ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2011
Em liberdade
Na praia, a nova vida de Cesare Battisti
Mario Sergio Conti | Edição 59, Agosto 2011
Julho, em qualquer ponto da longa costa brasileira ao sul do Rio, é época de chuva, frio, vento, praias vazias e um tanto lúgubres. Cesare Battisti pegou dez dias seguidos de céu de chumbo e chuvinha cacete. E poucas vezes na vida, no entanto, se sentiu tão bem. Mal clareava o dia, e lá estava ele, de abrigo de náilon na praia deserta de turistas e nativos, caminhando infatigavelmente. À tarde, a mesma coisa. À noite, idem.
A deambulação incessante lhe valeu o apelido, dado por um menino do vilarejo, de “piradinho”. Às vezes, o moleque, de uns 9 anos, o acompanhava nos passeios sem destino. Conversavam, simulavam lutas, jogavam pedras no mar, averiguavam o que os barcos de caiçaras traziam da pesca – ficaram amigos.
Quando chegam os jornais da capital, Battisti compra um e se senta à mesinha de um quiosque, à beira de um canal, e o lê da primeira à última página, mas de maneira desatenta. É a sua única leitura. Também não escreve quase nada. Usa um computador antigo com conexão lenta à internet para escrever e-mails a velhos amigos – na França, no México e na Itália, os países onde viveu –, com os quais retoma o contato. E também a brasileiros que não conhece, mas que ele sabe que se mobilizaram para que ele pudesse, novamente, ser um homem livre.
Não quer saber de ler livros ou escrevê-los. “Passei quase cinco anos lendo e escrevendo, e no momento quero fazer outras coisas”, ele disse. Por “outras coisas” entenda-se sobretudo cozinhar, de preferência ao som de blues, o seu gênero de música predileto. Ele mesmo escolhe o peixe recém-pescado, se possível uma tainha. Retira-lhe as vísceras, refoga e a leva ao forno. Prepara o arroz, uma salada e serve a refeição, para deleite dos eventuais convidados. Depois, lava a louça, arruma a cozinha – e está pronto para mais uma caminhada.
A casa onde está lhe foi emprestada por um casal de amigos, que o visita esporadicamente, nos fins de semana. Ele não se sente só porque a gente do vilarejo o procura para conversar fiado e perguntar se precisa de algo. “Os brasileiros são formidáveis, não conheço povo mais alegre, simpático e sociável”, disse.
Não é de hoje que ele tem essa opinião. Depois de ter sido tirado da prisão, na Itália, por um grupo da organização na qual militava, o Proletários Armados pelo Comunismo, o PAC, ele viveu no México e na França. Na Cidade do México, criou uma revista cultural e um festival de artes gráficas que existe até hoje. Em Paris, foi zelador, editor e autor de romances policiais. Em 2004, o governo de Jacques Chirac extinguiu a doutrina Mitterrand, que garantia o asilo dos militantes que foram condenados por crimes políticos na Itália durante os anos de chumbo.
Fugiu então para o Brasil, onde viveu três anos na clandestinidade. Passou temporadas em Belo Horizonte, Salvador e São Paulo, e se estabeleceu no Rio de Janeiro. Morou no Flamengo, em Ipanema e, a maior parte do tempo, em Copacabana. Como dependia de remessas esporádicas de seus direitos autorais, diversas vezes se viu sem 1 real no bolso.
“E aí aconteciam coisas surpreendentes”, ele lembrou. “O rapaz da banca onde comprava jornais me via olhando as manchetes e perguntava por que eu não comprava. Quando eu explicava que estava sem dinheiro, ele dizia para levá-los e pagar quando pudesse. No restaurante por quilo onde almoçava, acontecia a mesma coisa. Com a proprietária do apartamento que aluguei, a dona me deixava atrasar o pagamento. Nunca vi nada parecido, essa confiança e solidariedade, em nenhum lugar do mundo.”
Por isso, Battisti faz uma diferença entre a repercussão do seu julgamento na imprensa, que descambou para um xingatório ideológico de pouca racionalidade, e o que viu, e vê, nas ruas. “Eu fui pego numa disputa entre forças políticas italianas, com a qual já não tinha nada a ver. Eu não feri nem matei ninguém, apenas fiz aquilo que dezenas e dezenas de milhares de italianos fizeram naquela época: quis melhorar o país e, tantos anos depois, fui transformado num símbolo e, para alguns, num monstro”, ele disse. “Mas não quero falar sobre isso. Abandonei a política militante há décadas. É página virada.”
Para quem acha que ficou preso mais de quatro anos injustamente, Battisti fala com enorme tranquilidade, sem ressentimento. Ele só quer voltar ao passado recente para agradecer àqueles que o ajudaram. “Se for possível, se eu não for incomodar ou prejudicar”, ele disse, “gostaria de apertar a mão de cada brasileiro que me ajudou. Eu começaria pelo governador Tarso Genro, que, quando ministro, estudou o meu caso, achou que eu tinha razão e, com grande coragem, defendeu as suas convicções contra pressões poderosas. E não vejo a hora, igualmente, de voltar ao Rio e agradecer ao dono da banca, ao gerente do restaurante por quilo, à dona do apartamento. Eles são o Brasil.”
Por força da sua situação jurídica, Cesare Battisti não pode sair do Brasil. Não pode voltar à França, ao México ou à Itália, nem, por exemplo, ir a Cuba ou à Venezuela. O que não o incomoda nem um pouco. “Não tenho nenhuma vontade de sair do Brasil: até sonho em português”, disse.
Ele ainda não sabe em qual cidade irá se estabelecer em definitivo. Se houver possibilidade, porém, viverá no Rio. “Nasci e cresci perto do mar”, contou. “Gostei de viver em Nápoles e Marselha, cidades que, de alguma forma, parecem o Rio. Eu adoro o burburinho de Copacabana, das ruas transversais à praia, cheias de vida, de moças bonitas e de gente simpática.”
A tarde caía no quiosque à beira do canal. “Ô piradinho! Ô piradinho!”, gritou o menino seu amigo, chegando com a irmã e os pais. Battisti os convidou a sentar e compartilhar uma cerveja. Conversou-se sobre a fauna e a flora das imediações: mangue, canais de água salobra, Mata Atlântica, garças, maritacas, catetos e peixes de dezenas de espécies. Battisti contou que vira golfinhos. O pai do menino disse que, não muito longe, era possível ver porcos selvagens e até onças.
“Onças?”, perguntou Battisti, incrédulo. Imediatamente, o rapaz o convidou a participar de uma expedição para ver onças. “Se a gente fizer um acampamento e ficar lá uns três dias, garanto que você verá onças”, disse-lhe. “A gente leva uma barraca, comida, um fogãozinho e um garrafão de pinga; a única coisa chata são as muriçocas e pernilongos. Vai ser divertido.” Battisti topou na hora. “Os insetos não me picam: eu sou um caiçara”, falou.