Strauss (de capacete verde) e sua equipe, na Lapa do Boquete, em Minas Gerais: o arqueólogo quer extrair DNA do Homem de Confins, um esqueleto encontrado nos anos 1930 CRÉDITO: BERNARDO ESTEVES_2021
Em busca dos primeiros
Como um novo laboratório capaz de examinar DNA antigo vai ajudar cientistas brasileiros a elucidar o mistério da ocupação das Américas
Bernardo Esteves | Edição 185, Fevereiro 2022
O cientista sueco Svante Pääbo foi anunciado nesta segunda-feira (3/10/22) como vencedor do Prêmio Nobel de Medicina por seus estudos na área da paleogenética. Nesta reportagem, a piauí contou um pouco dos estudos de Pääbo e falou da abertura do Laboratório de Arqueogenética da USP.
Numa tarde no fim de outubro do ano passado, o arqueólogo Rodrigo Elias de Oliveira encontrou o que parecia uma pedrinha escura, no meio de uma escavação. “Era da cor da terra”, lembra. Com seu olhar afiado de quem também estudou e exerce odontologia, percebeu logo que tinha um elemento precioso diante de si: um dente de leite humano. A descoberta aconteceu durante a exploração em um sítio arqueológico no Vale do Rio Peruaçu, um afluente do São Francisco, no Norte de Minas Gerais, a cerca de 650 km de Belo Horizonte. Oliveira sentiu-se premiado. “É uma peça muito pequenininha, mas que pode nos dar muita informação – desde que a gente tenha a estrutura para estudá-la”, diz.
A escavação foi feita na entrada de uma caverna formada por um grande paredão de calcário ao longo do qual há dezenas de pinturas rupestres, representando figuras humanas, animais e motivos abstratos. É um sítio importante para a arqueologia brasileira. Entre os anos 1980 e 1990, escavações feitas ali sob a liderança do professor André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encontraram vestígios de ocupação humana por volta de 13,3 mil anos atrás, no que configura uma das mais antigas evidências da presença do Homo sapiens no continente americano.
O arqueólogo Andrei Isnardis ainda era estudante da graduação em ciências sociais quando participou das escavações nos anos 1990. Logo ficou claro para a equipe de Prous que aquele era um sítio extraordinário, conta Isnardis. “Tem muito material para datar, as coisas estão no lugar e bem conservadas, então é nadar de braçada.” O sítio surpreendeu não só pela antiguidade, mas pela riqueza dos vestígios. Havia ferramentas de pedra, carvão de fogueiras e restos das plantas e animais que estavam na base da dieta dos grupos humanos de passagem por aquele abrigo. A cereja do bolo foram seis sepultamentos com remanescentes humanos, incluindo um homem adulto semimumificado, com fragmentos da pele, músculos, tendões e cartilagens conservados.
Agora, quase um quarto de século depois da última escavação de Prous, o arqueólogo André Strauss, de 37 anos, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), comanda uma equipe de pesquisadores que está de volta ao local. Um dos objetivos das novas escavações é confirmar a presença humana de mais de 13 mil anos – e quem sabe recuar ainda mais. Além disso, Strauss espera encontrar fósseis humanos e novos sepultamentos. Seu objetivo é conseguir “uma quantidade obscena de dados” e mandá-los para datação no Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, parceiro da USP nesse projeto.
O dente de leite achado em outubro é, por enquanto, o único remanescente humano identificado sem sombra de dúvida nas três semanas em que a equipe da USP esteve em campo em 2021. O dente é uma das partes anatômicas preferidas pelos arqueólogos para tentar recuperar material genético antigo, porque está entre as que mais preservam o DNA ao longo dos milênios. Se conseguirem isolar fragmentos de DNA daquele dente, um trabalho delicado e complexo, os pesquisadores terão pistas sobre quem eram – e de onde vieram – os grupos que povoaram aquele local.
O principal sítio arqueológico no Vale do Rio Peruaçu se chama Lapa do Boquete, mas alguns pesquisadores só se referem ao local pela sigla bqt, para evitar o duplo sentido com a gíria que significa felação – pronunciado “boquéte”, com “e” aberto e que foi incorporado à língua portuguesa em 1990, segundo o Dicionário Houaiss. O nome do sítio é proferido com o “e” fechado (“boquête”), conforme registrado em nosso vernáculo desde 1899. A lapa foi assim batizada em referência a uma passagem estreita nas imediações da caverna, como uma pequena boca, explica Andrei Isnardis, que hoje também é professor da UFMG.
A piauí esteve no Vale do Peruaçu em outubro para acompanhar o trabalho de campo do grupo da USP. Junto com a arqueóloga Eliane Chim, sua aluna de doutorado, Strauss definiu as áreas em que eles ampliariam as escavações feitas pela equipe de Prous. Não pretendem abrir grandes áreas novas, mas apenas pequenos “puxadinhos” nos buracos já escavados, em busca de amostras para datação. No dia em que Strauss chegou, Chim lhe mostrou o material coletado até ali, que incluía artefatos, peças de cerâmica e uma abundância de vegetais, como espigas e grãos de milho muito antigos. Strauss se entusiasmou com o que viu. “Esse sítio é especial”, afirmou.
Na década de 1980, o geneticista sueco Svante Pääbo conseguiu do Museu Egípcio de Berlim Oriental a amostra de uma criança mumificada há mais de 2 mil anos. Fascinado pelo Egito antigo desde a infância, quando sua mãe o levou para conhecer as pirâmides, Pääbo estava obcecado com a ideia de tentar recuperar fragmentos de DNA de uma múmia. Nos intervalos do seu doutorado na Universidade de Uppsala, no qual se dedicava ao estudo de adenovírus, o geneticista tentou extrair material genético da amostra. Teve sucesso na sua tarefa. Em 1985, relatou na revista Nature que conseguira identificar e clonar moléculas de DNA extraídas da múmia egípcia.
Pääbo inaugurou o estudo do DNA antigo e, com sua equipe no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, onde trabalha há 25 anos, desenvolveu boa parte das ferramentas usadas nesse campo de pesquisa. Ele se especializou no sequenciamento do DNA de linhagens extintas de humanos. Decifrou, entre outros, o genoma dos neandertais, espécie que acabou extinta possivelmente por ter perdido a competição evolutiva com os Homo sapiens. Em seus estudos, Pääbo mostrou que os neandertais procriaram com humanos modernos e, mesmo que tenham desaparecido do mapa há 40 mil anos, deixaram uma marca indelével no DNA humano, presente em até 4% do genoma de cada um de nós.
Para os arqueólogos, o acesso aos genes de indivíduos que viveram há dezenas de milhares de anos abriu um novo mundo. Antes, estavam limitados a estudar rastros que as populações do passado deixavam para trás, como ferramentas de pedra. Agora, com as crescentes inovações nos estudos sobre o DNA antigo, muitos arqueólogos acreditam – embora outros tantos desconfiem – que a técnica poderá revolucionar a sua disciplina tanto ou até mais do que a datação por carbono-14. (Esse método, hoje considerado o padrão-ouro da datação arqueológica, foi desenvolvido em 1949 pelo químico norte-americano Willard Libby. Até então, só era possível determinar a idade de um sítio por métodos relativos, bem mais imprecisos.)
Para o geneticista norte-americano David Reich, da Universidade Harvard, o DNA antigo revelou aos pesquisadores um universo desconhecido, da mesma forma que a invenção do microscópio no século XVII abriu os olhos da humanidade para a existência das células e dos micro-organismos, conforme escreveu no livro Who We Are and How We Got Here (Quem somos e como chegamos aqui), lançado em 2018 e sem tradução para o português. A genética mostrou que as populações atuais são aparentadas de uma forma inesperada, e revelou movimentos populacionais que não deixaram outros registros. “O DNA antigo estabeleceu que grandes migrações e misturas entre populações muito divergentes foram uma força central que moldou a Pré-História humana”, escreveu Reich.
Um indicador dessa diversidade veio em 2013, quando cientistas estudaram o DNA de um menino de 3 a 4 anos sepultado no sítio de Mal’ta, no Sul da Sibéria, há cerca de 24 mil anos. O material talvez ajudasse a entender o mistério que envolve a ocupação das Américas, uma das grandes questões em aberto da arqueologia. Como a Sibéria é considerada o lugar de onde saíram os primeiros americanos, talvez o grupo que enterrou aquele garoto tivesse algum parentesco com os colonizadores das Américas. Seu genoma poderia trazer novas pistas sobre a identidade dessas populações. O sequenciamento foi feito pelo grupo do dinamarquês Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague – outro protagonista dos estudos de DNA antigo.
O estudo confirmou – mais uma vez – que os americanos efetivamente vieram da Ásia: o DNA do garoto de Mal’ta tem trechos que só são compartilhados atualmente por povos nativos das Américas. Mas foi mais longe. Os resultados mostraram que, de fato, as misturas e migrações foram uma força motriz da história humana. O DNA do menino tinha sequências que hoje só são encontradas em povos que vivem na Europa ou no Oeste da Ásia.
Os pesquisadores estão de acordo que os grupos humanos que povoaram as Américas saíram do nordeste da Ásia. Provavelmente, vieram a pé, porque o nível dos oceanos estava mais baixo e havia uma conexão terrestre entre a Sibéria e o Alasca. Essa área hoje está debaixo do mar, mas no fim da Era do Gelo formava uma grande faixa de terra firme chamada Beríngia. Não há consenso, porém, sobre quando as Américas foram ocupadas pela primeira vez: as estimativas mais conservadoras falam em 15 ou 16 mil anos, mas alguns arqueólogos defendem que a entrada se deu muito antes disso.
A questão parecia resolvida no século passado depois que uma ponta de lança fabricada em pedra com uma técnica refinada foi encontrada ao lado de costelas de mamute num sítio arqueológico próximo à cidade de Clóvis, no Novo México, no Oeste dos Estados Unidos. Depois desse achado, na década de 1930, pontas de estilo parecido foram encontradas em vários sítios em território norte-americano, frequentemente associadas a fósseis de grandes mamíferos extintos. A idade desses sítios girava em torno dos 13 mil anos, e os fabricantes daquelas ferramentas ficaram conhecidos como o “povo de Clóvis”.
Há 13 mil anos – uma coincidência que reforçou a tese –, as geleiras que cobriam a maior parte da América do Norte durante a última Era do Gelo estavam derretendo. Com isso, abriu-se um corredor terrestre que permitia a passagem de humanos e animais do Alasca até as grandes planícies centrais dos Estados Unidos. Consolidou-se então uma explicação para a ocupação das Américas, que foi dominante ao longo do século XX: os humanos chegaram à América do Norte caminhando pela faixa que ligava a Sibéria ao Alasca e, com o degelo, se espalharam pelo interior do continente, caçando grandes mamíferos com suas pontas de lança de estilo distinto. Os primeiros americanos, portanto, eram o povo de Clóvis.
Dali em diante, qualquer achado arqueológico que contradissesse a primazia de Clóvis passou a ser sumariamente refutado. Foi o que aconteceu com a descoberta da arqueóloga brasileira Niède Guidon, publicada na revista Nature, em 1986. Guidon achou ferramentas de pedra em camadas de sedimentos com 32 mil anos de idade, no Boqueirão da Pedra Furada, na Serra da Capivara, no Sul do Piauí. Era coisa muito mais antiga do que o povo de Clóvis. Arqueólogos – norte-americanos na maioria – julgaram que não era possível determinar de forma inequívoca que os artefatos fossem de fato de fabricação humana, e por isso o sítio nunca foi amplamente aceito.
Ocorre que sítios arqueológicos anteriores à cultura Clóvis continuaram aparecendo – e sendo contestados – em vários pontos do continente americano, até que surgiram em Monte Verde, no Sul do Chile, evidências irrefutáveis da presença humana há 14,6 mil anos. Um milênio antes de Clóvis. Os achados, revelados na Nature em 1988, suscitaram a resistência costumeira, mas depois de uma década de controvérsia Monte Verde acabou por ser reconhecido pela maioria dos arqueólogos como um sítio válido, pondo um fim definitivo à primazia de Clóvis.
Já não era sem tempo. Cerca de 13 mil anos atrás, quando o povo de Clóvis fabricava suas pontas no Norte, havia gente por praticamente todo canto da América do Sul. A Lapa do Boquete não era um caso isolado no Brasil. Na mesma época, para ficar num único exemplo, havia grupos humanos ocupando a Amazônia, como mostram os indícios de até 13,1 mil anos encontrados na Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, no Pará. Aquelas pessoas pareciam plenamente adaptadas aos recursos que a floresta lhes oferecia e levavam uma vida muito diferente da dos caçadores de grandes mamíferos do Norte, além de produzirem ferramentas usando uma tecnologia totalmente distinta. Ou seja: o povo de Clóvis não era o pioneiro, mas contemporâneo desses outros povos.
Como o peso do poder econômico também aparece na ciência, as teses e descobertas arqueológicas feitas nos países em desenvolvimento têm mais dificuldade de atrair a atenção. Uma barreira está na ausência de infraestrutura para fazer pesquisas de última geração, o que submete os pesquisadores à agenda dos grandes centros estrangeiros. Por isso, a abertura do Laboratório de Arqueogenética da USP, prevista para acontecer em maio, pode vir a ser um divisor de águas para o país e a região. Será o primeiro laboratório da América do Sul com tecnologia de ponta para estudar o DNA antigo. Pesquisadores da Argentina e do Peru já manifestaram interesse em usar as instalações da USP para analisar amostras. “A expectativa é que o laboratório se transforme num polo regional de atração e que se apresente como uma alternativa à hegemonia dos grandes centros de pesquisa”, diz André Strauss.
O novo laboratório também deverá ajudar a manter no Brasil o patrimônio fóssil encontrado em território nacional. “Antes tínhamos que pedir autorização para mandar amostras para fora, porque não havia nenhum laboratório local que pudesse realizar essas análises”, diz o geneticista Thomaz Pinotti, que está fazendo doutorado em conjunto pela UFMG, sob orientação de Fabrício Santos, e pela Universidade de Copenhague, com Eske Willerslev. Strauss, por sua vez, espera que o espaço ajude a combater a lógica que impera na arqueogenética mundial, em que os cientistas dos países em desenvolvimento mandam suas amostras para processamento nos países desenvolvidos, e elas passam a ser tratadas como commodities, num processo em que os pesquisadores da periferia entram com a matéria-prima, e os cientistas dos grandes centros, com a tecnologia e a expertise.
Com 96 m2, o laboratório fica no Museu de Arqueologia e Etnologia, na Cidade Universitária, na Zona Oeste de São Paulo. Quase metade dessa superfície é dedicada à área reservada para a manipulação do material antigo – o chamado clean lab, ou laboratório limpo, equipado com uma série de dispositivos para minimizar a contaminação de amostras por DNA moderno. Mesmo com a adoção desses dispositivos, a contaminação continua sendo o principal fantasma dos estudiosos de genomas. Num laboratório, moléculas de DNA – humano e de outros organismos – podem estar em todo canto: suspensas no ar, coladas na vidraria, nos equipamentos. No estudo de DNA antigo, é fundamental garantir que o material genético analisado vem de fato do fóssil, e apenas do fóssil, e não de uma das incontáveis fontes potenciais de contaminação.
O laboratório da USP é compartimentado em ambientes separados, cada um reservado para uma etapa da extração e processamento do DNA antigo. “A ideia é nunca misturar as coisas”, disse Strauss quando levou a reportagem da piauí para conhecer o local, em dezembro passado. O arqueólogo chama a atenção para o sistema de pressurização e purificação do ar, dois dos principais mecanismos para evitar a contaminação. “Quanto mais você entrar na área limpa, maior será a pressão. Quando abrir uma porta, o ar vai fluir para fora”, explicou, simulando o barulho do vento. Os pesquisadores terão que vestir equipamento de segurança com gorro, macacão e luvas, e qualquer objeto que for trazido para a área limpa terá que receber um banho de luz ultravioleta que destrói moléculas de DNA.
Strauss disse que a construção do laboratório custou cerca de 1 milhão de reais, dos quais um terço foi para a compra de equipamentos. A máquina mais sofisticada adquirida para o projeto é um TapeStation, que será usado para organizar a informação genética a ser sequenciada. “O grande truque não está no equipamento, mas sim na estrutura do laboratório, nos reagentes utilizados e nos protocolos capazes de identificar e isolar o DNA antigo”, disse a geneticista Tábita Hünemeier, da USP, que vai coordenar o laboratório ao lado de Strauss.
A maior parte do financiamento para a construção do laboratório vem da Fapesp, a fundação paulista de amparo à ciência, que tem um edital para estimular jovens pesquisadores a trazer novas linhas de pesquisa para suas instituições. O resto dos recursos vem da própria USP e de uma parceria estabelecida com o Instituto Max Planck. A origem da parceria remonta a 2010, quando Strauss foi para o centro de pesquisa alemão fazer seu doutorado. O DNA antigo estava na crista da onda no Max Planck: naquele ano, o grupo de Svante Pääbo publicou o rascunho do genoma do neandertal e o genoma completo dos denisovanos – outra espécie humana extinta, conhecida apenas por um número restrito de fósseis encontrados na Ásia.
Quando estava no instituto alemão, Strauss percebeu que o DNA antigo poderia ajudar a resolver mistérios da arqueologia brasileira. Material de estudo não faltaria: a região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, é conhecida pela abundância de remanescentes humanos antigos encontrados em seus sítios arqueológicos. Centenas de esqueletos foram exumados naquela região desde as expedições pioneiras do naturalista dinamarquês Peter Lund nos anos 1840.
Aqueles fósseis poderiam ajudar a provar – ou refutar – uma hipótese proposta no final dos anos 1980 pelo bioantropólogo Walter Neves, mentor de Strauss na arqueologia. Neves sugeriu que o continente americano foi povoado por dois grupos biologicamente distintos, que vieram em duas levas – ambas passando pela Beríngia. O cientista chegou a essa conclusão ao notar que os crânios de Lagoa Santa e outras regiões do continente americano tinham aspectos que lembravam mais as populações que hoje vivem na Austrália ou na África do que os indígenas atuais. A reconstituição do rosto de Luzia, um dos esqueletos humanos mais velhos das Américas, encontrado em 1974, fixou no imaginário popular no Brasil, ao aparecer em jornais, revistas e livros didáticos, como a figura emblemática da suposta cara dos primeiros brasileiros.
Na tese de Neves, a primeira leva de americanos trouxe os antepassados de Luzia, que têm ancestrais comuns com os grupos que saíram da África e colonizaram a Oceania, se deslocando por meio de barcos desde o Sudeste Asiático, há mais de 40 mil anos. A segunda leva de americanos incluiu os povos com feições mais próximas às dos asiáticos atuais, que deram origem aos povos indígenas. Se fosse possível extrair DNA do material de Lagoa Santa, talvez desse para esclarecer seu parentesco com os indígenas contemporâneos.
Strauss falou da sua ideia a Johannes Krause, geneticista alemão que foi aluno de Svante Pääbo e trabalhou com o sueco no sequenciamento do genoma dos denisovanos e neandertais. Krause foi cético quanto à possibilidade de sucesso, já que em ambientes tropicais o DNA se degrada mais rapidamente, devido à temperatura, à umidade e à acidez do solo. Mas ele estimulou Strauss a seguir em frente, e o Instituto Max Planck formalizou a parceria com a USP.
Hoje, os cientistas combinam dois tipos de técnicas para estabelecer a genealogia da espécie humana – a análise do DNA antigo, o método mais moderno, que conheceu um salto tecnológico nos últimos quinze anos, e o exame do genoma de povos contemporâneos, que vinha sendo feito há mais tempo. Contar a história populacional a partir do estudo do DNA moderno é como tentar entender como foi uma partida de xadrez olhando para a posição final das peças, como propõe o geneticista Thomaz Pinotti. O tabuleiro mostra como o jogo terminou, mas dá poucas pistas sobre como cada peça se movimentou durante a partida. “Com o DNA antigo, conseguimos vislumbrar momentos passados do jogo e enxergar onde estavam as peças nas rodadas anteriores.”
No caso da ocupação das Américas, os estudos genéticos indicam que os povos indígenas atuais são, na grande maioria, descendentes de uma mesma população, que por sua vez é fruto do cruzamento entre um grupo vindo do Leste asiático e de uma população siberiana que já não existe de forma isolada, da qual fazia parte o menino de Mal’ta.
A genética mostra ainda que os ancestrais dos nativos americanos se isolaram dos demais povos asiáticos numa época que coincide com o chamado Último Máximo Glacial, situado entre 26 mil e 19 mil anos atrás, que marca o auge da extensão das geleiras na última Era do Gelo. Cientistas acreditam que o isolamento dessa população se deu justamente por causa das condições climáticas extremas, deixando-a cercada de gelo na Beríngia, aquela passagem entre a Sibéria e o Alasca.
Em seu mestrado pela UFMG, Pinotti investigou as linhagens de cromossomo Y (passado do pai para os filhos homens) que deram origem à diversidade genética atual dos indígenas americanos. “A história que o cromossomo Y conta é de uma expansão populacional explosiva nas Américas”, disse o geneticista. “Um grupo pequeno de homens entrou no continente e foi extremamente bem-sucedido, assim como seus filhos.” (Esse grupo naturalmente incluía também mulheres, mas o estudo de Pinotti revelou apenas detalhes sobre a linhagem paterna dos primeiros americanos, já que examinou o cromossomo Y.)
Essa explosão populacional é um sinal de que o grupo que tinha ficado isolado dos demais povos asiáticos havia finalmente chegado às Américas – esse é o padrão que se esperaria depois que um agrupamento humano chegasse num território novo, despovoado e repleto de recursos. Por isso, os cientistas acreditam que o período de isolamento populacional aconteceu na Beríngia, que não estava coberta por geleiras e era habitada por grandes mamíferos que podiam servir de alimento. “O problema é que a genética é meio ruim para dizer onde as pessoas estavam naquele momento”, disse Pinotti. “Só conseguimos falar do tempo.”
Usando uma ferramenta que permite estimar quando duas populações se separaram e há quanto tempo elas compartilham um ancestral comum, conhecida como “relógio molecular”, o geneticista brasileiro e seus colegas calcularam que a chegada às Américas do grupo que deu origem aos povos indígenas atuais aconteceu há, no máximo, 19,5 mil anos, conforme anunciaram em artigo publicado na revista Current Biology, em 2019.
O resultado coincide em grandes linhas com estimativas feitas a partir das linhagens de DNA mitocondrial, que, como é transmitido apenas da mãe aos seus filhos, é útil para investigar as linhagens maternas de uma população. Um estudo de 2016 que analisou essas linhagens concluiu que a entrada nas Américas deve ter acontecido por volta de 16 mil anos atrás, por um grupo que colonizou o continente seguindo o litoral do Pacífico.
A história do povoamento das Américas ficou mais confusa em 2015, quando um estudo mostrou que três povos indígenas brasileiros – Paiter-Suruí e Karitiana, em Rondônia, e Xavante, em Mato Grosso – tinham em seu genoma um padrão que só é encontrado em populações da Austrália, da Nova Guiné e das Ilhas Andaman, no Sudeste Asiático. Essa assinatura – o “sinal australasiano”, conforme dizem os geneticistas – correspondia a cerca de 3% do genoma dos três povos, mas aparecia de modo consistente – e inexplicável.
Quando se deparou com esse sinal na análise dos dados, a geneticista Tábita Hünemeier – uma das autoras da descoberta – achou que se tratasse de um erro, de tão contraintuitivo que lhe pareceu. Ela tentou fazer correções estatísticas para ver se o sinal sumia, mas ele continuava irredutível. Dos 21 povos indígenas de todo o continente americano amostrados pelo estudo, os três grupos brasileiros – e apenas eles – pareciam ter como ancestral uma população misteriosa.
O coordenador do estudo – David Reich, de Harvard – sugeriu chamá-la de “população X”, mas a geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que era também autora do trabalho, torceu o nariz para a sugestão. Com Hünemeier, que fora sua aluna de doutorado, Bortolini decidiu propor um nome mais criativo. Hünemeier foi atrás de um dicionário de tupi que havia na casa de sua tia e veio com a proposta de chamar aquela população misteriosa de Ypykuéra, que quer dizer “ancestral”. A proposta vingou, e o grupo ficou conhecido como a “população Y”.
Mas o nome não ajudava a explicar de onde tinham vindo aqueles ypykuéras. O sinal aparecia em povos indígenas que falam línguas de troncos distintos, que se separaram há mais de 4 mil anos. “Por isso, achamos que deveria ser um sinal antigo”, disse Hünemeier. O problema ganhou nitidez em 2021, quando ela e seus colegas decidiram buscar o sinal genético numa amostra maior de populações. Ele apareceu então nos araras, no Pará, nos guaranis-kaiowás, em Mato Grosso do Sul, e em povos indígenas de outros países. “O que a gente vê é o sinal muito espalhado pela América do Sul”, continuou a geneticista. “Tem nos Andes, na Amazônia, na costa do Pacífico.” Para ela, é um indício de que a rota de colonização do continente americano se deu pelo litoral do Pacífico. Mas os cientistas não sabem dizer por que essa assinatura genética não foi encontrada em povos da América do Norte ou da Sibéria.
O sinal australasiano não quer dizer que povos da Oceania atravessaram o Pacífico para chegar às Américas no passado remoto. Tal sinal foi trazido ao continente pelos povos que entraram pelo nordeste asiático, na região siberiana. Provavelmente, é o resultado de cruzamentos entre populações diferentes que se encontraram na Sibéria, de onde alguns partiram rumo ao continente americano, e outros, em direção à Oceania. “Tudo tem a ver com a heterogeneidade dos povos que chegaram à Beríngia e a partir dali se dispersaram pelo continente americano”, disse Bortolini.
Para Hünemeier, a descoberta do sinal australasiano deveria levar os geneticistas a reconsiderar seu entendimento da ocupação das Américas. “A gente pensava nessa questão de forma muito simplista, com o povoamento feito em uma grande leva migratória, seguida por outras ondas menores”, afirmou. “Parece que foram sucessivas ondas, todas vindas do mesmo lugar, mas em tempos distintos, e por uma população maior e mais diferenciada do que se pensava.”
Os dois primeiros estudos pelo método do DNA antigo em amostras arqueológicas encontradas no Brasil foram realizados no exterior e publicados em 2018. Um saiu na revista Science e outro na Cell (André Strauss, da USP, é o único cientista a assinar ambos os trabalhos). O primeiro sequenciou o genoma de cinco indivíduos escavados por Peter Lund na Gruta do Sumidouro, em Lagoa Santa, no século XIX, cujos remanescentes são parte do acervo do Museu Real de História Natural da Dinamarca. O material foi processado no laboratório do geneticista Eske Willerslev, em Copenhague.
O outro estudo, publicado na Cell, analisou amostras de sete esqueletos escavados na Lapa do Santo, na região de Lagoa Santa, um sítio que foi estudado pela equipe de Walter Neves na primeira década deste século e que, desde 2011, vem sendo escavado sob a coordenação de Strauss. Nesse caso, o DNA foi extraído num laboratório da Universidade de Tübingen, na Alemanha, onde atua o geneticista Cosimo Posth, que conduziu o trabalho. Nos dois casos, os estudos incluíram também análises de material encontrado em outros países americanos.
O genoma dos indivíduos coletados por Lund acrescentou uma pitada de mistério acerca da população Y. O sinal australasiano apareceu em um – e apenas um – dos cinco indivíduos. Para complicar, correspondia a cerca de 3% de seu genoma, uma proporção parecida à encontrada nas populações contemporâneas. O dado é um complicador porque se o sinal australasiano fosse, de fato, um sinal antigo, como suspeitavam os pesquisadores, ele devia aparecer em proporção bem maior naquele indivíduo que viveu há 10,4 mil anos – e não na mesma proporção das populações de hoje. A constatação representa um desafio, que os próprios autores reconheceram no artigo. O enigma permanece sem solução.
Mas os indivíduos da Lapa do Santo, cujo DNA foi extraído na Alemanha, ajudaram a elucidar algumas dúvidas. A análise mostrou que os sete indivíduos tinham parentesco com um menino que fora enterrado por volta de 12,8 mil anos atrás em Anzick, em Montana, no noroeste dos Estados Unidos, junto de ferramentas típicas do povo de Clóvis – esse menino é o único remanescente humano encontrado num sítio dessa cultura. O mesmo parentesco foi verificado em outros dois esqueletos de países americanos: um, de quase 11 mil anos e encontrado em Los Rieles, no Chile, e um outro, de 9,3 mil anos, escavado em Belize, na América Central.
As descobertas sugerem que, de fato, o povo de Clóvis se expandiu para a América do Sul, mesmo que não tenham sido eles os primeiros a ocupar o continente. O estudo revelou ainda que os fabricantes das ferramentas de Clóvis não são ancestrais dos indígenas sul-americanos contemporâneos. Portanto, outra onda migratória é que trouxe para a América do Sul os antepassados dos povos originais.
Os genomas da Lapa do Santo ainda mostraram que os povos de Lagoa Santa, embora tivessem crânios com feições parecidas com as dos australasianos, não tinham conexão genética com essas populações. Pelo contrário, eles compartilham um ancestral comum com os povos indígenas atuais, que têm feições mais parecidas com as dos povos asiáticos. Tudo considerado, os resultados indicam que Luzia e seus parentes não são uma população biologicamente distinta, o que joga por terra o modelo de ocupação proposto por Walter Neves.
Diante disso, Strauss mandou fazer outra reconstituição facial baseada nos crânios de Lagoa Santa – dessa vez de um indivíduo da Lapa do Santo –, divulgada por ocasião da publicação dos dois artigos. A ideia era substituir a imagem de Luzia com traços marcadamente africanos, elaborada nos anos 1990. A nova cara dos povos de Lagoa Santa tem uma morfologia mais genérica, com traços menos africanizados que os de Luzia. A imagem, porém, não viralizou como a reconstituição original e, ainda hoje, o rosto de Luzia é a figura que vem à mente quando se pensa nos primeiros brasileiros.
Neves não se deu por vencido. Amargurado com a proeminência que a genética vem ganhando na arqueologia – uma tendência que costuma descrever como a “ditadura do DNA” –, ele prefere enxergar que a presença do sinal australasiano em alguns povos indígenas é uma prova de que sua tese – que o continente americano foi povoado por dois grupos biologicamente distintos – está correta. Para ele, a população Y nada mais é do que a população que teria dado origem aos povos de Lagoa Santa cujos remanescentes foram escavados por ele e sua equipe. “Isso era algo absolutamente esperado”, diz. No entanto, Neves não explica por que os esqueletos da Lapa do Santo são parentes dos indígenas contemporâneos e, portanto, não representam povos biologicamente distintos.
É irônico que a hipótese de Neves tenha sido refutada pela genética, num estudo feito por Strauss, um ex-aluno que ele considera brilhante. Em certa medida, o triunfo do DNA representa o ocaso da craniometria, técnica que o bioantropólogo empregou ao longo da carreira (Neves se aposentou em 2017, mas continua a frequentar a universidade). A hipótese de que as Américas tinham sido povoadas por duas populações distintas foi construída com base em medições minuciosas da morfologia dos crânios. Com o acesso ao DNA antigo, no entanto, agora os cientistas conseguem resgatar as instruções genéticas que levaram à diversidade observada nas amostras.
Na avaliação de Strauss, o DNA antigo permitirá que os cientistas finalmente consigam reconstruir as relações de ancestralidade das populações. Os marcadores indiretos que os cientistas usavam para inferir as relações entre as populações – como as medidas dos crânios – muitas vezes lhes davam pistas enganosas. “Agora temos um teste de paternidade para a arqueologia”, afirmou Strauss. “Conseguimos dizer quem é pai de quem, que é uma parte fundamental da história humana.”
A região da anatomia preferida pelos geneticistas para a extração de DNA antigo é a parte de dentro do osso temporal, onde fica a cóclea, no ouvido interno. “Como o osso é mais denso e isolado nessa região, a gente tende a ter mais DNA preservado ali”, diz o geneticista Tiago Ferraz, da USP. Mas se o objetivo for a extração de DNA mitocondrial (aquele que só passa de mãe para filho), continua Ferraz, é melhor usar um dente, que preserva maiores concentrações desse material.
O DNA antigo é extraído do pó do osso, que é submetido a uma série de reações químicas. Para isso, naturalmente, é preciso transformar o osso em pó. “Todas as análises começam com um processo destrutivo”, explicou Ferraz. Existe um método de amostragem por meio de uma pequena incisão que preserva a integridade do crânio, mas não é a estratégia mais eficaz. “Quando temos a permissão dos arqueólogos para destruir o material, cortamos o osso de forma longitudinal, para poder ver os canais auditivos e fazer a amostragem direto na cóclea, no ponto mais denso”, afirma o geneticista. Antes disso, porém, é preciso fazer uma tomografia do fóssil, de forma a poder construir uma réplica em três dimensões no futuro. Mas não há garantia de sucesso: os pesquisadores não têm como saber se será possível recuperar DNA de uma amostra antes de processá-la.
Ferraz diz que uma quantidade minúscula de pó de osso – de 30 a 50 mg apenas – é suficiente para a extração de DNA. No processo, o pó é misturado a um reagente que se liga a moléculas de DNA, sejam elas provenientes do fóssil, de humanos contemporâneos ou de qualquer outro organismo. A etapa seguinte consiste em separar o material genético humano do não humano. O DNA antigo é separado do moderno na análise dos dados, com a ajuda de ferramentas capazes de identificar a degradação dessa molécula ao longo do tempo – a capacidade de separar o DNA antigo do contemporâneo é que caracterizou o grande salto que a arqueogenética deu nos últimos anos.
Tiago Ferraz aprendeu os protocolos para extrair DNA de fósseis e validar a antiguidade do material no Instituto Max Planck, onde passou dois anos de seu doutorado. A defesa de sua tese, orientada por Tábita Hünemeier e André Strauss, estava marcada para o fim de janeiro deste ano. Depois disso, ele deve começar seu pós-doutorado, financiado pela parceria da USP com o Instituto Max Planck. Ferraz será o responsável pela extração de DNA antigo no Laboratório de Arqueogenética, e deve treinar outros pesquisadores para executarem a tarefa no futuro.
Dentre as amostras que serão analisadas na USP, estão o dente de leite achado na Lapa do Boquete e outros remanescentes humanos que venham a surgir nas próximas etapas da escavação – os pesquisadores voltarão a campo em maio. Uma das primeiras amostras das quais Strauss gostaria de tentar extrair DNA é o Homem de Confins, encontrado numa expedição feita nos anos 1930 em um dos sítios mais ricos da região de Lagoa Santa – a Lapa Mortuária de Confins, onde foram descobertos remanescentes de mais de oitenta indivíduos. O esqueleto do Homem de Confins estava junto a fósseis de animais extintos, sinalizando que poderia ser muito antigo, mas não foi possível datá-lo diretamente. Por sorte, Strauss fez amostragens desse indivíduo antes do incêndio no prédio em que ficava a reserva técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, em junho de 2020. O fogo destruiu remanescentes humanos coletados ao longo de décadas na região de Lagoa Santa.
Strauss gostaria também de ampliar a diversidade geográfica das amostras de DNA antigo estudadas no Brasil. Por enquanto, a região de Lagoa Santa é a única em que esqueletos muito velhos tiveram o genoma analisado. Com o laboratório da USP, o arqueólogo espera conseguir caracterizar melhor a história profunda dos nativos americanos. “Os dados arqueogenéticos vão nos permitir entender quem eram esses primeiros americanos e quais eram suas dinâmicas populacionais”, afirmou.
Em setembro do ano passado, cientistas britânicos e norte-americanos anunciaram ao mundo que haviam descoberto milhares de pegadas humanas à beira de um lago, num sítio arqueológico no Parque Nacional de White Sands, no Novo México. Eram pegadas de pelo menos dezesseis pessoas. Tinham sido deixadas por pés humanos de diferentes tamanhos, crianças e adolescentes na maioria. Os cientistas identificaram um total de 61 trilhas, das quais a mais comprida passa de 2 km. As datações indicam que as pegadas foram feitas entre 21 mil e 23 mil anos, no auge, portanto, do Último Máximo Glacial, conforme anunciaram os autores na revista Science.
Um ano antes, a Nature publicou um artigo que trazia evidências muito antigas da presença humana no continente americano, desta vez na Caverna Chiquihuite, que fica numa montanha no centro-norte do México, a 2 740 metros de altitude. Ali, foram encontradas quase 2 mil ferramentas de pedra em diferentes camadas de sedimentos. As mais antigas estavam em camadas de pelo menos 31 mil anos, milênios antes do Último Máximo Glacial, conforme relatou um grupo de cientistas do México, Brasil, Estados Unidos, Dinamarca, Reino Unido e Austrália.
Os dois exemplos são os acréscimos mais recentes à lista de evidências da presença humana nas Américas há mais de 20 mil anos. O Brasil tem alguns representantes ilustres nessa lista. O casal de arqueólogos Denis Vialou e Águeda Vilhena Vialou – ele francês e ela brasileira –, em artigo publicado na revista Antiquity em 2017, relatou ter encontrado vestígios de uma ocupação com pelo menos 26 mil anos de idade em Santa Elina, em Mato Grosso.
Na Serra da Capivara, as evidências da presença humana anterior a Clóvis continuam a aparecer, e agora já surgiram em oito sítios arqueológicos. Na década passada, o arqueólogo Eric Boëda substituiu Niède Guidon na coordenação da missão arqueológica franco-brasileira que pesquisa a região desde os anos 1970. Para fugir da controvérsia em torno do Boqueirão da Pedra Furada – aquele onde Guidon achou ferramentas com 32 mil anos de idade –, Boëda tratou de adotar métodos mais modernos e escavar novos sítios. Na Toca da Tira Peia, seu grupo achou evidências de ocupação com 22 mil anos de idade. No Sítio do Meio, as datas chegam a 29 mil anos. No Vale da Pedra Furada, 41 mil anos, conforme sustentou um artigo publicado no ano passado na revista Plos One. “Está ficando difícil dizer que não existe [uma ocupação antiga naquela região]”, afirmou Boëda.
Mesmo assim, nenhum sítio arqueológico brasileiro anterior ao Último Máximo Glacial é reconhecido de forma irrestrita. Ainda é cedo para dizer se White Sands e Chiquihuite terão mais aceitação na comunidade arqueológica. É possível que enfrentem alguma resistência, porque as datas não se encaixam com a história que a genética conta. De acordo com os estudos de DNA antigo e contemporâneo, a população asiática que deu origem aos povos nativos americanos se formou entre 21 mil e 20 mil anos atrás. A ocupação do continente, portanto, teria acontecido depois disso. De modo que qualquer datação anterior a esse período acaba enfrentando resistência entre os estudiosos. Se até o século passado a época em que viveu o povo de Clóvis era considerada o limite para a ocupação do continente, hoje é a genética quem impõe o teto cronológico.
Esse cenário, no entanto, não invalida as provas da presença humana nas Américas antes do Último Máximo Glacial. O que a genética nos conta, na realidade, é que, se havia grupos humanos lascando pedra no Piauí há 40 mil anos, então eles não são ancestrais dos povos indígenas atuais. Em outras palavras, são uma população que não teve sucesso reprodutivo, conforme propôs Maria Cátira Bortolini, da UFRGS. “Os bem-sucedidos foram os sibero-beringianos e os ypykuéras”, afirma a geneticista. “Eles colonizaram o continente e seus descendentes estão aí.”
Nada impede, portanto, que os grupos humanos que passaram por White Sands, Chiquihuite, Santa Elina e a Serra da Capivara representem de fato um beco sem saída da genealogia humana – mas, mesmo assim, terão sido eles, e não o povo de Clóvis, os primeiros habitantes do continente americano. O que intriga os geneticistas é que mesmo espécies extintas como os neandertais e os denisovanos – os malsucedidos de seu tempo – deixaram pistas genéticas que ajudam a retraçar sua história. Por que os povos de White Sands, Chiquihuite, Santa Elina e a Serra de Capivara não deixaram pista alguma? “O que o DNA antigo mostrou até agora é que ninguém some sem deixar rastro”, disse Thomaz Pinotti.
Se houve grupos humanos que entraram nas Américas antes do Último Máximo Glacial, se espalharam pelo continente e depois desapareceram, esse seria um evento único na história humana, argumenta André Strauss. “Em nenhum outro lugar do mundo o Homo sapiens passou dezenas de milhares de anos com uma densidade demográfica mínima, que beira a invisibilidade”, afirma. Depois que saíram da África, os humanos modernos colonizaram a Eurásia em 5 mil anos, continua o arqueólogo. “Esses caras não eram bobos, eles sabiam o que estavam fazendo.” Diante dessa excepcionalidade, acredita Strauss, o ônus da prova deveria recair sobre os cientistas que defendem que a presença humana no continente americano tem mais de 20 mil anos.
A dificuldade de acomodar no mesmo roteiro os sítios muito antigos e os estudos de DNA aguçou uma tensão velada entre arqueólogos e geneticistas. O arqueólogo Astolfo Araujo, também da USP, é um dos que veem com desconfiança a primazia que a biologia molecular conquistou na explicação do povoamento das Américas. Em sua avaliação, estudos genéticos pecam ao fazer afirmações peremptórias a partir de dados fragmentários, que dependem de um número limitado de amostras estudadas. “Pode haver uma quantidade enorme de informação que não está nos esqueletos conhecidos”, alegou.
Araujo lembra também que o relógio molecular, aquele método que calcula a data de separação entre as populações, carrega muita incerteza. O método se baseia na frequência com que ocorrem mutações aleatórias no DNA mitocondrial, no cromossomo Y ou nos demais trechos do genoma humano. Araujo afirma que a imprecisão advém do fato de que essa frequência não é constante ao longo do tempo e depende de uma série de fatores. No entanto, diz ele, nem sempre as incertezas são discutidas pelos geneticistas. Além disso, os estudos do DNA muitas vezes desprezam os resultados gerados por outras linhas de evidência, arqueológicas ou não.
Por exemplo: se os humanos chegaram à América do Norte por volta de 18 mil anos atrás, conforme sugere a genética, como explicar a grande variedade de estilos de ferramentas encontrada na América do Sul por volta de 13 mil anos atrás? “Muito tempo teria que ter passado para chegarmos a essa vastíssima diversidade cultural”, afirma o arqueólogo da USP. Da mesma forma, uma ocupação recente não explica a riqueza das línguas indígenas faladas hoje na Amazônia. “A genética é imprescindível e enriquece muito as nossas inferências, mas devemos saber de suas limitações”, diz Araujo. “E temos que colocar a bendita arqueologia nessa história.”
A divergência entre os resultados dos estudos de DNA e os sítios arqueológicos muito antigos pode servir de estímulo à busca de novas evidências. “O que parece é que houve mesmo uma entrada no continente antes do Último Máximo Glacial”, afirma Andrei Isnardis, o arqueólogo da UFMG que estudou a Lapa do Boquete nos anos 1990 e está participando das novas escavações. Recentemente, Isnardis e alguns colegas visitaram os sítios em Mato Grosso e no Piauí. Ele saiu convencido de que os indícios da presença humana antiga ali são inequívocos. “Tudo bem que a genética aponte para uma ocupação não tão antiga”, afirma. “Não será a primeira e nem a oitava vez que a gente diverge da genética. Nós vamos continuar estudando.”
Escaldados, os geneticistas evitam colocar mais lenha na fogueira. Thomaz Pinotti acredita que eles devem sempre seguir o consenso dos arqueólogos. “Se a comunidade como um todo decidir que White Sands é um sítio indiscutível, temos que incluir isso nas nossas modelagens.” Tábita Hünemeier lembra que a genética é só mais uma ferramenta para elucidar os processos de povoamento do continente. “Ela tem mais poder de explicação porque consegue resgatar informações antigas, datar mutações e ver a estrutura de populações que desapareceram, mas não consegue trabalhar sozinha.” A geneticista está contente de dividir com um arqueólogo a coordenação do Laboratório de Arqueogenética da USP. “Eu e André temos visões diferentes do mesmo problema, mas a gente se complementa.”
Strauss está acostumado a transitar entre campos distintos. Ele tem graduação em geologia e em ciências sociais, e colocou um pé na genética desde o mestrado. “O cientista social tem uma língua, o biólogo tem outra e o geólogo tem uma terceira. Se você sabe falar essas línguas, é muito mais fácil fazer com que eles trabalhem juntos”, diz. Strauss acredita que é a arqueologia, e não a genética, quem terá a palavra final sobre o povoamento das Américas. “A resolução desse debate virá por uma descoberta arqueológica, ou pela sua ausência nos próximos mil anos.”
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Atualizado em 3 de outubro de 2022, às 12h51.