ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Ele, o “cervochato”
Já não se pode beber em paz
Marcos Nogueira | Edição 91, Abril 2014
“Vem cá, vou te dar um toque”, disse o homem de meia-idade ao rapaz fantasiado de camponês bávaro que lhe servira uma amostra de chope. O moço de olhos arregalados se aproximou quieto em seu Lederhosen – macacão de couro com pernas curtas – para ouvir o que o outro tinha a falar. O cliente apontou um folheto que tinha em mãos. “Aqui está escrito que essa cerveja deve ser servida entre 7 e 8 graus.” Depois indicou o visor luminoso da chopeira. “Ali está marcando 2 graus negativos. Isso estraga o produto. Não dá para sentir nenhum aroma.”
A cena aconteceu em março, no Festival Brasileiro da Cerveja, em Blumenau, onde aparentemente constituía falha grave servir chope gelado. E onde nos estandes, nas filas dos caixas, nos corredores e nos banheiros se tropeçava facilmente num tipo empenhado em estragar o prazer de se beber cerveja: o “cervochato”.
O tipo em questão pode entender ou não de cerveja. O cervochato da cena acima se enquadrava no segundo tipo. Se entendesse de alguma coisa, saberia que nem sempre é idiota quem se veste como tal. Se soubesse de cerveja, reconheceria dentro do macacão de couro um dos responsáveis pelo crescimento do consumo de rótulos artesanais no Brasil: Alexandre Bazzo, dono da Cervejaria Bamberg, em Votorantim, interior de São Paulo. Bazzo é nerd, mas não é cervochato. Desdobra-se para fazer cerveja alemã como os alemães, mas não se incomoda se ela estiver gelada.
O cervochato que migrou para Santa Catarina nos quatro dias do festival é filho bastardo do “enochato” – o esnobe do vinho –, por mais que a comparação o tire do sério. Ele se importa demasiado com premiações, pontuações e medalhas. Segue bovinamente guias e gurus, muitas vezes roubando para si as palavras de seus mestres. Compete com seus pares para identificar o maior número de defeitos numa bebida que deveria ser gostosa. Fala de lúpulo como o enochato fala de terroir. Veste bermuda e camiseta de banda de rock – principal diferença entre o chato desleixado da cerveja e o chato quase sempre engomadinho do vinho.
No festival da cerveja em Blumenau, viu-se muita atividade cervochata. Após uma banca de juízes eleger uma cerveja paraense com açaí a melhor Sweet Stout – austero estilo inglês de cor negra profunda – do país, houve intensa gritaria. Ninguém havia dito ao cervochato que aquela era uma boa cerveja. É possível, aliás, fabricar cerveja de qualidade no Pará? Provavelmente não, portanto o cervochato nunca se dera ao trabalho de provar o rótulo em questão. Com base nas próprias convicções, concluiu que o júri era incompetente ou vendido.
O cervochato nunca vai admitir que começou a carreira entornando engradados do líquido que hoje chama, jocosamente, de cerveja de milho. Nessa categoria entram Brahma, Skol, Kaiser e outras marcas populares que usam cereais não maltados e açúcares como substitutos baratos do malte. No máximo, ele reconhecerá que bebe uma Heineken, que é mainstream, mas é puro malte. Isso, claro, quando é condescendente com os amigos que o arrastaram para um boteco desprovido de opções de American IPA ou de Saison belga.
Assim como o festival de Blumenau, o cervochato é fruto de uma transformação brutal e veloz no mercado brasileiro de cervejas. Quinze anos atrás, as opções que o consumidor tinha se limitavam a meia dúzia de cervejas claras, algumas escuras e, se procurasse bem, aquela alemã de trigo que faz um monte de espuma, tem cheiro de cravo e gosto de banana – a Weissbier. As principais marcas eram quase iguais entre si, mas quem gostasse de cerveja deveria escolher a sua e amá-la como se ama a mãe, a pátria ou o time de futebol. As pessoas viajavam centenas de quilômetros para provar a Brahma de Agudos ou a Antarctica de Ribeirão Preto, tidas como muuuuuito melhores que aquelas à venda no boteco da esquina, por causa da água excepcional que abastecia as fábricas. Para tentar se destacar e vender mais, os produtores brigavam pelo recorde de aparições de peitos e traseiros nos comerciais do horário nobre da tevê.
De repente, tudo mudou. A prateleira do empório do bairro ficou abarrotada de garrafas belgas, inglesas, alemãs, holandesas, checas. As melhores cervejas nacionais passaram a ser as fabricadas na menor escala possível. Cerveja leve e refrescante virou coisa da plebe inculta – bom mesmo é o amargor lancinante de algumas Imperial IPAs. Por sinal, não diga “ipa”: o certo é “aipiei”, pois é assim que ingleses e americanos pronunciam as iniciais de India Pale Ale, uma cerveja de alta fermentação e amargor acentuado.
Com um leque tão amplo de informações novas ao seu redor, o cervochato em formação buscou se instruir. Descobriu que houve um Michael Jackson que não dançava, mas entendia tudo de cerveja e uísque; aprendeu a fazer a própria Strong Golden Ale com toneladas de lúpulos americanos cítricos e florais adicionados em dry hopping. Gastou as economias em um curso de sommelier de cerveja para poder falar com propriedade.
Então o cervochato foi para o Festival Brasileiro da Cerveja, em Blumenau – evento que só existe por causa da enxurrada de cervejas novas que apareceram para disputar a fatia de mercado que não pertence à Ambev, pouco mais de 30%. Nos dois gigantescos pavilhões que abrigam também a Oktoberfest – festa cervejeira com uma pegada bem mais, digamos, de micareta –, dezenas de estandes ofereciam 414 rótulos para quem quisesse beber.
O cervochato foi a Blumenau para beber e falar. Reclamou que a cerveja estava gelada demais. Queixou-se do diacetil, do DMS, da oxidação e de outros defeitos de fabricação que acabam com o prazer de beber. Discutiu curvas de brassagem e métodos de sanitização de equipamentos.
Quando terminou de falar, o cervochato voltou sozinho para o hotel. E percebeu que havia se esquecido de beber. E abriu o frigobar de seu quarto para encontrar somente duas latinhas de cerveja de milho. E tomou-as com gosto. Porque, afinal, não havia nenhum outro cervochato no recinto.