ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2012
Engenharia extrema
Não existe solo que resista ao Tatuzão
Daniela Pinheiro | Edição 75, Dezembro 2012
Na Venezuela, ele é Minhocão. Na Alemanha, já se chamou Big John. Na Rússia, não lhe deram nome, mas na Austrália ficou conhecido por Toupeira. Quando desembarcar no porto do Rio, em meados do mês que vem, o Tatuzão – como foi apelidado em território nacional – se juntará a um exército de outros 900 conterrâneos espalhados mundo afora na furiosa atividade de escavar os recôncavos do subsolo em nome do progresso.
Diante da perspectiva de que a Terra terá em breve 9 bilhões de pessoas – dois terços delas vivendo nas cidades –, alternativas à ocupação da superfície do planeta se tornaram urgentes. O subsolo virou a solução para controlar o acúmulo de gases poluentes na atmosfera, reduzir o tráfego e desafogar as metrópoles. Numa cidade que vai sediar a Copa e a Olimpíada, sobre a qual paira o espectro de um vexame internacional de mobilidade urbana, a necessidade de arrumar a casa é catapultada às alturas – e passa pelo subterrâneo.
Assim, o governo do Rio de Janeiro encomendou, por 100 milhões de reais, seu tatu particular para tirar do papel o projeto de uma malha metroviária que data dos anos 70. Desde então, foram construídos apenas 40 quilômetros de metrô na capital fluminense, onde cerca de 1 milhão de pessoas utilizam o transporte público diariamente. Em Brasília, a malha metroviária tem menos de dez anos e é mais longa. Em São Paulo, ela tem o dobro do tamanho da carioca.
Desta vez, prometem os comunicados das assessorias de imprensa do estado, parte do metrô se materializará 12 metros debaixo da terra, em tempo recorde e sem alarde. Os 5,7 quilômetros que separam Ipanema de São Conrado, cortando a Gávea e o Leblon – uma área em que a maioria dos moradores tem carro próprio –, devem ser concluídos até dezembro de 2015, afirma o governo.
Há quarenta anos, tatuzões esburacam o solo brasileiro de norte a sul, mas, pela primeira vez, o país terá uma máquina cavadora de túneis com essas proporções. Ela terá o mesmo tamanho da engenhoca usada nas obras de expansão do metrô de Barcelona e é apenas um pouco menor do que a usada no túnel sob o rio Yang-tse, na China.
Produzido na Alemanha, o Tatuzão é um cilindro de 120 metros de comprimento e 11,5 metros de diâmetro – altura equivalente à de um prédio de quatro andares –, e peso igual ao de 400 elefantes. É composto por 90 mil partes móveis e sua frente é formada por uma enorme placa arredondada incrustada de discos giratórios, o que lembra uma pizza dentada rodando como as pás de um ventilador. Pressionados contra uma superfície rochosa, os discos trituram a pedra, que é levada por uma esteira rolante pelo teto do cilindro até contêineres na entrada do túnel. Dali, os detritos são retirados por retroescavadeiras, que fazem a desova num terreno longínquo.
“A máquina do Rio é especial. Além de triturar dois tipos distintos de formações geológicas – rocha e areia –, ela é um paradigma de engenharia no país”, disse em português sem sotaque o alemão Juan Manuel Altstadt, diretor da Herrenknecht, a maior fábrica de máquinas para túneis do mundo, que produziu o Tatuzão. “Se faz barulho? Nenhum. Mas quem mora em frente ao buraco pode sentir alguma coisa”, advertiu.
Com pressão, temperatura e quantidade de oxigênio reguladas por computadores, o interior do Tatuzão lembra uma fábrica. Há escadas, refeitórios, banheiros e até refúgios blindados contra incêndios, desmoronamentos e terremotos. Uma dezena de funcionários se revezará em três turnos no fundo da caverna operando o equipamento. Até a tinta escolhida para seu revestimento tem função prática: é biodegradável e propositadamente branca para brilhar na escuridão.
Por dia, o Tatuzão escava de 15 a 18 metros de túnel – quatro vezes mais do que o conseguido há duas décadas. À medida que o cilindro avança destruindo o que encontra pela frente, a própria máquina instala anéis gigantes de concreto firmados com uma liga de aço para montar a estrutura de sustentação das paredes do túnel.
Há 2 mil anos, os romanos cavaram um túnel de 1 500 metros ligando Nápoles à vila de Pozzuoli, no sul da Itália. Aqueciam as rochas vulcânicas com fogueiras, quebrando-as com o choque térmico de água gelada. Séculos se passaram até que surgissem bananas de dinamite e mineiros armados com enxadas e pás, condenados à morte precoce por problemas respiratórios ou acidentes fatais comuns durante as obras.
No começo do século XIX, o engenheiro Marc Brunel sonhava em construir um túnel sob o rio Tâmisa, na Inglaterra. Em uma ocasião, observando uma larva corroendo parte da estrutura de um barco, percebeu que o bicho engolia a madeira e excretava uma substância que funcionava como um escudo encobrindo o caminho percorrido. Assim, nasceu a ideia da primeira tuneladora da era moderna. Construído entre 1825 e 1843, o túnel feito por Brunel, com 400 metros de extensão, foi o primeiro do mundo escavado por máquinas embaixo d’água.
Estudiosos do assunto afirmam que, além da engenharia primorosa, o segredo do sucesso dos tatuzões alemães é a composição de suas ligas de aço, também feitas de cromo e manganês. Em uma entrevista em 2008, o fundador da fábrica que os produz, Martin Herrenknecht, disse que a fórmula exata do material é “assunto privado” – “assim como uma escova de dentes ou uma namorada”.
Eles já furaram as areias do Catar e o solo de mármore da Malásia, passaram um túnel sob o estreito de Bósforo, na Turquia, no meio das catacumbas em Roma e ao largo das Pirâmides do Egito. É deles o maior túnel do mundo, o de São Gotardo, que liga a Suíça à Itália, numa linha de 57 quilômetros escavada por dentro dos Alpes. A obra levou quinze anos para ser finalizada. O projeto mais ambicioso da empresa é construir o maior dos tatus, com 19,25 metros de diâmetro, para unir os dois lados de São Petersburgo, na Rússia, passando por baixo do rio Neva.
Até os anos 70, as tuneladoras tinham destinações específicas. Havia uma para cavar rocha, outra para areia, outra para trabalhar sob a água. Recém-formado em engenharia pela Universidade de Konstanz, Herrenknecht pediu 20 mil dólares emprestado à mãe e passou a trabalhar no protótipo do que viria a ser sua criação maior, até hoje sem concorrente. Inventou uma máquina híbrida capaz de roer de granito a areia em condições de temperatura e pressão extremas. A partir daí, não houve mais rios, montanhas, cidades, mares, pedras ou gelo imunes aos tatus alemães.
Atualmente, o Tatuzão carioca navega aos pedaços pelo oceano Atlântico rumo ao Rio de Janeiro. A máquina foi desmontada e distribuída em vinte contêineres, além de dezenas de peças avulsas. Quando chegar de navio ao Brasil, só sua remontagem vai demorar cinco meses. Ao final da escavação, depois de dois anos de trabalho ininterrupto, ele volta a ser o amontoado de peças de um quebra-cabeça. Se ainda aguentar o tranco, deve ser aproveitado na escavação até a Barra da Tijuca. Caso contrário, vai ser aposentado e revendido em fatias por um preço camarada para a fabricante alemã.
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