A jornada solitária de Mariana para ser atendida em outro país: doze horas de ônibus, duas rodoviárias, muita chuva e buracos na estrada, além de dois voos e quatro aeroportos. Quatro dias depois, o mesmo caminho de volta para casa CREDITO: CAIO BORGES_2021
Em nome da mãe
A saga da brasileira que deixou Roraima para fazer um aborto legal na Colômbia
Meg Weeks | Edição 184, Janeiro 2022
Tradução de Sergio Tellaroli
A BR-174 – rodovia de 1,9 mil km que liga Boa Vista a Manaus – foi aberta na Floresta Amazônica em 1970, durante a ditadura militar, numa tentativa ambiciosa de unir uma nação ainda fragmentada geograficamente. Concluída apenas em 1998, já sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, a estrada é a única rota terrestre a conectar Roraima, o mais setentrional dos estados brasileiros, com o restante do país. Sua construção quase dizimou os waimiri atroaris, povo que continua vivendo na região. Encarregado de fazer a rodovia e proteger os interesses de uma mineradora de cassiterita que o próprio governo ajudou a se instalar na área, o Exército enfrentou a resistência dos indígenas com tiros, bombardeios, armas químicas, decapitações, esfaqueamentos e destruição de locais sagrados. Na década de 1970, a Amazônia reunia aproximadamente 3 mil waimiri atroaris. Na década seguinte, em 1986, o número caiu para 374. Hoje, o povo soma cerca de 2 mil indivíduos.
Talvez os espectros dessa história sangrenta ainda assombrem a BR-174, cuja manutenção precária torna inquietantes as doze horas de viagem de ônibus entre as duas capitais, sobretudo para alguém que já está com os nervos no limite. Em junho passado, uma roraimense de quase 40 anos, que chamarei simplesmente de Mariana para respeitar sua privacidade, contemplava fotos de seus filhos e animais de estimação para se distrair do desconforto trazido pelos solavancos do ônibus e pela ansiedade que teimava em devorá-la. Ela me enviou uma dessas imagens, a de três gatinhos enroscados e vistos de cima, dois deles brancos com orelhas e rabo marrons, e o outro malhado. “Tenho dois cachorros também. Todos resgatados da rua e castrados”, escreveu pelo WhatsApp, num primeiro e breve momento de leveza desde que começamos a nos falar com regularidade, na semana anterior.
Em abril, dois meses antes da viagem, Mariana descobrira que estava grávida, embora tenha me contado que já suspeitava disso bem antes de fazer o teste. Como se tratava de sua terceira gestação, ela logo reconheceu os sinais da gravidez, mas alimentou devotamente a esperança de haver se enganado. O resultado positivo do exame chegou durante uma reunião virtual com colegas da escola onde Mariana trabalha como professora do ensino fundamental. Ainda que tonta e apavorada, ela procurou manter a compostura. De imediato, marcou um ultrassom para ver em que ponto a gestação se encontrava, mas guardou segredo por uma semana até dar a notícia ao marido. Em 2020, o casal tinha economizado dinheiro para, com o auxílio de bolsas, matricular os dois filhos adolescentes num colégio particular. Os custos inesperados de um terceiro filho implicariam deixar os mais velhos na escola pública e reduzir outras despesas. A quarentena imposta pela pandemia de Covid-19 – período no qual Mariana perdeu quatro parentes e precisou se desdobrar em dois empregos remotos – já havia lhe provocado muita angústia e depressão. Uma nova gravidez certamente iria aumentar sua instabilidade emocional.
Apesar de querer outro filho, seu marido, taxista, a apoiou quando ela decidiu encontrar um jeito de abortar. Se a professora fosse argentina ou uruguaia, precisaria apenas marcar um procedimento de dez minutos num hospital ou, o mais provável, tomar um medicamento abortivo em casa, receitado por um médico, uma vez que a gestação não estava avançada. Mas calhou de Mariana ser brasileira. Pela lei, ela só poderia praticar um aborto no Brasil se a gravidez a colocasse em perigo, resultasse de um estupro ou gerasse um embrião com sinais de anencefalia, má-formação que afeta o cérebro do bebê (certos juízes, porém, já permitiram a intervenção por causa de outras anormalidades severas).
Depois de procurar na internet as opções à sua disposição, que incluíam se submeter a um arriscado procedimento numa clínica clandestina ou comprar no mercado paralelo remédios abortivos de origem desconhecida, a professora achou a página do Milhas pela Vida das Mulheres. A organização sem fins lucrativos, idealizada e dirigida por Juliana Reis, envia brasileiras a países da América Latina, sobretudo à Colômbia, onde elas podem fazer um aborto cirúrgico, seguro e dentro da lei. Doações em dinheiro e de milhas aéreas bancam as viagens. Desde 2019, quando surgiu, a instituição mandou cerca de duzentas gestantes para o exterior e ajudou quase trezentas a abortar legalmente no Brasil.
Um estudo do governo federal aponta que, entre 2016 e outubro de 2020, houve 8 665 interrupções de gravidez autorizadas pela Justiça no país. Durante o mesmo período, o Sistema Único de Saúde (SUS) socorreu um número cem vezes maior (877 863) de mulheres que sofreram abortos espontâneos ou complicações em procedimentos realizados fora de hospitais.
Normalmente, o Milhas só consegue auxiliar uma pequena fração das gestantes que o procuram (a organização chega a receber dezoito pedidos de apoio por dia). A capacidade de ajuda diminuiu ainda mais na pandemia, devido ao bloqueio de fronteiras e à suspensão dos serviços de saúde. Mesmo assim, com alguma criatividade, Juliana Reis e a agente de viagens Sandy Cardoso Barcellos formularam um plano para levar Mariana a Bogotá, a capital colombiana, e lhe propiciar um aborto seguro. A professora tomaria um ônibus em Boa Vista, atravessaria a Floresta Amazônica pela BR-174 e desembarcaria em Manaus, de onde voaria rumo à cidade de Tabatinga (AM). Ali, cruzaria a fronteira num táxi até o município colombiano de Leticia, em cujo aeroporto pegaria um avião até Bogotá. Depois de interromper a gestação indesejada, ela iria descansar por uma tarde e enfrentar a mesma viagem no sentido contrário. “Uma aventura como essa poderia soar assustadora para uma carioca ou uma paulista, mas não para Mariana, que cresceu no extremo Norte da Amazônia. Tive a impressão de que a longuíssima jornada não lhe pareceu nada de mais”, me disse Reis, que nasceu no Rio de Janeiro e é cineasta, além de ativista. A viagem de cinco dias custou 6,3 mil reais, incluindo os gastos com o procedimento médico e as estadas em hotéis de Tabatinga e Bogotá. Quase tudo foi bancado por doações. A professora pagou somente as passagens de ônibus.
Em março de 2017, o Psol e a organização feminista Anis – Instituto de Bioética apresentaram uma ação no Supremo Tribunal Federal reivindicando que o aborto até a 12ª semana de gravidez seja descriminalizado, independentemente do motivo que levou a gestante a fazê-lo. A demanda ainda aguarda decisão da corte, e é improvável que os magistrados se pronunciem no ano eleitoral de 2022. “Enquanto isso, muitas de nós continuarão morrendo”, lamentou Mariana numa de nossas conversas. Foi com a intenção de expor as dificuldades enfrentadas por uma mulher em busca de autonomia sobre sua própria saúde reprodutiva que a professora aceitou compartilhar seu périplo com a piauí. A viagem foi reconstituída a partir do seu depoimento, fotografias, mensagens de texto ou de voz e chamadas telefônicas.
Na segunda-feira, dia 21 de junho, Mariana estava bastante nervosa. Em parceria com a agente de viagens, Juliana Reis planejou meticulosamente cada etapa da jornada. Arranjou um taxista para levar Mariana de Tabatinga até Leticia (um percurso que não leva mais de dez minutos) e reservou um quarto de hotel próximo à clínica de aborto em Bogotá. Por vídeo ou telefone, as três mulheres repassaram diversas vezes todos os detalhes, mas a gestante ainda temia que algo saísse errado. Ela se encontrava em Boa Vista, enquanto Reis estava em Teresópolis, na serra fluminense, onde vive, e a agente de viagens, em Buenos Aires. Embora já tivesse feito voos domésticos, Mariana nunca passara por um controle de imigração e não sabia direito o que esperar. A professora havia decidido manter a viagem mais ou menos em sigilo, e suportar aquele segredo se tornava cada vez mais difícil. O marido e uma amiga íntima foram os únicos que tomaram conhecimento da aventura. Os filhos da gestante imaginavam que a mãe estivesse indo para outro estado, onde disputaria uma vaga de emprego. Fazer viagens internacionais com o intuito de abortar não é ilegal. Mesmo assim, a professora optou pela discrição.
Segundo uma pesquisa do Datafolha divulgada em agosto de 2018, um terço dos brasileiros acredita que as mulheres não deveriam ser presas nem enfrentar ações judiciais por interromper uma gravidez. No entanto, mais da metade (58%) pensa justamente o inverso. “Seria bom tratar do assunto às claras, mas ainda existem muitos tabus”, reclamou Mariana quando lhe contei que, em meu país, os Estados Unidos, campanhas recentes incentivam as norte-americanas a falar publicamente sobre seus abortos – apesar de uma onda conservadora, que já influencia juízes da Suprema Corte, estar colocando em xeque o direito à prática. No Brasil, tamanha liberdade de expressão não parece cabível. Outra pesquisa, agora de 2016 e realizada pela Anis, demonstrou que uma em cada 5,4 brasileiras de até 40 anos interrompeu pelo menos uma gestação. Isso significa que a professora quase certamente tem amigas, colegas e familiares que recorreram ao procedimento, mas evitam comentar. O estigma é profundo, e o efeito que produz é o de isolar as mulheres.
Na terça-feira, pontualmente às oito da noite, Mariana deixou Boa Vista. O ônibus que a conduzia só iria chegar a Manaus às oito da manhã. Ela usava roupas confortáveis e carregava uma almofada para o pescoço, que exibia o desenho de um mapa-múndi em preto e branco, no qual a gestante poderia esquadrinhar os 3 mil km que iria percorrer até Bogotá. Na mochila colorida havia um Kindle com um romance de suspense ambientado numa clínica psiquiátrica, mas nem mesmo a trama envolvente logrou prender a atenção da passageira por muito tempo. Logo que embarcou, ela recebeu do motorista um lanchinho modesto e uma garrafinha com suco de laranja. A ansiedade, porém, a impediu de comer. “Só quero chorar”, confessou na última mensagem que me enviou àquela noite.
A chuva torrencial e os buracos na rodovia malcuidada despertaram Mariana logo nas primeiras horas da manhã de quarta-feira, quando o ônibus se aproximava de Manaus. Assim que chegou à rodoviária, a professora chamou um Uber, que a levou ao aeroporto, onde ela pegou o voo de duas horas até Tabatinga, na fronteira com o Peru e a Colômbia. Havia catorze meses que a cidade de 68,5 mil habitantes, destino recorrente de refugiados do Haiti, da Venezuela e de outros países em que reinam a pobreza, a violência e a instabilidade política, se tornara crucial para o governo brasileiro conter a disseminação do coronavírus. Mas agora a fronteira estava reaberta. Colombianos e peruanos podiam entrar no Amazonas em busca de vacina contra a Covid-19, e gestantes podiam voltar a viajar para fazer um aborto na Colômbia, o que vem acontecendo com frequência cada vez maior. Uma ativista do Coletivo Aurora, organização de São Paulo similar ao Milhas, contou que, em algumas clínicas de Bogotá, os médicos resolveram aprender português para atender melhor as pacientes oriundas do Brasil.
Quando desembarcou do avião em Tabatinga, Mariana foi recebida por Hugo, o taxista colombiano que a transportaria até Leticia. Situada ao Norte do Rio Solimões, a cidade ficou tão conectada com Tabatinga em termos comerciais, culturais e geográficos que ambas parecem formar um único conglomerado urbano. O motorista, afável e paciente, serviu de intérprete para a professora enquanto ela cruzava a imigração e a alfândega no aeroporto de Leticia. Seguindo o conselho de Sandy Barcellos, a agente de viagens, a gestante declarou que estava ali na condição de turista e forneceu o nome do hotel onde ficaria em Bogotá. Ninguém a barrou.
Como as companhias aéreas reduziram drasticamente seus serviços durante a crise sanitária, os únicos voos disponíveis entre Manaus e a capital da Colômbia em junho de 2021 passavam antes pelo Panamá ou México, países que não integram o Mercosul. O bloco econômico que abarca brasileiros e colombianos não exige que seus cidadãos apresentem passaporte para circular na região. Se mostrarem qualquer documento de identidade às autoridades migratórias, terão acesso livre. A professora não dispunha de passaporte nem de tempo para providenciá-lo. Por isso, estava impedida de entrar no Panamá ou no México. Daí o itinerário tortuoso que acabara de percorrer.
No aeroporto de Bogotá, a gestante tentou conectar seu celular à internet, mas não conseguiu. Sem poder se comunicar com o motorista que Barcellos contratara para levá-la até o hotel, Mariana perambulou pelos corredores por duas horas. Procurou avidamente alguém que segurasse uma placa com seu nome. Como não encontrou, só lhe restou chamar um táxi.
Mal chegou ao hotel, os funcionários avisaram que sua reserva havia sido transferida para outro estabelecimento nos arredores, pertencente à mesma rede. Por um momento, a professora receou ter caído num golpe (“Será que o pessoal do Milhas é confiável? Será que me envolvi com uma máfia de tráfico humano?”), mas o check-in no segundo hotel se deu sem atropelos, exceto o da língua. Embora Mariana compreendesse o espanhol dos colombianos, eles não entendiam o seu português. Depois de finalmente entrar em seu quarto, a gestante tomou uma chuveirada, despencou na cama e dormiu, exausta.
A interrupção da gravidez iria ocorrer na quinta-feira, dia 24 de junho. Desde 2006, por causa da Sentença C-355, o aborto é permitido na Colômbia em circunstâncias muito parecidas com as da legislação brasileira: quando algum tipo de má-formação impede que o bebê sobreviva fora do útero, quando a gestação resulta de um ato sexual não consentido ou quando a saúde da mãe corre perigo. Em 2008, a Corte Constitucional também estabeleceu que não existe limite de idade gestacional para fazer a intervenção nas situações previstas por lei. Mas, diferentemente do que se passa no Brasil, a expressão “saúde da mãe” tem significado bastante amplo na Colômbia. Abrange tanto o bem-estar físico da grávida quanto o emocional. Uma colombiana ou estrangeira que deseje abortar na rede pública ou privada por se sentir deprimida com a gravidez precisa somente alegar isso aos profissionais que a atenderem. No entanto, várias mulheres relatam que médicos e paramédicos contrários à prática dificultam o acesso ao procedimento.
A avaliação psicológica de Mariana estava marcada para as 8 horas de quinta, na clínica onde aconteceria o aborto. Juliana Reis dissera à professora que o estabelecimento se localizava “em frente ao hotel”. De fato, havia uma clínica perto de onde a brasileira estava hospedada depois do check-in malogrado. Só que não era a mesma em que a ativista marcara a intervenção. Em vez de ir à clínica próxima do primeiro hotel, a gestante se confundiu e tentou entrar na que ficava defronte ao segundo. Mostrou aos seguranças uma confirmação por e-mail da consulta agendada, mas eles pediram uma cópia impressa da mensagem.
Enquanto tentava imprimi-la nas redondezas, Mariana perdeu o horário da avaliação. Desesperada, telefonou para Reis, que lhe garantiu: “Você não precisa de nada impresso. Já mandei umas quarenta mulheres à clínica e nunca exigiram isso.” Foi então que Mariana notou o equívoco. Com auxílio da ativista, conseguiu encontrar a clínica certa, uma unidade da Oriéntame, instituição particular e sem fins lucrativos que se dedica à saúde reprodutiva. Fundada em 1977, a rede cobra 700 dólares por um aborto cirúrgico solicitado pelo Milhas, mas pode oferecer desconto para mulheres de baixa renda ou até realizar a intervenção de graça, como ocorreu com Mariana.
Na Oriéntame, uma recepcionista aguardava a gestante, já que Reis havia ligado e esclarecido a confusão. Assim que deu entrada na clínica, a brasileira remarcou a avaliação e o procedimento. Esperou apenas quinze minutos até ser chamada pela psicóloga. No atendimento, contou por que resolvera interromper a gravidez. A psicóloga registrou cuidadosamente o relato e leu em voz alta as três situações que despenalizam o aborto na Colômbia. Logo depois, informou que o caso da professora se enquadrava numa das três, pois colocava em risco a saúde emocional dela. A psicóloga também respondeu às dúvidas de Mariana e lhe apresentou o profissional que executaria a intervenção.
O médico explicou o procedimento em detalhes e indagou se a gestante não gostaria de aproveitar a cirurgia para implantar um DIU, o dispositivo intrauterino. A brasileira, que já usava outros métodos anticoncepcionais, topou. “Daqui a pouco, a menopausa vem, e aí tudo ficará certo. Mas, enquanto não chega, é melhor aumentar a prevenção”, me disse.
Uma enfermeira passou três medicamentos para Mariana – um antibiótico, um analgésico e dois comprimidos de misoprostol, substância que dilata o colo do útero. A professora deveria tomar todos os remédios antes do procedimento. Ela seguiu as orientações e aguardou os efeitos do misoprostol na própria clínica. Depois de uma hora e cinquenta minutos, sentiu as primeiras contrações uterinas, exatamente como a enfermeira as descrevera. Também sentiu um frio tão intenso que teve de sair brevemente da Oriéntame para apanhar um pouco de sol. O sangramento do útero começou exatas duas horas após a ingestão do misoprostol. Daí em diante, “aconteceu tudo muito rápido”. Outra enfermeira ajudou a gestante a vestir a bata hospitalar e a conduziu à sala de cirurgia.
O procedimento em si durou somente dez minutos. “Foi um período curto, mas extremamente doloroso, apesar da anestesia local”, relembrou Mariana. Como a gravidez ainda estava no primeiro trimestre, a gestante fez um aborto por aspiração intrauterina. Pelo colo dilatado do útero, o médico inseriu uma cânula ligada a uma espécie de seringa. O embrião pôde, assim, ser aspirado para fora. Ele tinha o tamanho de um morango – cerca de 30 mm de comprimento. Em cirurgias desse tipo, a anestesia local consegue neutralizar a dor provocada pela entrada da cânula no colo do útero, mas não ameniza completamente a que decorre das intervenções dentro do órgão. Às vezes, a sucção não remove todo o tecido fetal, e o médico se vê obrigado a realizar uma curetagem (ou raspagem do útero), o que provoca um desconforto extra na paciente. Por sorte, Mariana não necessitou de nada disso. Ela fez questão de me dizer que uma enfermeira segurou sua mão o tempo inteiro e a ajudou a lidar com a dor. “Além do incômodo físico, tem a parte emocional. A gente sai de um processo tão violento e só vê rostos desconhecidos. É superdifícil. Pelo menos, a clínica me ofereceu um tratamento muito humanizado, sem burocracia nem julgamento moral. Ainda bem… Do contrário, eu estaria péssima.”
A professora afirmou que, na hora do procedimento, pensava exclusivamente nos filhos de 12 e 15 anos. “Até os dois caminharem com as próprias pernas, viverei para eles.” À semelhança de Mariana, quase metade das mulheres que buscam o Milhas é casada e/ou já tem filhos. Em 2016, a Pesquisa Nacional de Aborto, conduzida por integrantes da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Piauí, constatou algo parecido: a probabilidade de mulheres com no mínimo um filho interromperem a gravidez era maior que a de mulheres sem filhos.
Depois do procedimento, a brasileira esperou uma hora na clínica para averiguar se a intervenção não causaria reações adversas. Uma enfermeira lhe recomendou consultar um ginecologista nas semanas seguintes. O especialista verificaria se a inserção do diu não traria complicações. Mariana se comprometeu a fazê-lo no Brasil. Tão logo retornou para o hotel, tomou um banho e, aliviada, dormiu a noite inteira.
Na sexta de manhã, acordou com uma sensação agradável (e inesperada) de leveza. Não tinha dor nenhuma, apenas um tênue sangramento, efeito pós-operatório considerado normal. A professora voou o quanto antes para Leticia, onde o taxista que deveria encontrá-la não apareceu. Ele a ajudaria com a papelada da imigração. Sem conseguir sinal no celular, Mariana procurou um hotel e, de lá, acionou Sandy Barcellos, que logo solucionou os entraves burocráticos. A brasileira retornou, então, a Tabatinga.
Apesar de trabalhar em Buenos Aires, a agente de viagens é capixaba. Ela se descreve como “ideologicamente alinhada com a missão do Milhas”, de tal modo que se especializou em apoiar mulheres que saem do Brasil para abortar. Desde 2020, a agência de Barcellos já organizou o roteiro de quase oitenta gestantes nessa situação. “Cuidamos da parte logística com muito carinho. Às vezes, passo horas ao telefone para tranquilizar as grávidas que nunca fizeram uma viagem internacional”, contou. A agente tenta recorrer a motoristas e funcionários de hotel compreensivos. “Quero propiciar a experiência mais tranquila possível para viajantes que já estão lidando com circunstâncias muito difíceis.”
Na manhã de sábado, Mariana voou de Tabatinga até Manaus, onde pegou o ônibus noturno em direção a Boa Vista. De novo, um salgadinho e um suco de laranja a sustentaram durante o extenso trajeto. Enquanto cruzava a BR-174 ela conversou inúmeras vezes com os filhos e o marido pelo celular. Buscava afugentar o resto de vergonha que ainda sentia, embora estivesse convicta de que fizera o certo ao interromper a gravidez. Felizmente, a viagem pela rodovia amazônica foi bem mais calma que a anterior. Talvez o motorista tenha evitado os buracos da estrada. Ou talvez os espíritos dos indígenas massacrados na região tenham reconhecido o cansaço daquela passageira e lhe assegurado um pouco de paz.
O marido de Mariana a esperava na rodoviária de Boa Vista. Quando finalmente chegou em casa, na manhã de domingo, dia 27 de junho, correu para abraçar o casal de filhos, os três gatos e os dois cachorros. Uma semana depois, lhe perguntei como avaliava a experiência toda. Ela me escreveu que vivenciava uma mescla de emoções. Em primeiro lugar, desfrutava de um imenso alívio por não precisar levar adiante uma gestação indesejada e por não ter ficado à mercê de uma legislação tão antiquada como a brasileira no que se refere à saúde reprodutiva das mulheres. Ela também estava muito feliz por retomar as atividades cotidianas, de que tanto gostava. Pretendia começar um mestrado em breve e viajar de férias com a família para São Paulo, onde visitaria principalmente os museus. A aflição trazida pela gravidez afetara o desempenho de Mariana como professora. Ela, agora, desejava compensar o prejuízo.
Em outubro, voltei a procurá-la. “Você está bem?”, indaguei pelas redes sociais. “Estou”, respondeu. “Não sinto culpa de nada, mas também não posso dizer que seja confortável tocar ou pensar no assunto. Vivemos numa sociedade machista e fomos criadas para não ter determinadas escolhas. De qualquer maneira, se fosse hoje, eu tomaria exatamente a mesma decisão.”