Pinochet foi o protótipo da espécie: um ditador latino-americano anticomunista do século XX FOTO: GAMMA_OTHER IMAGES
Em família tudo se sabe
Com uma fortuna ilícita de quase 20 milhões de dólares, era um reles ladravaz.
Dorrit Harazim | Edição 4, Janeiro 2007
Há definições mais complexas, eruditas, ou historicamente mais consistentes para designar a espécie. A mais simples é suficiente para retratar o gênero: “ditador” é o chefe de Estado que exerce autoridade arbitrária sobre as vidas dos cidadãos de seu país e não pode ser removido do poder por meios legais. Ponto. Uma lista de final de ano, encabeçada por Omar al-Bashir, do Sudão (leia-se massacre de Darfur) e Kim Jong-il, da Coréia do Norte (leia-se armas nucleares e a maior restrição à liberdade de imprensa no mundo), foi elaborada por entidades de defesa dos Direitos Humanos como a Anistia Internacional, Repórteres Sem Fronteiras, Human Rights Watch e Freedom House. Muammar Kadhafi, da Líbia, e Pervez Musharraf, do Paquistão, foram rebaixados para o segundo escalão. Não pela moderação de sua conduta, mas porque outros ditadores os suplantaram em 2006.
O gênero tem subcategorias, como o regime de Saparmurat Niyazov, do Turcomenistão, que além de repressivo era dos mais folclóricos – para quem não vive lá. Desde que se declarou presidente vitalício, em 1999, o homem forte proibira ópera, balé, teatro, rádio em carros e obturações dentárias de ouro. Rebatizou um meteoro e revitalizou a mesmice do calendário mundial com nomes mais edificantes para os dias da semana. Terça-feira, por exemplo, passou a atender por Jovem Dia, e sábado virou Dia Espiritual. Os doze meses do ano também foram contemplados. Janeiro tornou-se Turkmenbashi (ou Chefe de Todos os Turcomenos, isto é, o próprio Niyazov) e o mês de abril passou a evocar a genitora do ditador: “Mãe”. Por sugestão do líder do Conselho do Povo Nacional, que considerou a homenagem justa porém genérica demais, Niyazov considerava deixar de lado a modéstia e designar abril por Gurbansoltan, o nome da falecida. Não teve tempo: morreu três dias antes do Natal.
O general chileno Augusto Pinochet, que morreu aos 91 anos no Hospital Militar de Santiago, também em dezembro, não constava da lista dos dez mais porque estava fora do poder há dezesseis anos. Mas encarnou, como ninguém, a categoria dos ditadores militares latino-americanos do século XX. Houve muitos – no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru, Equador… A modalidade se espalhou pelo continente todo. Mas Pinochet foi o mais representativo dos generais anticomunistas da sua época. Não apenas pelo physique du rôle, que lhe dava um ar deliberadamente tenebroso, e causa arrepios até hoje: a boca voluntariosa camuflava o maxilar de prognata, o corte impecável do bigode e cabelo graúna, a carranca permanente em complemento ao homem que se quer temido. O que lhe faltou para compor o quadro – um olhar frio – foi compensado pelos óculos de lentes sombrias.
Exceto Fidel Castro, nenhum governante encampou os últimos espirros da Guerra Fria no continente como Augusto Pinochet. O golpe militar por ele chefiado, que derrubou o governo socialista-comunista de Salvador Allende, em setembro de 1973, está tão associado àqueles tempos quanto a invasão de Praga por tanques soviéticos, em 1968, ou a Guerra do Vietnam. Só que os tempos mudaram. No obituário do The Guardian, o jornal britânico relembra uma entrevista com Pinochet feita pela televisão russa, em 1995, que começava com um pedido de desculpas pela forma como a ditadura chilena fora tratada pela imprensa nos tempos de comunismo soviético.
Pinochet foi alertado para “a sedução verdadeiramente diabólica do marxismo” em 1948, quando comandava um campo de detenção para membros do então banido Partido Comunista chileno. Foi, também, o seu primeiro encontro com o homem a cuja biografia viria a se atrelar, e atropelar: Salvador Allende Gossens. Allende, na época, era um médico de 40 anos, senador socialista em primeiro mandato, que decidira visitar os presos. O então tenente Pinochet, filho de um obscuro fiscal de alfândega, ameaçou fuzilar o senador se ele insistisse na visita.
Passam-se mais de vinte anos, Allende é eleito presidente e, quase ao final do ano seguinte, em novembro de 1971, o país dos rotos está em júbilo com a visita oficial do compañero e ícone revolucionário Fidel Castro. A visita não acabava nunca. Durou 23 dias – foi da região desértica de Arica, ao norte, à região semi-antártica da Terra do Fogo, passando pelas minas de cobre de Chuquicamata. Por onde passava a caravana cubana, os momios, ou reacionários, sumiam do mapa, e só retornavam à existência no dia seguinte. Fidel ainda se encontrava no Chile quando ocorre o primeiro atentado terrorista no país, contra uma central de energia elétrica, mergulhando a capital na escuridão e na incerteza. O que se seguiu merece ser relembrado.
Na manhã seguinte ao atentado, um grupo de senhoras toma um pedaço nobre da Avenida Providência e encena o primeiro “panelaço” contra o governo socialista, seguido de quebra-quebra promovido por momios. Vinte e quatro horas depois, o presidente decreta estado de emergência na capital, e passa o controle da polícia para as mãos do Exército. Mais especificamente, para as mãos de Augusto Pinochet, chefe da guarnição de Santiago. O general tratou os manifestantes de direita com dureza, e os tablóides esquerdistas saudaram a sua atuação. Pinochet deveria ser condecorado pelo respeito à ordem constitucional, pedia uma manchete.
Marc Cooper, um jovem americano de 20 anos que se tornaria escritor e jornalista, com artigos publicados na New Yorker, Nation, Rolling Stone e Harper’s, estava no Chile, na condição de “turista social”, segundo sua própria definição. Como tantos de sua geração, era um observador interessado no Terceiro Mundo, com algumas centenas de dólares no bolso e a cabeça cheia de teorias sobre mudanças sociais. Foi convidado a trabalhar como tradutor oficial para Salvador Allende.
É Cooper quem conta, no livro Pinochet and Me (Pinochet e Eu, sem edição no Brasil), o que lhe aconteceu no dia em que o nome do general estava estampado nos jornais de esquerda como defensor dos valores republicanos. O jovem americano se lembrou de que havia conhecido um empolgado militante chileno chamado Christian Pinochet, que trabalhava na sede do Comitê Central do Partido Socialista. Foi até lá para saber se o Pinochet dos jornais era parente dele.
– Sim, é meu tio. E é um f.d.p. Não acredite numa só palavra do que está escrito aí. Meu tio não tem nada de democrata. É um fascistóide, respondeu o sobrinho Christian.
Naquela mesma noite, Augusto Pinochet fez seu primeiro e único pronunciamento antes do golpe. Conclamou as forças sociais a esfriarem a cabeça e expressou a confiança de que a polícia, sozinha, tinha condições de controlar as desordens. “Caso não consiga, o Exército terá de ir às ruas e fazer o que aprendeu na carreira militar: matar.”
Foram mais de 3,2 mil os executados e desaparecidos pela repressão militar, sem falar na institucionalização da tortura como política de Estado. Uma série de gravações ultra-secretas entre os conspiradores do Alto-Comando das Forças Armadas captadas por um caminhoneiro radio-amador, ilustra a gênese da brutalidade. Os diálogos, que permaneceram secretos durante 25 anos, foram tornados públicos pela jornalista Patrícia Verdugo. Eles são uma preciosidade, pois revelam o papel de cada membro da Junta nos momentos cruciais em que o golpe se pôs em marcha. Perguntado pelo comandante da Força Aérea Gustavo Leigh o que fazer com Salvador Allende, uma vez deposto, Pinochet responde à altura: coloca-se o presidente derrocado num avião rumo ao exterior e abate-se a aeronave. “Quando você mata a galinha, você também erradica os ovos.”
Pinochet abriu um precedente nos anais da jurisprudência internacional: saiu de cena como primeiro ex-mandatário com ordem de prisão decretada, por violação da legislação internacional de direitos humanos. Especificamente, a Convenção Contra a Tortura, em vigor desde 1987. Morreu acuado, mas safou-se da prisão. Como última entrada de biografia tão típica, resta a descoberta, feita em 2005 por uma comissão do Senado americano: ao longo das últimas duas décadas, ele abriu e fechou 128 contas bancárias em nove bancos dos Estados Unidos, movimentando uma fortuna ilícita de quase 20 milhões de dólares. Foi um reles ladravaz.
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