Enquanto aos olhos do público o papa Francisco parece uma figura gentil e paternal, no Vaticano ele tem fama de durão, empenhado em chacoalhar formas tradicionais de governar a Igreja. Em entrevistas, ele já se descreveu como "ingênuo", mas também como "furbo" – astuto, espero, malandro FOTO: MASSIMO VITALI_THE NEW YORKER
E pur si muove
O papa Francisco e as lentas mudanças da Igreja Católica
Alexander Stille | Edição 112, Janeiro 2016
Ao ingressar na Cidade do Vaticano pela entrada dos fundos, logo se percebe como o mundo do centro da Igreja Católica é pequeno. Construído em grande parte durante o Renascimento, o complexo de 44 hectares é o quartel-general administrativo e espiritual de uma instituição que conta com 2,1 bilhões de seguidores. A primeira edificação à vista é a Casa Santa Marta: é nela que o papa escolheu morar e trabalhar – num espaço de três cômodos e cerca de 65 metros quadrados –, abrindo mão do tradicional e mais grandioso apartamento papal do Palácio Apostólico.
Ao dobrar uma esquina, o visitante se depara com um edifício amarelo que abriga vários cardeais. Um dos pisos serve de residência ao cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado – o segundo na hierarquia da Igreja – durante o papado de Bento XVI, o predecessor de Francisco. O cardeal Paolo Sardi, tido como um dos adversários políticos de Bertone na Cúria Romana, é seu vizinho de baixo. Uma breve caminhada pelos jardins do Vaticano conduz ao mosteiro Mater Ecclesiae, atual morada de Bento XVI. Ao renunciar, em 2013, Joseph Ratzinger partiu de helicóptero para dar início a uma vida de recolhimento e orações, e muitos pensaram que ele se retirava para um monastério em algum canto de sua Alemanha natal. Mas não, Bento XVI está bem ali. Logo além dos muros do Vaticano, na Piazza della Città Leonina, vê-se um outro edifício de apartamentos destinados aos cardeais. O cardeal Gerhard Müller, sucessor de Bento como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – a mais antiga das nove congregações da Cúria Romana, que na Idade Média cuidava da Inquisição –, vive no apartamento que o antecessor ocupava quando ainda era apenas o cardeal Ratzinger. O andar de cima abriga o cardeal Lorenzo Baldisseri.
Os vizinhos andam em pé de guerra. Müller é defensor da ortodoxia doutrinária, ao passo que Baldisseri, reformista, comanda o Sínodo sobre a Família, conselho que Francisco convocou em 2014, no qual os progressistas têm se batido por maior flexibilidade em questões como o tratamento dispensado a casais divorciados e a homossexuais. Outra disputa em curso – no momento, aparentemente resolvida – dizia respeito à poluição sonora no prédio: Baldisseri, excelente pianista, gosta de praticar seu instrumento depois do almoço, justo quando Müller tira uma soneca.
Nesse mundo compactado, florescem tanto amizades estreitas como rivalidades intensas, ambições conflitantes e inimizades pessoais. Talvez em virtude de seus habitantes raramente criticarem o papa em público, as diferenças pessoais vêm à tona por meio da maledicência, da fofoca de corredor e da intriga de bastidor. É nesse cenário que Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, ex-arcebispo de Buenos Aires, se propõe a “chacoalhar” a Igreja Católica, como ele gosta de dizer. Antes de ser eleito, em 13 de março de 2013, ele poucas vezes havia ido a Roma, ao contrário da maioria de seus predecessores.
Primeiro papa jesuíta da história, Bergoglio construiu praticamente toda a carreira na América Latina. Aos 36 anos, tornou-se o chefe da ordem jesuíta na Argentina. Durante a guerra suja que a ditadura promoveu no país, foi acusado de entregar dois padres aos militares, mas os indícios são ambíguos – e Bergoglio argumenta que, na verdade, trabalhou para libertar os padres e outras vítimas do regime. (Alguns dissidentes políticos da época testemunharam que ele ajudou a escondê-los durante as perseguições.) Depois de nomeado arcebispo de Buenos Aires, em 1998, passou a se dedicar aos pobres. Circulava de ônibus pela cidade e visitava os arredores miseráveis da capital argentina.
Quando, em 2013, o cardeal Bergoglio foi ao Vaticano para a escolha do sucessor de Bento XVI, antes do conclave ele conversou com um grupo de cardeais. Fez severas críticas ao “narcisismo teológico” manifestado pela cúpula da Igreja de Roma, que deveria estender as mãos para a periferia do mundo e para aqueles à margem da sociedade. Pouco antes do Natal de 2014, surpreendeu cardeais e monsenhores ao denunciar os diversos “males” da Cúria – a “patologia de poder”, as “rivalidades e vaidades”, as “fofocas, queixas e maledicências”, a “idolatria dos superiores”, além de “carreirismo e oportunismo”. Mas, a despeito de ter levado gente nova ao Vaticano para pôr em prática sua visão da Igreja, Francisco herdou um corpo burocrático e precisa lidar com ele.
Numa reunião de altos funcionários do Vaticano, em 2015, à qual compareci em Roma, pude avaliar a dificuldade da empreitada ao entreouvir um cardeal falando sobre uma reportagem que o semanário L’Espresso publicaria contendo um relato prejudicial ao cardeal George Pell e seus hábitos perdulários. Pell é o cardeal australiano que Francisco levou a Roma para limpar as finanças do Vaticano. O cardeal que comentava o artigo não escondia seu contentamento com a publicação iminente. “Quando Francisco chegou, parecia que tudo que os italianos faziam era errado ou corrupto – agora a coisa ficou um pouco mais complicada”, disse ele. Considerava fundamental acertar as contas com aqueles que julgava “pseudorreformistas”.
No fim da tarde, as sentinelas da Guarda Suíça afastam os visitantes que ainda vagam pelos jardins do Vaticano: é o momento da caminhada diária de Bento XVI. O papa emérito se locomove com o auxílio de um andador, mas, de resto, afirmam todos os relatos, goza de boa saúde mental. Agora que ele não pode mais ser acusado de todos os males do mundo católico, seu papado vem sendo reavaliado.
Bento não dá entrevistas. Grande parte das notícias sobre sua vida é filtrada por seu secretário pessoal, monsenhor Georg Gänswein, um teólogo alemão que trabalha com ele desde 1996, e que em 2003 se tornou seu secretário. Gänswein também mora no Mater Ecclesiae. Chamam-no com frequência de “Georg, o bonitão”, ou de “o George Clooney do Vaticano”. Com os cabelos loiros começando a ficar grisalhos, ele é um homem charmoso de 59 anos, penetrantes olhos azuis e traços talhados a cinzel. Adora jogar tênis e esquiar. Vestindo uma elegante batina preta, ele me recebeu no Palácio Apostólico, numa sala adornada com afrescos. Pouco antes de renunciar, Bento o promoveu a arcebispo e o fez prefeito da Residência Papal, posto que segue ocupando até hoje.
Algumas das medidas iniciais do novo pontífice – sua decisão de não morar no Palácio Apostólico nem usar alguns apetrechos das vestes papais – foram interpretadas em certas áreas como censuras sutis a Bento XVI, que manteve escrupulosa observância das tradições e da indumentária do cargo. Em tom ligeiramente irritado, monsenhor Gänswein declarou ao jornal alemão Die Zeit que, se Bento havia ocupado o Palácio Apostólico, não fora por mania de grandeza – era homem de hábitos modestos e sóbrios. A franciscomania que varreu o mundo depois da eleição do novo papa parecia incomodar o secretário. O pontífice, ele me disse, não pode ser “o queridinho de todo mundo”, o encantamento da mídia desapareceria com o tempo. Disse também que ser papa é como ser um dedo apontando para a lua – a lua representa Deus. “Às vezes as coisas se invertem e as pessoas só veem o dedo, não veem a lua. Não que esse seja o desejo de Francisco – ele não é um artista pop –, nem que ele esteja tentando atrair atenção para si mesmo, mas os meios de comunicação de massa têm sua dinâmica própria.”
As relações de Bento XVI com a mídia eram mais tensas. De início, explorou-se sua vida durante a Segunda Guerra Mundial, bem como sua reputação de rigidez teológica e seu conservadorismo. Ele nunca se livrou de todo da fama adquirida como promotor da ortodoxia doutrinária sob João Paulo II, reputação esta que lhe valeu apelidos como “Rottweiler do papa” e “cardeal Panzer”. Pessoas que trabalham muito próximas a ele o descrevem, porém, como um homem bastante cortês, reservado e tímido – um sujeito gentil, de grande retidão moral e excepcional inteligência.
Nenhum outro papa renunciou e seguiu morando no Vaticano. Celestino V, monge e eremita que abdicou em 1294 na esperança de retornar à vida de preces, foi seu antecessor mais famoso. Em vez disso, foi preso pelo sucessor, Bonifácio VIII, a quem Dante destinou um dos círculos inferiores do inferno. (Dante tampouco gostava de Celestino, a quem se referiu como “aquele que, por covardia, pronunciou a grande recusa”.)
Bento e Francisco por certo se dão melhor que Celestino e Bonifácio. O padre Federico Lombardi, secretário de imprensa de ambos, disse-me: “Conhecendo Bento, não me surpreende que ele proceda com tato, discrição e delicadeza impecáveis.” E acrescentou: “Suas aparições públicas não têm sido frequentes, mas são sempre bem-vindas e em geral decorrem de um convite do papa Francisco.” Francisco, por sua vez, fez de tudo para tratar Bento com consideração, tanto que só apareceu em público pela primeira vez depois de falar com ele por telefone. E, após dar uma longa entrevista para a revista jesuíta Civiltà Cattolica, pediu ao antecessor que lesse o texto e o comentasse. Bento respondeu com quatro páginas de anotações. Francisco compara a presença de Bento àquela de um avô amado e respeitado – alguém com quem pode contar.
Muitas pessoas ligadas a Bento sustentam que ele e Francisco têm muito mais em comum do que em geral se supõe. É o caso do cardeal Bertone, que colaborou com Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé e foi nomeado secretário de Estado (ou seja, primeiro-ministro do Vaticano), cargo que ocupou ao longo de boa parte dos oito anos de pontificado de Bento XVI.
Encontrei-me diversas vezes com Bertone em seu apartamento no Palazzo San Carlo, defronte à casa de Francisco. Alto e imponente, com uma cabeçona retangular sobre o corpo magro mas forte, vestia uma batina preta simples, a mesma de quando iniciou a carreira como padre salesiano. Só o barrete vermelho indicava a hierarquia. Usa óculos com lentes levemente escurecidas, o que dá a seus olhos já escuros o aspecto de poços negros profundos. Uma pessoa que conheci o descreveu como “impenetrável”. De modo geral, Bertone é bastante reservado, mas simpático e amigável quando começa a relaxar. Pediu-me que lhe enviasse minhas perguntas por e-mail, antes da entrevista. Quando cheguei, havia preparado 33 páginas de respostas, com datas, números e citações, como se não confiasse em si mesmo numa conversa informal – algo que me pareceu simbolizar os problemas enfrentados pelo papado de Bento XVI em sua comunicação com a imprensa.
Bertone tem sido culpabilizado por muito do que deu errado durante o pontificado de Bento, e a impressão que causa é a de um homem orgulhoso, mas ferido. A imprensa muitas vezes o descreveu como um burocrata do Vaticano disposto a bloquear reformas e acobertar atos de corrupção. Uma manchete de 2012 dizia: “Bertone e o banco do Vaticano são a prova de que Satanás existe.” Mesmo depois de ser substituído por Francisco, que escolheu outro secretário de Estado, Bertone continuou sendo alvo de críticas. O apartamento gigantesco para onde se mudou ao se aposentar foi descrito em matérias de jornais e de tevê. Quando celebrou seu aniversário de 80 anos, vieram à tona relatos da comemoração extravagante, das comidas e bebidas finas servidas na festa de aniversário. Seus hábitos com frequência foram comparados, desfavoravelmente, ao comportamento espartano do novo papa. Em resposta, Bertone decidiu escrever (com a colaboração de um jornalista italiano) seu próprio relato do período que passou no Vaticano. O livro vai se chamar Il Camerlengo, um dos muitos títulos atrelados a seu antigo posto.
O apartamento de Bertone lembra mais a casa de um ex-chefe de Estado do que a de um padre. O imóvel foi reformado com seu próprio dinheiro, ele me disse, e nele moram também seu secretário pessoal e três freiras. “Bertone é un uomo di potere, mas é honesto”, confidenciou-me um membro de seu círculo. É, com certeza, um homem devoto, com agenda e horizonte mental recheados de festividades e cerimônias religiosas. Em agosto de 2015, viajou à Guatemala para participar de celebrações em honra do fundador da ordem salesiana. Mas a proximidade do poder também é de óbvia importância para ele. À época em que conversamos, Bertone estava de partida para uma semana de exercícios espirituais. Quando lhe questionei isso, ele tomou o cuidado de acrescentar: “Col papa, col papa” – com o papa. E, de fato, uma foto numa revista italiana o mostrava num ônibus, ao lado do assento do papa Francisco.
Bertone insiste em que Bento está longe de ser um “conservador rígido” ou um teólogo insensível, desprovido de humanidade. “Lembro-me de muitas vezes termos caminhado pela praça de São Pedro, quando ele ainda era cardeal, e de ele ter conversado com jovens turistas alemães”, contou-me. “Ele gostava de comer em trattorias modestas.” As pessoas de Borgo – o bairro vizinho aos muros do Vaticano em que ambos viviam quando trabalhavam na Congregação para a Doutrina da Fé – tinham muito apreço por ele. “Lojistas, barbeiros, garçonetes vinham cumprimentá-lo”, contou Bertone. Ele alimentava os gatos da vizinhança e falava com eles em sua língua materna, “alguma variação do alemão da Baviera que os bichanos pareciam entender.”
John Thavis, correspondente norte-americano no Vaticano há mais de trinta anos, conta uma história reveladora sobre Bento XVI em seu livro mais recente, Os Diários Secretos do Vaticano. Durante uma viagem à Jordânia, levaram Bento ao trecho do rio Jordão no qual se acredita que Cristo teria pedido a João Batista que o batizasse. Cinegrafistas e fotógrafos correram em busca de um bom ângulo. Será que o papa batizaria alguém? Ou iria pelo menos até a beira do rio para apanhar um punhado de água? Bento, no entanto, permaneceu dentro do carro e a caravana seguiu adiante.
O escândalo de abusos sexuais no clero, que se acirrou ao longo de décadas sob os precursores de Bento XVI, atingiu seu ápice com o papa alemão: tinha-se a impressão de que o pontífice perdera o controle da máquina do governo. O ano de 2010, lembrado como annus horribilis, foi dominado por revelações horripilantes de assédios e estupros. E, embora Bento XVI tenha feito bem mais que seus predecessores para disciplinar tais abusos, boa parte da culpa recaiu sobre ele. Depois, em 2012, veio o escândalo conhecido como Vatileaks: páginas e páginas de documentos pessoais – cartas endereçadas ao papa e a outros altos dignitários do Vaticano – começaram a aparecer na imprensa italiana, revelando todo um mundo de corrupção financeira e de cruentas lutas internas. O responsável pelo vazamento, soube-se depois, havia sido o mordomo do papa, Paolo Gabriele, que alegou ter desejado disparar um alarme para alertar Bento XVI da podridão que o rodeava.
Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Bento havia enfrentado o escândalo dos abusos sexuais descartando o método até então empregado para tratar as acusações, por meio do qual cada bispo decidia sobre seu rebanho. Em 2004, pressionou para que se investigasse o padre Marcial Maciel Degollado, o carismático mexicano que liderava a ordem religiosa dos Legionários de Cristo. Havia provas irrefutáveis de que o padre abusara de inúmeros jovens seminaristas ao longo de várias décadas, e de que seria o pai de várias crianças nascidas de relacionamentos com mulheres. Jason Berry investigou o assunto numa reportagem publicada no National Catholic Reporter mostrando Maciel como exímio recrutador de seminaristas e hábil arrecadador de fundos. O mexicano também era figura cara a João Paulo II e a seu secretário de Estado, Angelo Sodano. Sodano teria, supostamente, desviado Ratzinger da conclusão das investigações sobre Maciel e, quando a Legião veio a construir um campus universitário em Roma, um dos sobrinhos do secretário de Estado foi contratado para atuar como engenheiro no projeto.
Bento XVI, então no início de seu pontificado, afastou Maciel da Legião e lhe impôs “uma vida reservada de penitência e orações, longe de toda e qualquer função sacerdotal pública”. Embora relutem em criticar João Paulo II – a menção de seu nome frequentemente provocava clamores de Santo subito (Santidade já!) –, algumas pessoas no Vaticano destacam com discrição que muitos erros foram cometidos durante seus últimos anos de pontificado, quando, vítima do mal de Parkinson, ele se encontrava francamente incapacitado. Assim, boa parte dos escândalos que surgiram no pontificado de Bento XVI foi, na verdade, herança do papado anterior.
Bertone e outros próximos a Bento argumentam que o papa emérito deveria ser visto como figura de transição e pioneiro das muitas reformas que hoje Francisco promove em diversos setores, como transparência financeira, intolerância no trato com abusos sexuais perpetrados por padres, abertura diplomática entre Cuba e Estados Unidos, reforma da Cúria.
Interrompendo o padrão da transferência silenciosa de padres criminosos, o Vaticano sob Bento e Bertone afastou do sacerdócio um número significativo deles, exonerando 384 padres entre 2011 e 2012, os anos derradeiros do papado de Bento XVI. Essas cifras, porém, não foram divulgadas por sua assessoria de imprensa: foi a Associated Press que as compilou, examinando as estatísticas anuais do Vaticano. Em nenhuma de nossas conversas Bertone mencionou as exonerações, o que me pareceu outro sinal de sua inabilidade no campo das relações públicas.
Em 2010, Bento instituiu uma agência reguladora das finanças, a Autoridade de Informação Financeira (AIF), para controlar o Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Devido a suas transações financeiras obscuras, o IOR – sobre o qual o Estado italiano não possui jurisdição – é há tempos fonte de embaraço para o Vaticano, tendo figurado, no princípio dos anos 2000, entre os dez maiores paraísos fiscais offshore do mundo, abrigando evasões de impostos e lavagem de dinheiro.
Em setembro de 2010, as autoridades italianas vetaram a transferência, por parte do IOR, de cerca de 23 milhões de euros (ou 25 milhões de dólares), depois de a instituição ter se recusado a explicar a quem pertenciam esses fundos ou por que estavam sendo transferidos. A fim de solucionar a crise, Bento XVI assinou uma lei antilavagem de dinheiro que, entre outras medidas, criou a AIF com o propósito de identificar transações suspeitas e trocar informações com bancos estrangeiros. No começo de 2011, Bertone solicitou a entrada do Vaticano na Moneyval, uma agência de supervisão que o Conselho da Europa instituiu para estabelecer normas de transparência bancária aos países do continente, com direito a visitas de monitoração.
Uma luta interna irrompeu ferozmente em torno da velocidade de adaptação e da natureza da obediência devida às novas normas. Na opinião de alguns dos envolvidos, como Francesco De Pasquale, nomeado diretor da AIF, o Vaticano estava apenas criando uma impressão de transparência. Antes de uma das reuniões com a Moneyval, recorda De Pasquale, seu equivalente no Vaticano, o monsenhor Ettore Balestrero, perguntou-lhe: “Nós precisamos mesmo dizer a verdade a eles?” (Balestrero nega ter feito a pergunta, alegando sempre ter cooperado “inteiramente e com absoluta transparência no trato com os reguladores do Conselho da Europa”.)
O IOR tinha mais de 30 mil contas, milhares delas inativas ou “irregulares”: elas pertenciam a não religiosos ou a entidades que talvez tivessem sonegado impostos ou lavado dinheiro. Nem o então presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, nem De Pasquale, o diretor oficial da agência reguladora, tinham a menor ideia do que continham essas contas.
Em outra reunião, lembra De Pasquale, Gotti Tedeschi perguntou: “‘Por que não compartilhamos nossos dados?’, como se dissesse: ‘Não temos nada a esconder, certo?’” Segundo De Pasquale, os gerentes do IOR e os representantes da Secretaria de Estado responderam com um “silêncio glacial”. Em março de 2012, a filial de Milão do J.P. Morgan fechou a conta que o IOR mantinha no banco, porque a instituição não obedecera às normas de transparência. Alguns dos documentos trocados na ocasião acabaram nas mãos da imprensa.
Depois de meses de revelações constrangedoras veio o Vatileaks. Em maio de 2012, o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi publicou Sua Santidade: As Cartas Secretas de Bento XVI, um livro repleto de documentos. Gotti Tedeschi foi afastado da presidência do IOR na mesma semana, e Paolo Gabriele, o mordomo do papa, foi preso. Embora Gabriele tenha sido o responsável pelo vazamento de quase todos os documentos, praticamente ninguém com quem falei no Vaticano acredita que ele tenha agido por conta própria.
O Vatileaks foi, em parte, resultado da insatisfação generalizada com a administração de Bertone. Tanto Bertone como o Vaticano insistem que havia sólidas razões legais para não franquear aos reguladores o acesso às contas do IOR, entre elas a defesa da própria soberania do Vaticano. Foram necessários dois anos para que o IOR atingisse um nível significativo de compatibilidade com os padrões internacionais de transparência. Em silêncio, foram fechadas cerca de 4 600 contas.
Mais de uma vez, e sempre em vão, diversos cardeais instaram Bento XVI a afastar Bertone – criticado por seu amplo envolvimento nos assuntos da Itália – da Secretaria de Estado. O cardeal não só alocou protegidos em conselhos de hospitais da Igreja e de bancos italianos, como um de seus uomini di fiducia (homens de confiança) ocupou um alto cargo na RAI, a estatal italiana de rádio e televisão. Além disso, Bertone pressionou o banco do Vaticano a investir numa companhia italiana de produção de filmes e seriados religiosos para a tevê. Envolveu-se também em projetos para tentar salvar hospitais católicos italianos acusados de fraude e à beira da ruína. Por fim, participou de um jantar oferecido por Bruno Vespa, personalidade da tevê italiana (e inquilino de um apartamento de propriedade do Vaticano), na companhia de Silvio Berlusconi e outros, para discutir o futuro do governo italiano. Quando lhe perguntei se se arrependia de ter ido ao jantar, Bertone respondeu: “É claro. Se eu soubesse do barulho que as pessoas iriam fazer, não teria ido.” Nenhum desses atos é ilegal ou incomum no Vaticano, mas eles sugerem uma concepção da Igreja que é mais italiana que global.
Ao que tudo indica, Bento XVI resolveu renunciar na primavera de 2012, quando o escândalo do Vatileaks se avolumava. Estava com 85 anos e, numa viagem ao México, caiu e bateu a cabeça na pia ao se levantar durante a noite. Quando acordou na manhã seguinte, sua cabeça e o travesseiro estavam encharcados de sangue. Concluiu que não podia continuar fazendo aquelas viagens longas. Já se comprometera com uma visita ao Brasil em julho de 2013, e elegeu essa data como prazo final para uma decisão. Começou a discutir a renúncia com Gänswein e Bertone.
“Tentei demovê-lo da ideia, argumentando que ele poderia espaçar sua agenda e reduzir ou eliminar as viagens, mas ele se manteve firme”, Gänswein disse. Embora todos neguem que o Vatileaks tenha atuado como catalisador da decisão final, o vazamento foi certamente um fator importante.
É inevitável que Bento XVI venha a ser lembrado sobretudo por sua renúncia. Foi esse ato que tornou possível o papado de Francisco. A decisão, argumentam seus apoiadores, ajudou a redefinir o papado para os tempos modernos e possibilitou o programa de reformas de Francisco. “Foi um ato revolucionário”, afirmou Gänswein.
No conclave para eleger seu sucessor, reinava um forte clima anti-italiano. Os cardeais norte-americanos – catorze deles –, assim como os latino-americanos, estavam imbuídos do desejo inflexível de uma clara mudança de direção. Os norte-americanos deram apoio maciço ao candidato mais forte da América do Sul, o argentino Jorge Mario Bergoglio.
Em 1302, o papa Bonifácio VIII, sucessor do desafortunado Celestino, emitiu uma bula papal que afirmava: “Declaramos, proclamamos e definimos ser absolutamente necessário para a salvação que toda criatura humana se sujeite ao Pontífice Romano.” Em 1870, Pio IX, com sua declaração da infalibilidade papal, deu sequência a essa tradição, tanto quanto, um século mais tarde, João Paulo II, com sua ortodoxia doutrinária e a exigência de obediência estrita ao papa. Existe, contudo, uma tradição alternativa na condução do Vaticano. Nos primeiros séculos do cristianismo, a Igreja era governada por uma série de sínodos, ou conselhos, de que participavam todos os bispos que pudessem viajar até o local do encontro. O novo papa, Francisco, fez questão de se referir a si próprio como bispo de Roma, um dos muitos títulos do papa, e com isso aludiu à tradição dos antigos sínodos, quando a Igreja era governada de modo mais democrático e o papa era o bispo primaz – o primeiro entre iguais. Para combater a insularidade de uma Igreja centrada em Roma, Francisco nomeou nove cardeais para seu conselho consultivo – pelo menos um de cada continente, e mais o novo secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin. Eles funcionam como uma espécie de gabinete global. Quinze pessoas integram o comitê de supervisão econômica, que inclui oito cardeais e sete leigos com direitos iguais de voto. Francisco também nomeou um auditor-geral, que, além de poder auditar qualquer entidade do Vaticano, responde diretamente ao papa.
Se, aos olhos do público, o novo papa parece uma figura gentil e paternal, intramuros ele tem fama de durão. Na entrevista concedida à Civiltà Cattolica, Francisco se diz “um pouco ingênuo”, mas também “um pouco furbo” – astuto, esperto, malandro. São famosos seus gestos que denotam uma vida de humildade e caridade altruísta (pagar a conta do hotel depois de ter sido eleito papa, lavar os pés de viciados em drogas em recuperação, defender uma Igreja dos pobres e para os pobres), mas notória também é sua insistência, igualmente determinada, em chacoalhar as formas tradicionais de governar o Vaticano.
Para ter uma ideia de como essa revolução vem ocorrendo na prática, marquei uma visita ao recém-criado Secretariado de Economia, chefiado pelo cardeal australiano George Pell. No passado, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – o árbitro da ortodoxia doutrinária – era o mais influente dos prefeitos do Vaticano. Pell e seu Secretariado de Economia foram postos nesse mesmo nível, ou, pode-se dizer, alçados a um nível superior, uma vez que o australiano também integra o gabinete global do papa.
Para chegar ao Secretariado, é preciso atravessar o enorme Pátio do Belvedere, construção renascentista do mecenas de Michelangelo, Júlio II. Em algum ponto sob o calçamento jazem os restos mortais de um elefante, animal de estimação de Leão X. É, portanto, algo surpreendente pegar o elevador para o 3º andar e topar com sujeitos que parecem saídos de um MBA, todos falando inglês. A língua do Vaticano sempre havia sido o italiano, mesmo entre os funcionários estrangeiros. Agora Francisco concordou em tornar o Secretariado de Economia oficialmente bilíngue – trata-se do primeiro departamento do Vaticano a falar italiano e inglês –, e o inglês é, sem dúvida, o idioma preferido ali. Danny Casey, o gerente financeiro também australiano que o cardeal Pell escolheu para gerir as operações cotidianas do Secretariado, explicou: “Como o inglês é a língua internacional dos negócios, podemos contratar gente do mundo inteiro.”
Pell e Casey, que trabalharam juntos em Sydney, associaram-se a consultores internacionais para tomar pé das embaralhadas finanças do Vaticano. Padronizaram os procedimentos contábeis, identificaram os ativos de maior valor e puseram uma série de pequenas propriedades e instituições do Vaticano sob o controle direto da Santa Sé, a entidade legal que comanda o Vaticano e certas instituições em Roma e nos arredores da cidade. Em 2015, o novo Secretariado anunciou ter identificado cerca de 1,2 bilhão de dólares em ativos financeiros que nunca constaram do balanço do Vaticano. Ninguém afirmou, porém, que esses ativos ocultos serviriam a propósitos escusos. “Quando começamos a trabalhar, disseram-nos que a Santa Sé compreendia por volta de 65 instituições diferentes”, conta Casey. “Verificamos que são 136.”
Como é que alguém descobre ser possuidor de 1,2 bilhão de dólares e de 71 instituições a mais? Casey explica que as propriedades do Vaticano têm sido administradas de forma extremamente fragmentada. Estima-se que a Igreja Católica seja dona de 20% dos bens imóveis de toda a Itália e de 25% dos imóveis em Roma. As colinas da cidade abrigam inúmeras instituições religiosas – monastérios, conventos, seminários, fundações, confrarias e institutos –, tesouros ocultos dotados de belos jardins, palácios recheados de afrescos, fontes murmurantes e vistas de tirar o fôlego, muitos deles propriedades familiares – cada qual com sua história, uma doação que algum romano rico fez à Igreja séculos atrás.
Todas as instituições do Vaticano têm sido solicitadas a se adaptar aos padrões internacionais de contabilidade e supervisão, e seus administradores – padres e freiras, em muitos casos – recebem treinamento básico em ciências contábeis. Cada uma dessas instituições precisa preencher um formulário informando seus objetivos anuais e de quanto dinheiro necessita para atingi-los. Casey e sua equipe trabalham arduamente para diferenciar os ativos do Vaticano dedicados a missões religiosas – cuidar de idosos, por exemplo, ou educar os mais jovens – daqueles que “não integram essa missão”. Propriedades que nada têm a ver com a missão religiosa devem ser consideradas ativos comerciais, dos quais o Vaticano deveria tentar obter o melhor retorno financeiro possível.
Estima-se que a Propaganda Fide, ou Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos, a entidade do Vaticano que patrocina missões religiosas no exterior, seja proprietária de 10 bilhões de dólares em bens imóveis, concentrados sobretudo em Roma e dos quais fazem parte algumas das mais belas edificações históricas da cidade. Cerca de cinco anos atrás, noticiou-se que a Fide estaria oferecendo ótimos aluguéis a políticos, jornalistas e empresários italianos. Bertone me contou que o estilista Valentino pagava um aluguel bem abaixo do mercado por sua loja principal, localizada na elegante via del Babuino, num dos bairros mais caros de Roma. (Um porta-voz de Valentino declarou que a loja paga aluguel de mercado e jamais recebeu favores.)
Num artigo do Catholic Herald, publicado em língua inglesa, o cardeal Pell relembrou a pergunta que lhe fez um conhecido britânico, desejoso de saber como o Vaticano conseguira passar tanto tempo valendo-se de práticas contábeis tão informais. “Destaquei que sua pergunta era uma das primeiras que ocorriam a falantes do inglês como nós.” Mas, prosseguiu o cardeal, ela “não estava no topo da lista de prioridades de pessoas provenientes de outra cultura, como os italianos”.
O comentário não foi muito bem aceito por muitos no Vaticano. Logo depois da publicação do artigo de Pell, L’Espresso divulgaria o dossiê das despesas do cardeal, baseado em documentos internos e recibos que haviam sido repassados por funcionários do Vaticano ávidos por derrubar o australiano.
A revista mostrava que Pell e Casey haviam, em poucos meses, gastado mais de 500 mil euros em despesas de trabalho. Casey recebe um salário de 15 mil euros mensais (livre de impostos), uma soma colossal para um empregado do Vaticano. Pell incluiu nas despesas a indumentária religiosa (alguns milhares de euros). Os dois voavam com frequência na classe executiva e ofereciam champanhe a consultores de negócios. Tudo isso seria praxe no mundo empresarial, mas estava fora de sintonia com a modéstia e a simplicidade praticadas pelo papa Francisco.
Ainda que o pontífice proteste contra as formas mais selvagens do capitalismo irrefreado, no gerenciamento das finanças do Vaticano ele tem se socorrido de grandes empresas, como a McKinsey, a Deloitte e a EY (ex-Ernst & Young). Recorre também a profissionais leigos, conferindo-lhes tarefas administrativas antes a cargo de cardeais despreparados para desempenhá-las. A nova equipe tem tentado instituir o chamado “princípio dos quatro olhos” – todas as decisões financeiras importantes precisam ser examinadas por duas pessoas. O propósito é reduzir os feudos internos que até recentemente vigoravam no Vaticano – um único cardeal comandava bilhões de dólares em bens imóveis, enquanto outro ficava responsável por um sistema hospitalar multibilionário.
Há provas de que Francisco e sua equipe produziram certo impacto. Nos últimos dois anos do pontificado de Bento XVI, a AIF só reportou sete casos de “atividades suspeitas”. Em 2013, primeiro ano do papado de Francisco, foram 202 relatos, caindo para 147 em 2014. Numa investigação da polícia italiana sobre corrupção em Milão, uma escuta gravou um importante político se queixando da nova atmosfera no Vaticano (o político foi posteriormente condenado por recebimento de propina): “Não há proteção no Vaticano, porque o novo papa não dá a menor bola para o mundo italiano e, entre os cardeais, já não tem ninguém que possa oferecer proteção.”
Não surpreende que a firme esperança do Secretariado de Economia seja a de gerar mais receita, “fazer mais dinheiro com nossos ativos, para que a gente possa fazer o bem em maior escala”, diz Casey. O IOR, uma das principais fontes de receita, tem apenas cerca de 6 bilhões de dólares em depósitos e ativos. Os ativos em bens imóveis da Igreja Católica no mundo todo já foram estimados em 3 trilhões de dólares, soma comparável ao Produto Interno Bruto da Rússia, da Índia ou do Brasil.
Alguns reformadores das finanças da Santa Sé vêm insistindo na criação de uma organização superior, a ser denominada Gerenciamento de Ativos do Vaticano, que, de início, assumiria a gestão dos ativos financeiros do Estado da Cidade do Vaticano e de suas várias entidades, e, mais adiante, a de todos os seus ativos imobiliários também. O banco do Vaticano, por sua vez, propôs a criação de um fundo de investimento em Luxemburgo que ofereceria uma opção atrativa de investimento aos correntistas do IOR. Francisco rejeitou a proposta.
Segundo Piero Schiavazzi, jornalista que muito tem escrito sobre o Vaticano, “há, ali, uma luta em curso entre as mentalidades mais capitalistas, como a do cardeal Pell, e os que querem algo diferente. Os primeiros são a favor de operar dentro do sistema capitalista e fazer tanto dinheiro quanto possível para viabilizar as boas ações. O outro grupo, que talvez conte com a simpatia de Francisco, acredita que o Vaticano deve usar seu dinheiro para mudar o sistema, isto é, investir diretamente em países pobres e mudar sua estrutura”. Em julho deste ano, o papa clamou por uma nova ordem econômica voltada para os pobres. Ele declarou: “Não tenhamos medo de dizer: queremos mudança, mudança de fato, mudança estrutural.” E condenou um sistema que “impôs a mentalidade do lucro a qualquer preço, sem nenhuma preocupação com a exclusão social ou com a destruição da natureza”. Essa crítica ao capitalismo irrefreado está também no cerne da recente encíclica Laudato Si’, que advoga um empenho do mundo todo para a redução do aquecimento global: “Apelo, pois, urgentemente por um novo diálogo sobre que futuro estamos criando para nosso planeta. […] A mudança climática é um problema global de graves implicações: ambientais, econômicas, políticas e na distribuição dos bens.”
Em seus primeiros dois anos de papado, Francisco, com sua modéstia e retórica inclusiva, foi suficientemente hábil para, sem qualquer mudança efetiva na doutrina, transmitir a impressão de uma Igreja mais aberta e tolerante. No começo de setembro, anunciou que católicas que fizeram aborto podem ser perdoadas, caso se confessem com sinceridade ao longo do próximo Ano Santo [1] – os anos santos, ditos de jubileu, são tempos extraordinários de perdão e remissão dos pecados, convocados em geral a cada 25 ou 50 anos. No passado, o aborto era pecado que motivava excomunhão imediata. Mas Francisco estava se valendo de um precedente: o Vaticano já autorizou bispos a, sob circunstâncias especiais, conceder a absolvição.
Vez por outra, Francisco escapa de questões controversas simplesmente mudando de assunto, ressaltando que as missões centrais do cristianismo são amor, caridade, misericórdia e dedicação aos pobres. “Não podemos insistir apenas em questões relacionadas ao aborto, ao casamento gay e ao uso de métodos contraceptivos”, declarou na entrevista à Civiltà Cattolica. Mesmo sua decisão de promover um sínodo sobre a família, que em outubro de 2014 e um ano depois, em 2015, discutiu temas como a homossexualidade e o divórcio, foi cuidadosa, e não desprovida de sólidos precedentes: João Paulo II promoveu sínodo semelhante em 1980, mas com outro espírito. “A maioria dos bispos desperdiçou grande parte de seus discursos citando o papa João Paulo II para o próprio João Paulo II”, escreveu recentemente o padre Thomas Reese, jesuíta e analista do Vaticano. A notável exceção ficou, então, a cargo do presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, arcebispo John R. Quinn, de São Francisco, que sugeriu um diálogo sobre possíveis exceções na proibição aos contraceptivos. “A reação negativa do Vaticano foi feroz”, prossegue Reese. “Muitos sentiram que a influência de Quinn na Igreja declinou rapidamente depois daquele sínodo.”
João Paulo II, incomodado com a discordância de tantos católicos americanos com a posição da Igreja sobre moralidade sexual, esforçou-se em nomear bispos alinhados com a ortodoxia em questões morais e sexuais. Assim, embora os católicos norte-americanos estejam entre os mais liberais do mundo, alguns dos bispos a representá-los se opõem à maioria das reformas propostas por religiosos mais progressistas, empenhados em tornar a Igreja mais tolerante em relação a divorciados e homossexuais. Cauteloso, Francisco tem evitado tomar partido nesse debate, mas parece ter revelado suas propensões quando, por exemplo, se referiu à comunhão “não como uma recompensa para os perfeitos, e sim como um remédio para os enfermos”.
Antes do sínodo de 2014 sobre a família, Francisco fez circular pelas paróquias um questionário que incluía questões como contracepção e divórcio. O abismo entre a doutrina da Igreja e as crenças e o comportamento dos católicos efetivamente praticantes parece ter atingido dimensões perigosas. Nos Estados Unidos, a Igreja vem perdendo terreno. Cerca de 32 milhões de pessoas de criação católica a abandonaram – em parte porque concluíram que sua hierarquia é surda às preocupações cotidianas das pessoas comuns.
No sínodo do ano retrasado, durante as discussões sobre o divórcio, a coabitação sem casamento e a homossexualidade, os progressistas propuseram o conceito de “gradualismo” – ou seja, os pecadores poderiam estar se encaminhando para a verdade, sem ter ainda chegado a ela. Assim sendo, coabitantes não casados não deveriam ser condenados, e sim incentivados a se casar. “Todas essas situações requerem uma resposta construtiva, que busque transformá-las em oportunidades que conduzam a um casamento e a uma família em conformidade com o Evangelho”, dizia um primeiro rascunho, que também mencionava “dons e virtudes” de homossexuais que precisavam ser reconhecidos. Um dos principais progressistas, o cardeal alemão Reinhard Marx, explicou-o da seguinte maneira ao sínodo: “Tomem como exemplo dois homossexuais vivendo juntos e cuidando um do outro há 35 anos, inclusive na última fase de suas vidas. Como posso dizer que isso não tem valor?” Quanto aos católicos divorciados que tornaram a se casar e desejam comungar, os gradualistas sustentam que eles pecaram, se arrependeram e estão tentando cumprir suas obrigações familiares num segundo casamento.
O cardeal Raymond Burke, ex-arcebispo de Saint Louis e posteriormente chefe da mais alta corte do Vaticano, opôs-se com veemência ao empenho reformista. Certa ocasião, Burke declarou que negaria comunhão ao candidato à Presidência dos Estados Unidos, John Kerry, porque o democrata julgava que a decisão sobre o aborto cabia à mulher. Depois do sínodo, o cardeal fez uma crítica implícita a Francisco, dizendo que o papa estava semeando “confusão” e que a Igreja se tornara “uma nau sem rumo”. Francisco mandou transferi-lo para um posto menor.
Sites católicos conservadores advertem contra o “catolicismo light”. De fato, quando os organizadores do sínodo publicaram um relatório provisório que incluía várias das posições da ala progressista, irrompeu uma pequena rebelião. Os tradicionalistas julgaram que os autores do documento tinham dado uma espécie de golpe de Estado, porque ele não refletia a posição dos bispos. Numa versão posterior, aprovada por estes, algumas das passagens mais controversas haviam sido modificadas ou eliminadas. O trecho sobre os “dons e virtudes” dos homossexuais desaparecera. Quando o relatório final do Vaticano foi publicado, ele revelava os votos favoráveis e contrários a cada parágrafo. As passagens contestadas (sobre gays e católicos divorciados que tinham se casado de novo) foram as únicas a não atingir a maioria de dois terços entendida como consenso.
“A Igreja é uma comunidade, e não uma democracia”, disse o monsenhor Vincenzo Paglia, chefe do Pontifício Conselho para a Família. A Igreja, contudo, prefere as amplas maiorias, a fim de evitar facções e rupturas. Francisco tem trabalhado arduamente para modificar o consenso no interior da Igreja, em vez de impor a mudança.
“Ele é bem jesuíta quando diz ou faz alguma coisa que parece empurrar a discussão para bem mais longe do que ele próprio estaria disposto a acompanhar”, afirma Andrea Gagliarducci, jornalista e tradicionalista católico que escreve artigos muitas vezes bastante críticos ao papa. “E isso conduz as pessoas para bem mais adiante do que elas pretendiam ir.”
No caso dos fiéis homossexuais, por exemplo, até o cardeal Bertone concorda que a Igreja precisa trabalhar por uma atmosfera convidativa e acolhedora. Ele destaca que Bento XVI, quando ainda cardeal nos anos 80, já havia deixado claro que a Igreja se opunha a todo e qualquer gesto para aviltar ou discriminar homossexuais. Quando questionado, Bertone se esquivou de comparar as palavras do cardeal Ratzinger a respeito da homossexualidade (“um mal moral intrínseco”) com as do papa Francisco (“quem sou para julgar?”). Ainda assim, o abrandamento de seu próprio discurso sobre o tema é indício de que Francisco mudou o debate dentro da Igreja. Seguir mudando, mas insistir em que nada mudou, é, afinal, um traço distintivo do catolicismo. Em 1845, o cardeal Newman (que, depois, se opôs à declaração da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I) escreveu que, embora não houvesse mudança no paraíso, “aqui embaixo, viver é mudar, e ser perfeito é ter passado por frequentes mudanças”.
Pensei nessa Igreja sempre cambiante e sempre a mesma ao visitar um cardeal já idoso. Quando toquei a campainha de seu apartamento, num prédio perto do Vaticano, fui recebido por um homem nada imponente de 80 e poucos anos. No vestíbulo, havia um retrato dele próprio, em tamanho real, de corpo inteiro. Depois, pouco adiante, notei outro grande retrato pintado.
Ele me conduziu até a sala de estar, onde havia pelo menos sete outros retratos de sua pessoa, todos em tamanho real. O corredor principal era ladeado de fotografias dos muitos líderes mundiais com os quais o cardeal estivera: algumas o incluíam, outras estavam autografadas e dedicadas a ele. O sacerdote não parecia se dar conta de que talvez se aplicasse a ele a veemente repreensão feita por Francisco a seus cardeais, no Natal de 2014, versando sobre a natureza narcisista e vaidosa da Cúria Romana. Meu anfitrião defendeu a linha do Vaticano, segundo a qual o papado de Francisco não constitui uma revolução, e sim um desenvolvimento do legado de seus predecessores. As diferenças, disse, são de personalidade e ênfase, inerentes às origens sul-americanas do pontífice. “Cada papa é diferente”, afirmou. “Cada um reflete sua própria época e é o papa certo para sua época específica. E assim a Igreja vai se adaptando. Esse é o segredo que a faz sobreviver há mais de 2 mil anos, com a ajuda do Espírito Santo.”
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[1] O Ano Santo começou em 8 de dezembro de 2015 e vai até 20 de novembro de 2016.