Folguedo no Rio de Janeiro: o aniversariante, Adilson Oliveira Coutinho Filho (segunda foto, da esq. à dir.), está foragido, após ser acusado de liderar uma organização criminosa CRÉDITO: BETO NEJME_2021
Efeito fumacê
A festa de um poderoso bicheiro no templo da elegância carioca
Plínio Fraga | Edição 181, Outubro 2021
Para quem já tem tudo, o melhor presente é nada – costuma repetir, num misto de orgulho e gentileza, Adilson Oliveira Coutinho Filho, que se apresenta como empresário da construção civil. Aos quinhentos convidados de sua festa de aniversário de 51 anos, ele fez um único pedido: que não usassem seus celulares para fotos ou filmagens no hotel Copacabana Palace. Era uma exigência difícil de ser cumprida, tanto mais que entre os presentes havia gente ligada à música, ao futebol e ao Carnaval.
Incapazes de resistir à tentação, os convidados publicaram nas redes sociais suas fotos em roupas de gala – o traje exigido na festa – e vídeos dos shows dos cantores que comandaram a noite de 14 de maio passado no hotel: o sertanejo Gusttavo Lima, a funkeira Ludmilla e os sambistas Alexandre Pires e Mumuzinho. As imagens, que mostram aglomerações durante a celebração, foram retransmitidas milhares de vezes na internet por pessoas interessadas em denunciar o desrespeito às regras sanitárias, e logo no hotel que é conhecido como o templo da elegância carioca. Um cuidado, entretanto, todos tomaram na festa: não fotografaram nem filmaram o anfitrião.
A cautela de Coutinho Filho com as imagens não estava relacionada ao receio de que a festa causasse indignação na sociedade por quebrar as regras da quarentena quando elas ainda eram rigorosas. Afinal, alguns cuidados foram tomados antes: houve redução do número de presentes, distribuição de máscaras e realização de testes de Covid-19 em convidados. A prefeitura também fiscalizou os salões do Copacabana Palace por volta de 22 horas e, não constatando nenhuma irregularidade naquele momento, autorizou a realização da festa.
O aniversariante estava preocupado com o vazamento de fotos suas por outro motivo: ele é acusado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro de atuar como bicheiro e ser sócio de milicianos e traficantes na venda de cigarros populares na Baixada Fluminense. Desde que foi alvo, em 2011, de uma operação policial contra a cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro, Coutinho Filho evita que seu rosto seja difundido na mídia e tem horror a fotos e filmagens. A polícia dispõe de apenas quatro fotografias dele, feitas há mais de dez anos.
A teoria do caos afirma que o simples bater de asas de uma borboleta no Brasil é capaz de provocar, algum tempo depois, um tornado no Texas. Uma adaptação carioca dessa tese diria que a suave tragada de um cigarro na Baixada Fluminense pode resultar numa pândega de 4 milhões de reais no Copacabana Palace – ou 8 mil reais gastos com cada um dos quinhentos convidados. Graças a esse peculiar “efeito fumacê”, os ganhos obtidos com a venda ilícita de cigarros geram uma noite de arromba na Avenida Atlântica.
O convite da festa de Coutinho Filho, em formato de vídeo curto em preto e branco, mostrava homens de terno em conversação privada nos salões do Copacabana Palace, copos sendo supridos com uísque e closes de charutos fumegantes (embora seja proibido fumar na área interna do hotel). Por fim, sobre a imagem de um rastro de fumaça surgia o aviso Save the date, com o nome do aniversariante, a data e o local da festa. A trilha do convite talvez ajude a esclarecer o peculiar clima de mistério das imagens: foi escolhido um trecho da música Brucia la Terra (Queima a terra), do filme O Poderoso Chefão.
A bela canção de Nino Rota é o tema principal da trilha sonora do filme de Francis Ford Coppola sobre a trajetória de um mafioso siciliano em Nova York. Mas não é o filme que agrada especialmente a Coutinho Filho. Ele prefere o livro em que Coppola se baseou, escrito pelo norte-americano Mario Puzo e cujo título original é The Godfather (O padrinho). É com esse epíteto, aliás, que os amigos costumam se referir a Coutinho Filho. Alguns recorrem diretamente ao termo em inglês, chamando-o, por exemplo, de “o godfather”. Outros, ainda mais preocupados em agradá-lo, até mandaram imprimir a epígrafe do livro de Puzo em camisetas: “Por trás de toda grande fortuna, existe um crime (Honoré de Balzac).” Trata-se de versão abreviada de uma famosa sentença do escritor francês no romance O Pai Goriot: “O segredo das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido, pois foi muito bem realizado.”
No dia da festa, Coutinho Filho e alguns familiares se hospedaram no próprio Copacabana Palace, em suítes com vista para o mar cuja diária custa em torno de 5 mil reais. Às dez da noite começaram a chegar os convidados. O aniversariante alugou três salões interligados no segundo andar, com capacidade total para 1,2 mil pessoas. Enquanto os convidados festejavam e dançavam, ele circulou de maneira discreta em apenas um dos salões, preferindo, na maior parte do tempo, permanecer sentado num sofá, bebericando ao lado da família. Sua equipe de cerca de trinta seguranças cuidava de, educadamente, lembrar sobre a restrição a fotos e filmagens aos que se aproximavam com o celular na mão. A festa terminou por volta das quatro da manhã do sábado.
Uma consulta à lista dos quinhentos convidados mostra que a maioria provinha de dois territórios aparentemente muito distintos: a rica Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste do Rio, e o município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde Coutinho Filho nasceu. É entre uma região e outra que ele transita, em meio aos universos do jogo do bicho, do Carnaval e do futebol.
Na Barra, fica sua cobertura de frente para o mar, e foi nesse bairro que ele criou e preside há doze anos o Clube Atlético da Barra da Tijuca. Em Duque de Caxias, além de ser um apoiador da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, Coutinho Filho é, segundo o Ministério Público, um dos maiores proprietários de máquinas caça-níquel – um negócio ilegal, pois os jogos de azar estão proibidos no Brasil desde 1946.
Após um ano e meio de pandemia, as festas clandestinas tornaram-se cada vez mais frequentes no Rio de Janeiro – o coletivo Brasil Fede Covid registrou mais de 3 mil, desde março de 2020, algumas com até 5 mil participantes. Os protestos contra essas transgressões à quarentena também eram frequentes. Em seu aniversário, Coutinho Filho conseguiu, ele mesmo, ser bastante discreto, mas os vídeos da festa retransmitidos inúmeras vezes vieram acompanhados de protestos contra o comportamento irresponsável de parte da “elite” carioca.
Alguns chegaram a contrapor o rega-bofe no hotel aos bailes em favelas do Rio de Janeiro, perguntando por que estes sempre eram investigados por violação da quarentena e suspeitas de financiamento do tráfico de drogas, enquanto comemorações como a de Coutinho Filho eram toleradas pelas autoridades. “O rapper Djonga foi cancelado porque fez um show na Vila do João. Eu passei cinco horas na delegacia explicando o que estava fazendo num baile no bairro Santa Cruz”, disse Wallace Aparecido, o DJ Vijay, um dos apoiadores do Baile da Disney, realizado no Complexo da Maré (onde fica a Vila do João) mesmo nos piores momentos de transmissão da Covid-19. “Quando a festa é na comunidade, a polícia interrompe e leva todo mundo para a delegacia. Quando é no Copa, todo mundo fica pianinho. Os bacanas são paparicados. A favela é criminalizada”, protestou o DJ.
Mas há quem refute a ideia de que a festa de Coutinho Filho só tinha “bacanas” e ache preconceituosos certos comentários difundidos pela mídia, como o de que os convidados entraram pelos fundos do hotel para escapar de eventual vigilância da polícia ou da imprensa. “Todo mundo que já foi ao Copa para uma festa sabe que a entrada dos eventos é pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana [que fica nos fundos do hotel]. As escadas de acesso aos salões são por ali, não pela entrada da Avenida Atlântica”, disse um maquiador carioca, que pediu para não ser identificado a fim de evitar retaliações e constrangimentos nas redes sociais. Ele foi convidado para o aniversário por ser vinculado à Acadêmicos do Grande Rio, a escola patrocinada por Coutinho Filho.
O maquiador contou que muitos dos participantes da festa estavam pisando pela primeira vez no Copacabana Palace e dividiu os presentes em dois tipos: os “convidados-raiz” e os “convidados-Nutella”. Entre os primeiros, estariam os amigos de Coutinho Filho e seus parceiros de samba e futebol, como o ex-zagueiro do Botafogo Luis Verdini, o ex-artilheiro Dodô e o cantor Dudu Nobre, além do vice-presidente da escola de samba Unidos de Vila Isabel, Luiz Guimarães, filho de um patriarca do jogo do bicho, o ex-capitão do Exército Ailton Guimarães Jorge.
Luiz Guimarães, de 24 anos, faz parte de uma nova geração que tenta se desvencilhar da imagem dos pais, negando qualquer vínculo com negócios ilícitos e se apresentando não como jovens bicheiros, mas como empresários modernos e descolados que investem em empresas de shows e bailes. Colecionador de carros sofisticados e apaixonado por música popular, ele se alinha ao funk ostentação, que hoje ganha espaço até nas quadras de escolas de samba. “A gente sonha, e Deus realiza”, escreveu Luiz Guimarães em uma rede social, a mesma em que postou uma foto sua de smoking antes de ir para a festa de Coutinho Filho, a quem chamou de “padrinho de Caxias”.
Os “convidados-Nutella” seriam, na segmentação do maquiador, jovens de outra extração social que se aproximaram da família de Coutinho Filho por causa da escola de samba e dos camarotes que ele ajuda a organizar no Carnaval e em outras festas no Rio de Janeiro. Nesse grupo estão herdeiros de empresários e políticos, além de atores e atrizes aspirantes, cantores aspirantes e modelos aspirantes.
Um desses convidados-Nutella foi Isabelle “Bebel” Lobão. Jovem, bonita e rica, ela é neta de Edison Lobão, ex-governador do Maranhão e ex-ministro de Minas e Energia (nos governos Lula e Dilma). Com 24 anos, ela se define como influencer e em sua página no Instagram registrou como mote a frase Don’t just exist… live (Não apenas exista… viva). Semanas antes da festa de Coutinho Filho, a influencer-que-não-existe-apenas havia levado 24 amigos a São Luís, no Maranhão, para comemorar seu aniversário numa casa cedida por um empresário.
Bebel Lobão é a melhor amiga da também jovem, bonita e rica Duda Nogueira, de 24 anos, filha de Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil do presidente Jair Bolsonaro, e da deputada federal Iracema Portella (PP-PI). Além de influencer, Nogueira se diz modelo. Como as duas moram em Brasília, na viagem ao Rio para a festa de Coutinho Filho elas se hospedaram no Copacabana Palace. A empresária Bia Clark, sócia da marca de bolsas artesanais Palha Nordestina, foi uma das companhias mais próximas das jovens durante o aniversário. Procuradas pela piauí, nenhuma delas quis dar entrevistas sobre sua presença na festa.
Depois da comemoração, o Copacabana Palace foi multado em 15 mil reais pela Prefeitura do Rio por causa da aglomeração generalizada e da falta de distanciamento e uso de máscara por parte dos convidados, como enumerou uma nota da Secretaria Municipal de Ordem Pública, a mesma que havia liberado a realização da festa momentos antes de sua realização. O hotel pagou a multa e prometeu reforçar os procedimentos sanitários. Segundo o cantor Dudu Nobre, o distanciamento social foi uma preocupação dos que organizaram a celebração. “Havia quinhentas pessoas onde cabia mais que o dobro, e todo mundo foi testado”, disse ele, que ressaltou não ter ido ao Copacabana Palace a trabalho. “Fui apenas prestigiar o aniversário de um amigo.” Embora não tenha sido contratado para fazer um show, Nobre acabou subindo ao palco para dar uma canja em homenagem a Coutinho Filho.
A empresa que produziu o aniversário no Copacabana Palace – dos shows à decoração e ao bufê – foi a cs Eventos, da promoter Carol Sampaio, que se destacou no Rio de Janeiro ao organizar casamentos e aniversários de ricos e famosos, além de criar festas badaladas, como o Baile da Favorita, uma noitada de funk que no início atraía artistas e jovens da Zona Sul à quadra da escola de samba Acadêmicos da Rocinha. Em nota, Carol Sampaio disse que seus eventos seguem todos os protocolos sanitários em vigor, adequando o número de convidados ao tamanho dos locais para evitar aglomeração. Mas reconheceu a dificuldade de fazer os festeiros no hotel manterem distância uns dos outros e não arrancarem a máscara para comer, beber e dançar.
Sampaio, que não compareceu ao aniversário, foi um dos alvos prediletos dos que protestaram nas redes sociais contra a comemoração no Copacabana Palace. A promoter evitou responder aos ataques diretamente e argumentou que as festas e os eventos são um filão importante da cadeia produtiva do Rio de Janeiro, pois geram emprego e fazem o capital circular.
O Ministério Público do Rio quer, justamente, saber mais detalhes sobre o capital: como está circulando, de onde vem, para onde vai e de que maneira. Por isso, pediu que Sampaio e os artistas que fizeram shows no aniversário – e sob os quais não pesa até agora nenhuma acusação – apresentem as notas fiscais dos serviços prestados. O objetivo do Ministério Público é descobrir como Coutinho Filho custeou a festa, pois suspeita-se que ele tenha usado uma de suas empresas como fachada. Segundo um convidado da festa, o cachê de 800 mil reais do cantor sertanejo Gusttavo Lima foi pago em dinheiro vivo, na noite da festa. Procurado pela piauí, Lima não quis dar entrevista.
Treze dias depois do aniversário, o Ministério Público acusou Coutinho Filho formalmente de liderar, junto com seu irmão Cláudio Nunes Coutinho, uma organização criminosa – a Banca da Grande Rio –, direcionada à prática de crimes de extorsão, roubo, corrupção, lavagem de dinheiro e delitos tributários. A organização é também acusada de impor pela violência, com o apoio da milícia ou do tráfico, o consumo do cigarro popular que vende.
A investigação policial a respeito da Banca da Grande Rio começou depois de um acordo de delação premiada feito com um comerciante da Baixada Fluminense que era associado à organização, mas se desligou dela após acumular dívidas e ser ameaçado. É um caso raro de delação, pois nas regiões dominadas pela Banca o medo é regra – bem como o silêncio. Na denúncia que apresentou, o Ministério Público chegou a informar à Justiça que não tem um rol de testemunhas porque, no caso, “não há como se esperar que testemunhas e vítimas compareçam em juízo para falar sobre os fatos”. Os oito promotores responsáveis pela investigação afirmam que “o risco de retaliações, ameaças e consequências piores a tais pessoas é concreto”.
Eles descreveram o funcionamento dos negócios da organização. De um lado há os pequenos e médios comerciantes que são obrigados a vender os cigarros produzidos por ela, “observando as condições de venda e de preço impostas com grave ameaça”. E, de outro, há uma “rebuscada estrutura criminosa” que movimenta milhões de reais em atividades ilícitas, feitas em associação com a milícia ou o tráfico de drogas, contando com dezenas de membros e capaz de corromper agentes públicos para evitar que seus comparsas sejam responsabilizados pelos crimes que cometem.
Em 24 de junho, um mês e dez dias após o aniversário, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), braço do Ministério Público, liderou com a Polícia Federal a Operação Fumus para prender Coutinho Filho e outros 39 membros da Banca da Grande Rio, entre eles, cinco policiais militares. Contudo, informações sobre a operação, iniciada às 6 horas, vazaram – e os contraventores escaparam. Às 6h15, já havia um advogado a serviço dos suspeitos em uma das casas visadas pela polícia.
Desde então, o aniversariante está foragido. Antes de sumir, esvaziou as contas bancárias pessoais e de suas empresas no Bradesco, no Itaú e na XP. Estão todas zeradas, como informou o Banco Central ao Ministério Público. Em 2011, durante uma operação policial da qual ele foi alvo, foram encontrados quase 5 milhões de reais em dinheiro vivo escondidos em paredes falsas e na rede de esgoto de uma de suas casas. Coutinho Filho parece ter aprendido a lição. Nas casas que foram vasculhadas em junho passado, nada foi achado: nem documentos nem dinheiro.
O Ministério Público está investigando o vazamento da Operação Fumus. A principal hipótese, para variar, é que policiais tenham passado informações à quadrilha. Promotores encontraram em áudios de conversas de membros da organização criminosa referências a pagamento de propinas a um batalhão da Polícia Militar e a uma delegacia da Polícia Civil, no total de 15 mil reais.
Os quatro advogados de Coutinho Filho impetraram um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio. Até a conclusão desta edição, o pedido ainda não havia sido apreciado. Os advogados afirmam que ele trabalha regularmente no mercado de distribuição de cigarros, com empresa legalmente constituída, recolhendo todos os impostos. Negam “enfaticamente” o envolvimento de seu cliente em “qualquer atuação para manter monopólio de mercado ou vedação de vendas de marcas concorrentes” e dizem confiar que ele terá reconhecida a sua inocência.
O Instituto Jogo Legal, criado para apoiar a legalização das apostas no Brasil, calcula que o jogo do bicho movimente, de maneira clandestina, mais de 12 bilhões de reais e empregue cerca de 500 mil pessoas. Mas a atividade tradicional do jogo do bicho, na qual as apostas são colhidas por apontadores nas ruas, está em declínio. Com a facilidade de importação e instalação, as máquinas de caça-níquel tomaram o lugar como principal forma de faturamento dos gerenciadores da jogatina.
Além do uso massivo das máquinas eletrônicas, Coutinho Filho inovou na forma de ganhar e lavar dinheiro, de acordo com as investigações do Ministério Público. Ele compra a produção integral de uma marca de cigarros, o Club One, e comercializa o maço a 3,50 reais – valor abaixo do fixado em lei para cigarros, que é de 5 reais. O preço cobrado fez com que o Club One tomasse espaço até de produtos similares contrabandeados do Paraguai.
A marca Club One, cuja venda foi autorizada pela Anvisa, hoje domina cerca de 15% do mercado de cigarros do estado do Rio, conforme pesquisa do setor. É produzida pela Cia. Sulamericana de Tabacos em uma fábrica em Duque de Caxias. Em julho, depois da Operação Fumus, a Sulamericana teve seu registro de funcionamento cancelado pela Receita Federal por causa de dívidas de 1,1 bilhão de reais, mas a decisão foi suspensa após a empresa impetrar recurso em segunda instância.
Os promotores do Gaeco investigam os laços da Sulamericana com a Banca da Grande Rio. Para eles, a relação “não é estritamente comercial, pois existem dados concretos do envolvimento da empresa com as atividades ilícitas desenvolvidas pela organização criminosa”. Os promotores acusam a companhia, por exemplo, de emitir notas fiscais falsas com valor superior ao efetivamente pago pelas empresas de Coutinho Filho. Tal manobra permite que a Banca da Grande Rio cobre barato pelos cigarros e crie um lastro para lavar dinheiro. Os promotores detectaram ainda que grande parte dos pagamentos à Sulamericana foi feito em espécie e que empresas-fantasmas e laranjas são utilizados para ocultar os reais responsáveis pelas operações financeiras entre a fábrica e a organização criminosa.
A Sulamericana nega praticar irregularidades e diz que apresentará sua defesa à Justiça no momento adequado. A empresa afirma que é um dos maiores fabricantes de cigarros do Brasil e que seus produtos – entre eles o Club One, uma das suas “marcas nobres” – são negociados com distribuidores de todo o país, sempre conforme as leis.
De acordo com os promotores, a organização de Coutinho Filho impõe a venda de seu cigarro aos pequenos comerciantes e camelôs. Isso ocorre em áreas controladas seja por milicianos, seja por traficantes, que dão apoio à Banca e se tornam sócios no negócio. Uma rua do bairro Parque Paulista, em Duque de Caxias, tornou-se símbolo da investigação: a milícia vende Club One no asfalto – enquanto o tráfico vende na favela, à qual se tem acesso por vielas próximas. O áudio de um traficante que consta da denúncia explicita a divisão dos negócios: “Eu deixei bem ciente pra geral, mano. Quem tiver pegando cigarro comigo aqui é pra vender dentro da comunidade, lá fora na pista lá é dos caras de contravenção, tá ligado?” E o traficante conclui: “Assim, não é preciso ter guerra, tá ligado, mesmo porque, também, eu tô pegando o bagulho aí, diretamente com vocês aí, certo, mano?”
A combinação de negócios com milícia e tráfico produz lucros portentosos – 45 milhões, entre 2019 e 2021, segundo o Ministério Público – e permite ainda lavar dinheiro. Só em Duque de Caxias, a Banca da Grande Rio vende 10 milhões de cigarros por mês e lucra 1,5 milhão de reais. O lucro obtido daria para bancar a cada três meses uma festa como a de Coutinho Filho no Copacabana Palace.
As únicas quatro imagens que a polícia dispõe de Coutinho Filho estão relacionadas ao Clube Atlético da Barra da Tijuca, o time de futebol que ele fundou e preside. Numa das fotos feita durante um jogo, o empresário-bicheiro aparece sorrindo e com a camisa da equipe, para a qual surrupiou o verde, o branco e o grená do Fluminense, clube de sua paixão.
Quando criou o Clube Atlético da Barra da Tijuca, Coutinho Filho cercou-se de jogadores que haviam brilhado no Fluminense, como Ézio e Dodô. Acumulava a função de presidente com a de atacante do time. Entre 2011 e 2018, jogou 63 partidas e marcou dez gols, atuando como um veterano, pois na estreia já estava com 41 anos. Sete anos depois, ele se aposentou do futebol.
O seu gol mais famoso foi marcado em 2013. Adilsinho, como é chamado no time e conhecido entre amigos, entrou em campo aos 18 minutos do segundo tempo, quando o Barra perdia para o Bonsucesso por 1 a 0. Aos 41 minutos, o Barra empatou com gol de Jocian. Aos 47 minutos, Adilsinho acertou um improvável chute de fora da área e classificou seu time para a semifinal do campeonato carioca da quarta divisão. Foi a melhor posição que o Clube Atlético Barra da Tijuca atingiu até hoje.
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