ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Ela não volta na quinta
Uma diarista decide abandonar os cinco empregos
Tiago Coelho | Edição 164, Maio 2020
Os dois ônibus que ela pegava ainda de madrugada para ir ao trabalho, estavam sempre cheios. Os olhares dentro da condução ficavam tensos quando alguém espirrava ou tossia. Repetidas vezes, a diarista Sandra Gonçalves, de 47 anos, moradora de Magé, na Baixada Fluminense, retirava o álcool em gel da bolsa para esfregar nas mãos. Na manhã do dia 18 de março, quarta-feira, ela decidiu: “Não saio mais de casa.” E telefonou a cada um de seus clientes para comunicar a decisão.
Nos dias anteriores, Gonçalves vinha se informando pela televisão sobre os riscos de transmissão do novo coronavírus. Seu medo aumentou ao saber que pessoas com problemas respiratórios integravam o grupo de risco. A diarista é mãe de três filhas, e as duas que moram com ela, de 17 e 18 anos, ambas com bronquite alérgica, se resguardaram em casa tão logo foram suspensas as aulas na rede pública de ensino. Além disso, ela vive com o marido e as filhas numa casa vizinha à de sua mãe, que pela idade avançada também faz parte do grupo de risco.
Com a decisão tomada, a diarista teve que se preocupar com uma solução para o sustento da família, pois vem do seu trabalho a principal fonte de renda da casa. Ela prestava serviços em cinco residências, quatro na Zona Sul e uma na Barra da Tijuca. Apenas dois dos clientes decidiram manter a remuneração.
Uma das clientes, de 80 anos, insistiu que precisava dos serviços da diarista. Gonçalves argumentou que, caso continuasse trabalhando, colocaria em risco não apenas a sua família e a si mesma, mas também a própria senhora. A mulher encerrou a conversa dizendo que, se Gonçalves não comparecesse ao trabalho na semana seguinte, contrataria outra profissional. “Respondi que ela devia fazer como preferisse, mas que eu não sairia de casa”, contou. “Esse emprego eu sei que não vou ter mais quando acabar a pandemia. Mas estava certa da minha decisão.”
Outra cliente, que tem filhos pequenos, foi a que mais insistiu para que a diarista não deixasse o serviço. “Ela perguntou para mim como iria fazer com as crianças, contando apenas com o auxílio da babá. Chegou a dizer que era bobagem o que estavam falando sobre o vírus e a pandemia, um exagero, que não era para eu me preocupar. Respondi que, bobagem ou não, eu não arriscaria.”
Como é trabalhadora autônoma, Gonçalves não tira férias. Gosta de chegar bem cedo nas casas em que trabalha, pois assim termina as tarefas a tempo de voltar para cuidar de sua família. O trajeto de Magé para a Zona Sul costuma durar cerca de duas horas. Se ela sai de casa ou volta para lá nos horários de pico, pode gastar três horas. Ganhava em média 1 460 reais mensais pelo trabalho de limpeza das cinco casas. Sem a remuneração de três delas, sua renda caiu para 410 reais.
“Meu marido está desempregado, mas conseguiu um bico como pedreiro aqui no bairro. Se tudo der certo, e ele conseguir outros, vai ajudar um pouco no perrengue. Mas não vai ser o suficiente. As contas não param de chegar. Com todo mundo em casa o dia todo, aumentam a conta de luz, o consumo de comida e material de limpeza. Eu botei tudo isso na ponta do lápis quando decidi não ir mais trabalhar. A conta não fecha, mas minha fé é maior”, disse a diarista, que frequenta a Igreja Evangélica Assembleia de Deus. Ela contou que iria passar a fazer suas orações em casa.
Gonçalves trabalha como empregada doméstica há quase quatro décadas. Começou ainda criança, aos 8 anos de idade, numa casa de classe média alta, onde praticamente morava. A sua mãe aparecia sempre no quinto dia útil de cada mês para pegar o salário da filha, que ajudava no sustento de sua família. “Eu saía dessa casa raramente, nos fins de semana. Era uma exploração muito grande. Hoje as coisas melhoraram um pouco para quem é doméstica. Eu vou para o trabalho, faço o meu serviço e volto para casa, para ficar com minha família. Não tem aquela exploração que tinha quando eu era criança. Mas tem outras. Tem sempre uma patroa que quer que você faça mais coisas do que estava combinado”, afirmou.
A rotina pesada de trabalho privou Gonçalves dos estudos. Ela só concluiu o ensino médio depois de adulta, com as filhas já crescidas.
A primeira pessoa a morrer no estado do Rio de Janeiro por causa do novo coronavírus foi uma empregada doméstica de 63 anos, que morava em Miguel Pereira, município a 120 km da capital, e trabalhava durante a semana numa residência no Leblon. Os parentes não revelaram o nome dela, mas disseram aos médicos que a mulher para quem trabalhava havia retornado recentemente da Itália e estava infectada pela Covid-19. Em 15 de março, a empregada doméstica, que era hipertensa e diabética, começou a se sentir mal. Foi levada para um hospital no dia seguinte. A princípio, acharam que tinha uma infecção urinária. No dia 17, ela morreu. E só depois saiu o resultado positivo para a Covid-19.
Na semana em que Gonçalves decidiu ficar em casa, deflagram-se panelaços nas capitais do país contra Jair Bolsonaro. Mas na periferia semirrural onde a diarista vive não se ouviu nenhuma manifestação contra o presidente. “As pessoas são leigas para muitas coisas no lugar onde moro. Não entendem muito bem a gravidade do que está acontecendo. Ninguém bateu panela. Mas desde que se espalhou a informação de que havia infectados aqui, em Magé, as ruas estão mais vazias.”
Fechada em casa, Gonçalves agora se preocupa com a filha mais velha, que mora em Realengo, subúrbio do Rio, e está grávida. O bebê deve nascer entre o final de abril e o início de maio. A diarista assiste ao noticiário na tevê na hora do almoço e à noite, evitando se expor o dia inteiro a informações sobre a pandemia. “Tenho medo de enlouquecer. Vi algumas imagens do que está acontecendo, e é desesperador.”
Pela tevê, Gonçalves passou a acompanhar com atenção as notícias sobre o auxílio emergencial do governo federal. Mais do que depressa, ela se inscreveu para receber 600 reais. Seu cadastro foi aprovado. O benefício iria cair em sua conta no início de maio.