seu. A obra, por exemplo, não terá banheiros, porque também Versalhes não os tinha. A introdução de sanitários chez soi, explica, é uma contribuição do período vitoriano. A descoberta o desobrigou de criar áreas de dependência. Alívio, pois ele prefere infinitamente as áreas de convivência.
Cada particular das peças de Caldas requer pesquisa. Foi preciso muita literatura – livros sobre porcelana, sobre cristais, sobre costumes – e, no mínimo, dois dias para modelar uma mesa igual às que se viam nos melhores palácios do século XVII. “Eu estudo o que tinha na mesa, o modo como os talheres eram dispostos, como eram as regras de etiqueta.”
Para a sua Sala das Hortênsias ele criou três baixelas diferentes: “Uma só é coisa de pobre, não de rei.” Pratos rasos e fundos, talheres, travessas, sopeiras e fruteiras, sempre o jogo completo. Dois são reproduções de Limoges e o terceiro é Companhia das Índias. “Na época o garfo era um talher para servir e não para comer. Até Dom João VI” – sempre ele, coitado, o monarca das coxinhas de galinha – “comia com as mãos e depois limpava na cortina.”
Caldas lamenta não existir massinha transparente que simule as taças de cristal. O material se revelou igualmente faltoso na hora de confeccionar os tapetes, que ficavam espessos demais. Então ele bolou uma engenhosa solução: imprimiu em alta resolução um lindo tapete aubosson e o aplicou diretamente no chão.
Conversa vai, conversa vem, e o rapaz, de supetão, faz um gesto desvairado: pega um palito de dentes. Foi tudo muito rápido, mas naquela fração de segundo desfilaram pela mente da interlocutora marquesas despudoradas que, às escâncaras, pelejavam para tirar do molar um renitente fiapinho de viande des Grisons. Alarme falso, desnecessário dizer. Tocando a pontinha do palito na boca de um vaso, Felipe Caldas pretendia apenas modelar a massa. “Essa devia ser a única função do palito de dentes. Tenho horror de gente que palita em restaurante.”
Seus movimentos de escultor são cirúrgicos e as ferramentas, heterodoxas. A exemplo do palito, o fio do carregador de celular pode ser empregado para sovar delicadamente a massinha e criar efeitos de padronagem, como no tecido do dossel sobre a cama do quarto verde, em estilo neoclássico. Estilete, esquadro e uma garrafa que faz as vezes de rolo de macarrão completam a caixa de ferramentas. Caldas trabalha sempre ao som de Bach ou Schubert.
Ele foi um dos poucos usuários a perceber que as fábricas andaram mexendo na fórmula da massinha. O branco mudou levemente de tonalidade, afirma; está mais alvo, menos marfim, o que não deixa de ser triste. Também anda mais pegajosa. Quando ele rola a garrafa para esticar paredes, pedacinhos ficam grudadas no vidro.
Erguida uma parede, ele pega e desenha motivos adamascados por toda a superfície. As sancas recebem floreios e volutas de um rococó sublime. “Engraçado… Quando eu termino, aquilo para mim vira de verdade. Não é mais massinha. É mármore, porcelana e ouro.”
Emular Luís XIV não é bolinho. O Roi Soleil, vulto predileto de Caldas (Maria Antonieta ele acha meio sem graça), tirou Versalhes do nada. Mutatis mutandis, é exatamente o que faz o miniaturista. À parte a sala de jantar e o quarto verde, no primeiro piso da ala oeste ele já ergueu e decorou um boudoir, duas saletas (uma branca, outra rosa), um salão dourado, duas salas de visita (francesa e inglesa) e uma sala de música. Para que sua fantasia se complete, faltam apenas o segundo andar da ala oeste e os dois pavimentos da ala leste.
Caldas planejou ainda uma galeria de peças egípcias e uma sala de porcelanas como a que viu no Palazzo Reale de Turim, mas não sabe se terá tempo hábil para executá-las. Acredita que até os 40 anos terá concluído a construção do palácio. Versalhes, dependendo do que se entenda por “pronto”, levou dezoito anos para chegar lá. O dele consumirá uns sete anos a mais.
Como a obra requer muita paciência e estando a beleza nos detalhes, Caldas não pode se submeter a uma disciplina austera. “Não é um trabalho melancólico”, explica. “Tenho que estar num dia feliz para trabalhar nesse projeto.” A produção, portanto, é irregular. Por longas semanas ele nem se aproxima do canteiro de obras. Em seguida, vira noites e noites decorando. Ao sossegar, invariavelmente vai chamar a mãe para apreciar o novo cômodo 20cm x 20cm que brotou do transe eufórico.
Na falta de um ateliê, Caldas confabula seu reino num canto do quarto. Como o belo é necessário, o aposento é ornado com dois Gobelins que correm rente à parede. “Essas tapeçarias me orgulham por dois motivos: pertenceram à minha avó, que despertou a minha vocação artística, e são da fábrica preferida do Louis XIV. Ele estatizou o ateliê dos Gobelins para ficar com toda a produção deles.” Outro legado da avó, L’Art de Reconnaître les Styles: Les Styles Régence & Louis XIV é o livro de cabeceira de Caldas. A senhora também está presente numa série de antigos porta-retratos, ladeada por inúmeros vidrinhos, potinhos e outras coisinhas de porcelana.
“Meu antigo chefe dizia que minha mesa parecia uma penteadeira de cigana”, ele conta, sorrindo. Não foi a única excentricidade que causou espécie no ambiente de trabalho. Seus colegas também não compreendiam por que razão, às cinco em ponto da tarde, ele suspendia fosse lá o que estivesse fazendo para tomar uma xícara de chá. O hábito perdura, independentemente de os termômetros do Rio marcarem 45 graus. Ao sorver o primeiro gole, Felipe Caldas sabe que Madame de Sévigné ou a Marquesa de Maintenon lhe fariam companhia.