O chefe da segurança de Lula foi ao Rio tratar da visita do presidente às obras do PAC nas favelas, quando aproveitou para conversar com os representantes da associação de bairro. No dia do evento, nem a polícia fluminense nem os traficantes foram vistos no local FOTO: RAFAEL ANDRADE_FOLHA IMAGEM
Elos perdidos
Entre o Palácio do Planalto e os traficantes, as associações de moradores de favelas
Cristina Tardáguila e Paula Scarpin | Edição 22, Julho 2008
Eram quase nove da manhã, de uma sexta-feira de março, e a rua em frente ao palanque montado no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, ainda estava vazia. No palco, Wagner Nicácio, presidente de uma das associações de moradores da região, passava instruções de última hora: “Nilson, corre aqui! É melhor comprar mais balão, mais uns quinze pacotes. Tudo branco, viu? Vai, anda logo!” Dali a pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegaria ao local para anunciar o início da segunda fase das obras do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, no Rio de Janeiro.
Como é presidente da Associação de Moradores da Grota, uma das doze favelas do Complexo do Alemão, Nicácio (mais conhecido pelo apelido de “Bororó”) participara dos preparativos da visita de Lula. O seu principal interlocutor oficial fora o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Ele havia garantido que reuniria facilmente 10 mil populares para aplaudir Lula, mas a meia hora da chegada da comitiva havia menos de 300 pessoas na praça. “Manda entrar a Imperatriz”, ordenou Bororó pelo celular, chamando a escola de samba da região, convocada para animar a inauguração. Seu rosto e roupas estavam empapados de suor.
Bororó, de 37 anos, tem o porte de um segurança de boate, mas seus gestos e voz são de maître de restaurante caro. Nasceu e foi criado no Alemão, um lugar, como costuma dizer, no qual “nada de bom acontece, só de ruim”. Usa cavanhaque, óculos de armação redonda e tem o cabelo quase raspado. Sempre se veste com calça social e camisa de manga comprida dobrada até o cotovelo. Desde que os planos do PAC foram anunciados, vereadores, deputados e até o vice-governador passaram a visitar a favela com assiduidade. E Nicácio aumentou a sua coleção de retratos ao lado de autoridades: ele pedia a um assessor que se misturasse às câmeras da imprensa e disparasse quantos cliques pudesse. Para sair bem nas fotos, trocava os óculos por lentes de contato.
O PAC é o guarda-chuva que abriga um conjunto de projetos em obras de energia, transporte, saneamento e habitação popular. Por meio dele, o governo federal pretende aplicar mais de 500 bilhões de reais até 2010, o último ano de mandato de Lula, em todas as regiões. Nos últimos doze meses, o presidente participou de quarenta cerimônias públicas de lançamento de obras do Programa.
Num discurso na Comissão de Infra-Estrutura do Senado, a senadora Kátia Abreu, do DEM, afirmou que o Programa não aumentou os recursos estatais para obras de infra-estrutura. “É sempre o mesmo percentual investido: menos de 1% do Produto Interno Bruto, exatamente como acontece desde 1995”, argumentou. Como não há incremento nos investimentos, o que há de diferente no PAC é apenas a destinação de verbas para áreas que antes não recebiam nada, como o Complexo do Alemão.
À esquerda, também há críticas. “Saci, Branca de Neve, PAC: tudo isso não existe”, disse o cientista político César Benjamin, ex-dirigente petista e, em 1989, coordenador de campanha de Lula à presidência. Na medida em que é um mero agrupamento de obras díspares, sem aumento de verbas, o PAC para Benjamin é um “nada”. Num artigo publicado pela Folha de S. Paulo, ele escreveu que o presidente se comporta como um animador de auditório. “Ele é ágil para discursar, mas seu governo não executa: nos últimos meses, apenas 12% dos recursos anunciados foram efetivamente desembolsados”, criticou. “As claques aplaudem. O povo gosta. Políticos sôfregos pegam carona. E o Brasil não vai a lugar nenhum.”
O governo anunciou que o PAC teria moldes republicanos e participativos: as obras seriam feitas por moradores da vizinhança, sem apadrinhamentos, privilégios à clientela de políticos ou recrutamento direto pelas empreiteiras. Por isso, vinte dias antes da visita de Lula às favelas, a faxineira Rosângela Praxedes, de 38 anos, se preparou para passar a madrugada em claro. Jantou arroz, feijão e fígado com batata em companhia do filho e da nora, assistiu à novela e saiu de casa com um farnel: biscoito, água, cadeira de praia, travesseiro e cobertor.
Por volta das 23 horas, Rosângela chegou à fila de Manguinhos, favela que integra a chamada “Faixa de Gaza carioca”, tamanha a quantidade de tiroteios em suas ruelas. Cerca de 100 pessoas já esperavam a abertura, na manhã seguinte, das inscrições para uma vaga de trabalho nas obras do Programa. Na antevéspera, dois rapazes em uma moto haviam atirado contra carros da polícia que escoltavam a carreta que funcionava como posto móvel de inscrição. Para aliviar o ambiente, a associação de moradores providenciou baralho e instalou uma televisão para os candidatos se distraírem durante a madrugada.
Assim como Rosângela Praxedes, quase metade dos cadastrados para o PAC das favelas eram mulheres. A grande maioria buscava uma função na cozinha ou na faxina dos canteiros. “Para mim, serve qualquer coisa”, disse Rosângela, folheando uma revista. “Se me chamarem para servente de obra, eu vou.” Ela acreditava que a experiência como pedreira na construção de um conjunto habitacional ajudaria sua convocação. Para sustentar os oito filhos — o primeiro nasceu quando ela tinha 11 anos —, candidata-se a qualquer emprego de que tem notícia.
Depois de doze horas na fila, Rosângela foi chamada. O atendente registrou seus números de RG, CPF e Carteira de Trabalho no computador. Ela quis saber se, conforme o anunciado, mulheres teriam direito a uma presença expressiva nos canteiros de obras. “Olha, só tenho o dado oficial de que 20% das vagas são para vocês”, disse-lhe o funcionário. “Mas não devem chamar mulheres para trabalhar de pedreira, né?” Como sua experiência foi informal, Rosângela foi cadastrada como aspirante a auxiliar de serviços gerais.
Pelos planos iniciais, as obras no Rio deveriam beneficiar um número maior de favelas. O governador Sérgio Cabral convenceu o presidente Lula a reduzir as áreas contempladas e fazer um investimento mais pesado naquelas mais problemáticas e com maior visibilidade na imprensa. Os complexos do Alemão e de Manguinhos foram incluídos na última hora, depois de Lula sobrevoá-los num passeio de helicóptero com o governador. Por isso, a reformulação foi feita a toque de caixa. Empreiteiros, urbanistas e engenheiros tiveram menos de seis meses para entregar a planilha de obras completa. “Se não cumprisse o prazo, a verba seria destinada a outro estado”, disse Ícaro Moreno Júnior, presidente da Empresa de Obras Públicas fluminense, responsável pelos projetos. “Foi preciso virar algumas noites sem dormir.”
Com a experiência de quem já havia trabalhado nos projetos do Programa Favela-Bairro, o plano de revitalização de regiões pobres lançado no primeiro mandato do prefeito Cesar Maia, Ícaro Moreno adaptou idéias desenvolvidas por urbanistas para áreas carentes. Além de hospitais, escolas, centros profissionalizantes e bibliotecas, o governo prometeu que cada favela terá pelo menos uma obra de grande dimensão. No caso do Alemão, será construído um teleférico, a um custo estimado em 175 milhões de reais, inspirado no de Medellín, na Colômbia, ligando o alto do morro a uma estação de trem. Na Rocinha, deverá ser erguida uma passarela projetada por Oscar Niemeyer e, no Cantagalo, entre Ipanema e Copacabana, um elevador levará moradores de uma futura estação de metrô até o alto da favela.
Em Manguinhos, o maior investimento (100 milhões de reais) será a elevação de um trecho da linha férrea, que permitirá a criação de alamedas para pedestres sob os trilhos. A primeira etapa da obra é a transformação de dois barracões em conjuntos habitacionais, desenhados pelo arquiteto argentino Jorge Mario Jáuregui, com equipamentos urbanos para lazer e estudo. Durante um passeio pela área, Jáuregui mostrou onde serão feitos uma escola, um parque aquático, um ginásio de esportes, uma biblioteca e um centro de saúde. “É preciso criar lugares”, explicou o arquiteto. “Paris é estimulante porque você sai do metrô e não vê nenhum não-lugar.”
Os quase 1 200 apartamentos do conjunto habitacional serão sobrados de 48 metros quadrados, divididos em sala, cozinha, banheiro e dois quartos. “É uma unidade de luxo, eu mesmo moraria aqui sem problemas”, elogiou Jáuregui. “O ideal é que venha para cá quem tem mais instrução, está acostumado a pagar as contas e a cuidar do entorno. Se pessoas que moram em situação de extrema miséria vierem sem nenhuma assessoria, isso pode virar um desastre.”
É num prédio de dois andares, em uma rua inclinada da favela, que Bororó comanda os seis funcionários da Associação de Moradores da Grota. Eles são responsáveis por atender 890 filiados, que pagam 5 reais por mês para gozar de alguns benefícios, como correio — que funciona como uma caixa postal. Estima-se que 90 mil pessoas morem na favela, de um total de 200 mil, em todo o Alemão. “Cuidamos da iluminação, dos buracos, da falta de água, das brigas entre marido e mulher, das vendas de terreno, tudo”, explicou Bororó. “Somos o Estado, o poder político e econômico na favela.”
Bororó soube pela imprensa que o PAC chegaria ao Complexo do Alemão. E o que se lia era preocupante: a polícia invadiria as favelas para proteger os canteiros de obras e evitar confrontos com traficantes. Percebendo que o conflito de bandidos com a polícia era mais que previsível, Bororó, voluntariamente, procurou os “donos do morro”, como costuma dizer. Ele se dá bem com figuras-chave do tráfico do Alemão. São amigos de infância, com quem jogou bola e soltou pipas nas ruas do bairro. “Nasci e cresci com eles, só que eles seguiram pelo caminho errado”, disse. Segundo ele, a conversa foi guiada pela lógica. “É muito simples: ninguém quer morrer”, explicou. “Todo o mundo do Complexo quer as obras. Com eles, não é diferente. Você está acostumado a comer arroz, feijão e ovo desde que nasceu. Tem a possibilidade de ter arroz, feijão e bife com batata frita. Todo mundo vai querer.”
Durante almoço num centro comercial, o ex-chefe do Estado Maior da Polícia Militar, o tenente-coronel Samuel Dionízio, explicou o que pretendeu fazer para garantir as obras do PAC: “Tínhamos um plano de colocar 600 homens, a cada doze horas, em três morros do Complexo do Alemão. Isso significava mobilizar 3 mil policiais militares e construir vinte postos blindados dentro da favela para garantir a ocupação.”
O plano do tenente-coronel Dionízio foi encampado pelo governo fluminense, que fez um pedido oficial de repasse de 55 milhões de reais a Brasília para os gastos com segurança. O dinheiro compraria 600 fuzis, novos blindados, um sistema de comunicação — pois o que havia emudecia entre os morros do Alemão — e suprimentos capazes de manter a tropa na ativa enquanto durassem as obras. Quatro meses depois, nenhum centavo havia sido repassado. O plano estadual foi engavetado.
Quem conhece o coronel de infantaria Carlos Roberto Sucha diz que ele é um homem alto, de pele e olhos claros, na faixa dos 50 anos. Em 2003, apresentou uma dissertação de mestrado em relações internacionais na Universidade de Brasília sobre imagem, motivação e comportamento do Estado. Diretor do Departamento de Segurança da Presidência da República, ele é o responsável por zelar pela integridade física de Lula, o que inclui planejar suas viagens, montar estratégias para as visitas, gerenciar crises e dar assessoria em assuntos militares e de segurança. (O coronel Sucha não quis ser entrevistado.)
Semanas antes da visita de Lula, Sucha procurou o subsecretário de Planejamento e Integração Operacional do Rio, Roberto Sá, para discutir a viagem. Uma apresentação em PowerPoint foi preparada. Em um telão, o coronel viu fotos aéreas do mar de casebres do Alemão, retratos de policiais com os rostos estraçalhados por balas de fuzil, além de tabelas com estatísticas criminais e uma coletânea de reportagens sobre a capacidade bélica dos bandidos.
Ao final da exibição, Roberto Sá deu seu parecer: em benefício da segurança do presidente, o PAC deveria ser lançado dentro do Palácio Guanabara, sede do governo fluminense. As favelas poderiam ser visitadas quando os canteiros já estivessem instalados e a segurança garantida por operações policiais prévias. “O coronel Sucha disse que não”, lembrou Sá em seu gabinete no centro do Rio. “Ele deixou claro que a inauguração do PAC era um ato político que precisava acontecer junto ao povo. E que o próprio Lula havia determinado isso.”
Foi aí, diz Roberto Sá, que nasceu a idéia de fazer uma ocupação policial no morro, ao longo de pelo menos três dias. As polícias civil e militar fluminenses já haviam preparado um documento, de mais de 100 páginas, sobre o que deveria ser feito para garantir o sucesso das obras na favela onde atua o Comando Vermelho. O coronel Sucha refutou a idéia pela segunda vez, alegando que não poderia haver truculência associada à visita do presidente. “Ali, a coordenação da segurança do presidente no Rio saiu das nossas mãos”, lembrou Roberto Sá, que colocou sua equipe à disposição do chefe de segurança de Lula.
Dias depois, o celular de Bororó, último modelo com tecnologia Bluetooth, tocou em seu bolso. Do outro lado da linha, o vice-governador e secretário de Obras do Rio, Luiz Fernando de Souza, conhecido como “Pezão”, o convocava para uma reunião na tarde seguinte. Na pauta, a segurança de Lula durante a visita ao Complexo do Alemão. Na hora marcada, Bororó e outros onze presidentes de associações entraram no prédio, no centro do Rio, conhecido como Banerjão. Foram levados a uma sala onde oito militares do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência os aguardavam. Entre eles, o chefe da equipe: o coronel Carlos Roberto Sucha. “A gente veio aqui para conversar. Sabemos que o presidente tem que ir ao Alemão e queremos que vocês sejam nossos parceiros”, contou Bororó, relembrando as palavras de Sucha. “Nós vamos ter que percorrer a comunidade para que o presidente possa inaugurar o PAC e precisamos de vocês para que isso aconteça”, teria dito o militar.
Combinaram que o grupo faria uma “viagem precursora”, um estudo do local para planejar a segurança presidencial. Antes dela, Bororó agiu. “Para os militares poderem fazer o passeio, fiz uma mediação com o movimento”, disse. “Movimento” é como ele prefere se referir ao tráfico. “Temos um canal para que os visitantes sejam bem acolhidos aqui. É uma segurança minha. É minha forma de trabalhar.” Instado a esmiuçar essa “mediação”, Bororó se recostou numa cadeira de rodinhas e mudou de assunto.
No dia da visita, a equipe passou quatro horas percorrendo as ruas do morro. Bororó achou graça quando, do alto de uma das favelas, alguns militares telefonaram às esposas para contar que andavam tranqüilamente pelo Alemão. Já Bororó sacou a câmera digital e tirou fotos com as autoridades. Em uma delas, ele aparece ao lado do general Jorge Armando Félix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
Leonardo Januário da Silva, presidente de uma das associações de moradores de Manguinhos, também fez um passeio com a equipe do coronel Sucha pela favela. Ao contrário do que aconteceu no Alemão, a comitiva foi surpreendida por um blindado e vinte policiais da Delegacia de Combate às Drogas. “O tráfico tinha recolhido tudo para que o coronel do Lula passasse sem constrangimentos”, disse Januário da Silva. “Não entendi por que mandaram o blindado para lá. O pessoal do Sucha tinha dito que viria sem polícia, e nós, da associação, ficamos numa saia justa.” Percebendo a tensão, o coronel Sucha pediu licença e disse que iria conversar com os policiais. Mas, de longe, o presidente da associação de moradores percebeu que, depois de falar com eles, o coronel deu um telefonema. Logo em seguida, o blindado deixou o local.
“Eu não pactuo e não mexo uma palha para conversar com traficante ou representante do tráfico”, disse o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, em uma manhã de maio. “Há uma relação promíscua entre as associações de moradores e o tráfico. Outro dia, vieram quatro representantes delas pedindo que eu trouxesse de volta os presos do presídio federal de Catanduvas. Diziam que, com esses detentos aqui no Rio, a paz numa determinada área do Comando Vermelho estaria resolvida.”
Bororó rebateu pesado: “O Beltrame é um psicopata, um bicho ruim. Para mim, Brasília saiu na frente e mostrou que a relação entre governo federal e comunidade é melhor do que com o governo estadual. Beltrame é um homem da guerra.” No dia da visita de Lula, Beltrame alegou agenda cheia e não participou de nenhuma solenidade com o presidente.
Mesmo sem a presença de Beltrame e da polícia fluminense, na inauguração no Alemão não se viam jovens empunhando metralhadoras nas esquinas ao redor do palco nem olheiros com pistolas na cintura, como acontece cotidianamente na favela. Tampouco havia sinal de viaturas ou do Caveirão, o blindado das forças policiais do Rio. Os soldados da Força Nacional de Segurança Pública, que circulam pela favela desde o ano passado, vigiavam à distância. Quem quisesse assistir ao discurso do presidente contornava uma grade baixa e expunha bolsas e sacolas a um detector de metal. As associações de moradores distribuíam bandeirinhas e cartazes para serem erguidos durante a cerimônia. Às 9h30, quando cerca de 1 mil pessoas já se aglomeravam, o presidente subiu ao palco com o governador do Rio, Sérgio Cabral, políticos de variados escalões e matizes, e os presidentes das associações de moradores. Espremido entre Lula e Cabral, Bororó era o primeiro a puxar as palmas ao fim de cada discurso. Apareceu em todos os jornais do dia seguinte.
Os alto-falantes tocaram uma versão instrumental do samba O Morro não Tem Vez. Foi exibido um vídeo sobre os projetos para a favela. “A Dilma é uma espécie de mãe do PAC”, disse o presidente no discurso. “Ela é a companheira que coordena o PAC. É ela quem vai cuidar, que vai acompanhar.” Foi a primeira vez que Lula associou explicitamente a ministra ao Programa.
A visita transcorreu sem qualquer contratempo. E foi graças a Bororó, que fez a mediação com os traficantes de drogas locais para que nada saísse do controle. Mais uma vez, ele havia se encarregado de conversar com “o movimento”.
Em fevereiro, Bororó soube que um carro da Secretaria de Trabalho buscava no bairro um lugar para instalar a carreta do posto móvel de recrutamento para emprego nas obras do PAC. Ele ficou incomodado por não ter sido avisado do fato com antecedência. Ligou para Hudson Braga, subsecretário estadual de Obras, e marcou uma conversa. Na reunião, ele conseguiu convencer Braga de que era melhor o posto ficar mais tempo na área sob sua jurisdição, em vez de se revezar por todas as favelas do Alemão. Também foi informado de como funcionaria o sistema de recrutamento. No dia seguinte, organizou uma comissão de voluntários, escolhidos a dedo por ele, para participar da tarefa. O seu grupo passou a orientar os candidatos no preenchimento das fichas e na organização das filas.
Foi montado então um cadastramento paralelo. Depois dos trâmites na fila oficial, alguns candidatos eram procurados pelos voluntários da Associação de Moradores. Junto a eles, faziam outro cadastro. Numa prancheta, a equipe de Bororó anotava nome, endereço, telefone de contato e cargo almejado pelos interessados. O cadastro oficial era encaminhado para a secretaria de Obras do Estado e, de lá, enviado às empreiteiras. Já o cadastro paralelo ficava armazenado no arquivo de Bororó e dos outros onze presidentes do Complexo do Alemão.
Em abril, a polícia prendeu Adauto do Nascimento Gonçalves. Antes de ser algemado, ele sacou do bolso um crachá de vigia das obras do PAC, argumentando para os policiais que era um trabalhador honesto. Mais tarde, com um mandado de prisão expedido contra ele por associação ao tráfico, Adauto contou como havia conseguido o emprego na empreiteira OAS. “Foi com a ajuda do Matu”, disse, algemado em uma delegacia do Rio.
Matu é Marco Antônio Silva de Carvalho, um moreno atarracado de 36 anos que exibe tatuagens com o nome dos filhos na parte interna dos braços. Ele é o presidente da Associação de Moradores do morro do Pavão-Pavãozinho. Matu definiu o que faz na favela: “Sou prefeito, sou governador, sou major, sou polícia também. Sou médico, sou tudo. Para conseguir tudo isso, mergulho de cabeça no esquema de uma mão lava a outra.”
No início das obras do PAC, Matu autorizou a OAS a transportar entulho nos elevadores que ligam o asfalto ao alto da favela, o que jamais havia sido permitido antes. “Faço isso porque sei que, mais cedo ou mais tarde, posso pedir emprego para alguém da comunidade que esteja com mais dificuldades para arranjar trabalho”, contou.
Na delegacia, Adauto Gonçalves disse não ter pego fila para se inscrever como mão-de-obra para o PAC, mas afirmou que comparecia ao trabalho havia 45 dias e que ganhava 500 reais por mês. “Conheço o Matu desde pequeno e, quando ele soube que eu estava fora do tráfico, depois de quase quatro anos de cana, resolveu me ajudar”, disse Gonçalves. “Matu me indicou onde eu tinha que ir para positivar meus documentos durante a condicional, e me deu uma força.”
Luiz Bezerra do Nascimento, um senhor grisalho de 62 anos, presidente da Associação de Moradores do Cantagalo, participou de uma reunião sobre a segurança dos canteiros que contou com a participação de policiais e traficantes. “Sempre tem que ter um representante do tráfico em qualquer coisa que aconteça aqui”, disse Bezerra. “De cara, o major que comanda o grupamento especial avisou que, se o movimento não concordasse em levar as obras numa boa, ele teria que entrar com a Força Nacional”, lembrou. O tráfico não se opôs.
Em junho, quando se investigava a morte de três moradores do morro da Providência — entregues por onze militares a traficantes de uma facção rival —, veio à tona um relatório do Serviço de Inteligência do Exército sobre um acordo envolvendo bandidos, políticos e uma associação de moradores. O pacto dizia respeito às obras do Cimento Social, um projeto de construção de casas populares organizado pelo senador Marcelo Crivella, candidato à prefeitura do Rio. O ex-presidente da Associação de Moradores da Providência Nelson Gomes teria negociado com assessores de Crivella e com representantes do tráfico. Eles “garantiram que não haveria qualquer tipo de retaliação, desde que não fossem incomodados”, descreveu o documento.
No Complexo do Alemão, onde Bororó coordenou o cadastro paralelo, a convocação de trabalhadores para as obras do PAC acontecia de maneira organizada. Ele tinha em mãos um e-mail assinado por André Santos, o funcionário da secretaria de Governo responsável pela convocação dos candidatos. Nele, Santos pedia a Bororó uma relação de 51 funcionários, entre pedreiros, ajudantes e carpinteiros que pudessem se apresentar no setor de RH do canteiro de obras o quanto antes. Assim, Bororó se reuniu com os outros presidentes das associações e, com as fichas extra-oficiais em mãos, repartiram as vagas. Ele redigiu de próprio punho cartas de recomendação e as entregou aos candidatos. Isso lhes garantiu a vaga.
Alan Carlos Pereira de Souza, morador da Grota, foi um dos que ganhou um emprego nas obras do PAC. “Fui criado com o Bororó e sempre fiz trabalho voluntário para a associação”, contou no canteiro de obras do Alemão, em um intervalo para tomar café. “Como sempre ajudei ele, ele me ajudou agora que eu estava desempregado e conseguiu me encaixar.”
Pela parte do governo, a explicação é outra. André Santos afirma que o pedido para que Bororó fizesse a seleção foi uma medida de urgência, só ocorrida na primeira convocação. “Eu tenho o cadastro aqui, e eu mesmo chamo os candidatos de acordo com o perfil da vaga”, explicou por telefone. “Na segunda vez já foi tudo comigo”, garantiu. Bororó, que conhece Santos desde a adolescência, desmentiu o amigo. “A segunda convocação foi feita por mim também”, afirmou. De concreto, resta que Rosângela Praxedes, que não conhecia ninguém das associações de bairros, até hoje não conseguiu emprego no PAC.
Bororó deixará no próximo ano a presidência da Associação de Moradores da Grota. Em vez da reeleição, tem outros planos. Como recompensa pela sua colaboração com o PAC, espera conseguir emprego como administrador de alguma das obras prontas. Se isso acontecer, aposta, terá dinheiro para finalmente bancar um curso numa faculdade privada de administração.
Cristina Tardáguila é diretora da Agência Lupa e autora do livro A arte do descaso (Intrínseca)
Foi repórter da revista por doze anos, e fundou a rádio piauí. É diretora de criação da Rádio Novelo.