Dário Cavalcante com Collor, em Niterói, na campanha de 89, e hoje, em Maceió: “Temos um ex-deputado federal na cadeia, dois ex-deputados estaduais foragidos e um coronel de polícia preso” FOTO: JOSÉ FEITOSA
Engolfado pela violência
Estado campeão em homicídios, Alagoas recorre a um ex-braço direito de Collor para diminuir a criminalidade e escapar da maldição de Graciliano Ramos
Plínio Fraga | Edição 56, Maio 2011
Em frente à praia de Jatiúca, em Maceió, basta pisar na faixa de pedestres para alertar os motoristas de que é preciso parar. Um sinal luminoso avisa aos carros que a prioridade é dos pedestres. O sistema eletrônico parece alardear que Alagoas, finalmente, se moderniza e deixa para trás a fama de lugar agressivo, miserável e sem leis. Mas é uma ilusão tecnológica: pouquíssimos motoristas respeitam a ordem. Já a fama de terra violenta continua justificada: Alagoas encerrou 2010 com o maior número de homicídios do Brasil, proporcionalmente ao de habitantes. Foram setenta mortes para cada grupo de 100 mil, mais que o dobro do Rio e sete vezes maior que o de São Paulo.
No quesito pobreza, a situação também continua na mesma: seis em cada dez alagoanos vivem na miséria, e o estado tem o pior índice de desenvolvimento humano do Brasil. A soma das riquezas que produz, o Produto Interno Bruto, deixa Alagoas à frente de Piauí e Sergipe, é verdade. Mas como a concentração da renda nas mãos de poucos ali é maior, 30% de seus habitantes dependem do Bolsa Família para sobreviver. Com esses índices, não é surpresa que as vítimas de homicídios sejam, em sua maioria, homens, jovens, negros e pobres.
As autoridades alagoanas, que classificam a violência urbana como “estado de calamidade”, vêm tentando entender o problema. Entre dezembro e março, elas promoveram uma série de reuniões entre técnicos locais, do Ministério da Justiça e outros estudiosos do assunto.
Na primeira delas, quando o petista José Eduardo Cardozo, agora ministro da Justiça, ainda era coordenador da equipe de transição, o governador eleito fez um anúncio surpreendente, ao menos para os não alagoanos, que anteviram um futuro ainda mais sinistro para o estado. O tucano Teotonio Vilela Filho avisou que o próximo secretário de Segurança seria um ex-guarda-costas e ex-faz-tudo de Fernando Collor de Mello. Dito e feito: Dário César Cavalcante, um policial militar que o ex-presidente transformou em diretor local da Rede Globo, é agora o responsável pela política de segurança, e comanda as polícias Civil e Militar e os Bombeiros.
Na semana do Carnaval, houve 38 homicídios em Alagoas, contra 40 no Rio, que tem uma população cinco vezes maior. Terminada a festa, Teotonio Vilela Filho obrigou alguns assessores a dar expediente até mais tarde no Palácio República dos Palmares, a sede do governo. Queria que eles escrevessem um pronunciamento incisivo sobre o problema da segurança. O discurso seria feito no dia seguinte, num seminário sobre violência para quarenta autoridades da área, entre elas o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Procurava uma imagem forte para dar impacto ao pronunciamento, no qual pediria recursos do governo federal.
O governador é filho de um usineiro que apoiou a ditadura militar e depois se afastou dela, Teotonio Vilela. O Menestrel das Alagoas, como era conhecido,esmerava-se em criar frases engraçadas. Na crise econômica do final dos anos 70, por exemplo, saiu-se com: “Sofremos de carência generalizada, vai do feijão à Constituição.”
Para a reunião com o ministro da Justiça, o governador alagoano matutou até achar uma imagem que resumisse o problema da criminalidade: “Todo mês cai um Boeing em Alagoas e ninguém se espanta mais: são 180 assassinatos por mês, e esse passou a ser um fato banal.” Um assessor dedicou parte da noite a fazer as contas para checar se a figura de retórica de Teotonio Vilela Filho correspondia à realidade.
Foi com a hipérbole do Boeing que Vilela abriu um encontro de nome quase tão altissonante: 1º Colóquio de Experiências Exitosas na Prevenção e Redução de Homicídios. Num sábado de março, dezenas de engravatados contrastavam com turistas em roupas de banho no salão amplo, com vista para o mar, do Hotel Ritz Lagoa da Anta, em Maceió. Armas de longo alcance e grosso calibre espantavam turistas estrangeiros que passavam entre os agentes do Tigre,uma unidade de elite chamada assim porque seu nome (numa violência à sintaxe) é “Tático Integrado de Grupos de Resgates Especiais”.
O mote do seminário foi o recém-concluído Mapa da Violência, estudo abrangente sobre a criminalidade encomendado pelo Ministério da Justiça. Os números mais recentes apontam a ocorrência de pouco mais de 50 mil homicídios em todo o Brasil, ao longo do ano passado. É uma tendência de alta, mas que acompanha a velocidade de crescimento da população. Ele também mostra melhorias setoriais expressivas.
É o caso de São Paulo, que reduziu a taxa de homicídios a um quarto do que era há uma década. No primeiro trimestre deste ano, obteve o índice mais baixo da história: 9,52 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes – pela primeira vez menor que o patamar de dez, tido como controlável pela Organização Mundial de Saúde. No Rio, o número de assassinatos caiu quase à metade. Alagoas, por sua vez, registrou um aumento sem precedentes: saltou de 21,8 assassinatos por 100 mil, em 1998, para 70,2 em 2010, um recorde nacional histórico, com poucos concorrentes mesmo no panorama mundial. Por que esse aumento selvagem?
O aumento do consumo do crack é apontado com frequência como um dos responsáveis pelo surto alagoano de homicídios. Como o crack é uma droga barata, que vicia rápida e profundamente, os drogados, reza a hipótese, matariam com facilidade para obtê-la. O sociólogo Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, que participou do colóquio em Maceió, acha que não é assim.
“O papel do crack na violência é uma bobagem que está virando verdade”, disse-me ele em Alagoas. “Naturalmente, crack é um problema, é dramático, porque é uma droga barata, devastadora. Mas não acho que tenha relação com o crescimento da violência e da criminalidade. Fica parecendo que está tudo funcionando bem. Que a polícia é maravilhosa e a Justiça condena os culpados, mas tem o usuário de crack que está atrapalhando. Não é isso.”
Depois do seminário, Claudio Beato estava cansado. E não só porque falou por quarenta minutos e ouviu durante oito horas. É que o debate sobre criminalidade pouco se aprofunda e às vezes empaca em certos mitos. “Está havendo um crescimento da violência não só em Alagoas, mas no Nordeste inteiro”, ele disse. “O que ocorre? Acho que uma parte tem a ver com os últimos governos em vários estados, que tinham uma tendência de esquerda e nunca souberam lidar com esse problema de segurança das polícias. Sempre foram um pouco avessos a isso. A Bahia, por exemplo, está num processo de deterioração mais impressionante, mesmo sem ter os números superlativos de Alagoas.”
Segundo Beato, o Brasil sofre com a falta de formação de quadros para a segurança pública: “Economistas, temos aos montes. Falta surgir um Delfim Netto da segurança, que estimule o surgimento de mais especialistas, de gente que estude e pesquise o problema.”
A violência chegou à Universidade Federal de Alagoas, primeiro na teoria e depois na prática. Na teoria, em 2002, quando se criou ali o Núcleo de Estudos sobre a Violência em Alagoas. Na prática, em março agora, quando duas jovens foram assassinadas em pleno campus, em Maceió, com tiros na cabeça. A socióloga Ruth Vasconcelos, coordenadora do Núcleo, dedica-se há quase uma década a estudar a cultura da violência em Alagoas, tema sobre o qual já escreveu três livros.
Em um café na livraria da universidade, a socióloga fez uma avaliação pessimista do problema. “Alagoas é um estado que não oferece as condições mínimas para a existência humana”, disse. “Não tem um sistema educacional, político e jurídico que sirva de solo social civilizacional. Há uma desestruturação do Estado, que gera um ambiente inseguro. Não se sabe o que vem do outro.”
No livro Corrupção e Pobreza no Brasil, outro alagoano, o economista Fernando José Lira, colocou a questão em perspectiva histórica. “Desde que foi emancipada, Alagoas sempre representou o grande guarda-chuva protetor de suas elites”, disse. “A elite agrária capturou o Estado, num processo com a qual ele quase se confunde com o privado, manipulando-o largamente e sendo acobertado pelo manto da proteção estatal. Desse modo, os recursos federais e estaduais são apropriados e controlados por essa elite local, com o intuito de manter suas atividades econômicas e consolidar o seu poder político.”
O objetivo dessa elite, sustenta o economista, é “a manutenção de um sistema arcaico de produção e dominação, assentado no coronelismo, no analfabetismo, na mortalidade infantil e na pobreza extrema de quase metade da população residente”.
Para Ruth Vasconcelos, nos últimos anos cresceu a percepção de que a política e os políticos não resolverão o problema.“O jovem não se organiza mais politicamente”, disse ela. “E quando apolítica deixa de ser campo de mediação de conflitos, também deixa de ser campo de construção de alternativas. As opções ficam individualizadas e falsas. Colocar muro mais alto, andar com arma, carros blindados e cercas eletrônicas, tudo isso é imaginar que a violência pode ser resolvida de modo individual.”
Arnon Affonso Monteiro de Carvalho Collor de Mello viveu a situação exposta por Ruth Vasconcelos. Mais que isso: insurgiu-se contra a apatia da juventude em relação à política, lutou contra ela. Economista formado na Universidade de Chicago, com cursos de pós-graduação em Harvard, o filho de Fernando Collor morou em Maceió no início da década passada. Queria trabalhar na empresa da família, as Organizações Collor de Mello, fundada por seu avô, e fazer política no estado. Deu-se mal nas duas coisas.
Num almoço no Leblon, Arnon apontou o que acredita ser uma característica da juventude alagoana: “Falta perspectiva. Quando estava lá, muitos conhecidos e amigos faziam, ou tinham feito, faculdade de direito. Mas com o objetivo de serem indicados para algum cargo público, a começar pelo de desembargador. É o único lugar do Brasil em que se sabe de cor os nomes dos desembargadores do Tribunal de Justiça. Todo mundo sabe os prazos, quando haverá vagas. Que juventude é essa que quer ser desembargador?, eu me perguntava.”
André Paiva Carnaúba é um ex-praticante de tiro ao alvo que se tornou coordenador da ONG Movimento Internacional Pela Paz e Não-Violência, o MovPaz, e também vice-presidente do Maceió Voluntário. Como em Alagoas as fronteiras entre o não governamental e o governamental são tênues – e entre o público e o privado também –, Carnaúba marcou a entrevista numa sala da Secretaria de Estado Especial de Promoção da Paz. A Secretaria auxilia as suas ONGs, e ele é casado com uma assessora do titular da pasta.
Carnaúba disse que no estado “não tem bala perdida, a bala é com endereço certo”. Ele falou da tradição da elite alagoana de presentear os filhos que completam 18 anos: “Por muito tempo, os pais deram aos jovens duas armas: um carro e um revólver.”
A principal conclusão do 1º Colóquio de Experiências Exitosas na Prevenção e Redução de Homicídios foi de uma banalidade lancinante: não existem soluções mágicas. E as propostas “exitosas” recomendadas para Alagoas também integram há décadas a cartilha da segurança pública básica: os dados sobre a criminalidade precisam ser padronizados, devem estar on-line e só têm sentido quando servem para fixar metas a serem avaliadas e cobradas mensalmente; a desordem urbana propicia o crescimento da delinquência e do crime; polícia que vigia presos em delegacias não policia as ruas; policial que ganha mal é mais facilmente corrompido; onde há investigação policial e punição do crime as taxas de violência são menores.
O problema de Alagoas, ao que parece, não é de falta de verbas ou policiais. Lá, a remuneração de um policial militar em início de carreira é de 1 400 reais; a de um civil, 1 800. Não estão nem entre os melhores nem entre os piores salários da categoria, no plano nacional. O efetivo das duas forças passa de 10 mil homens. Não é o ideal, dizem os técnicos. Mas não é insuficiente.
Por que, então, a escalada da violência? Em resumo, porque a situação crônica se tornou também aguda: a polícia não tem estratégia, não investiga, não prende, é pouco cobrada e fiscalizada. Esse diagnóstico singelo, porém, não é facilmente aceito. É mais fácil acreditar em lendas.
Uma versão muito badalada em Alagoas para a explosão da criminalidade, e a preferida dos políticos, coloca a responsabilidade em Fernandinho Beira-Mar, o traficante cujo verdadeiro nome é Luiz Fernando da Costa. Ele tem hoje 43 anos e está na penitenciária de segurança máxima de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Lá, cumpre penas por tráfico internacional de drogas e armas, assassinatos e lavagem de dinheiro. Somadas, suas penas ultrapassam um século de duração.
Em 2003, Beira-Mar ficou preso 39 dias em Maceió. Em 2005, outros 118 dias. Ou seja, ficou menos de seis meses recluso na Superintendência Regional da Polícia Federal da capital alagoana, em duas etapas bem espaçadas. Foi o que bastou para surgir a lenda. Segundo ela, durante a sua permanência em Maceió, Beira-Mar ordenou que fosse trazida de sua base, no Rio, uma “equipe” formada por advogados, familiares e laranjas. Pois essa equipe teria disseminado o crack entre pequenos traficantes da capital alagoana. E, com o crack, veio a violência desmedida. A história é boa. O estranho é não haver nenhuma prova, evidência, indício, nada, de que ela seja verdadeira.
O governador Teotonio Vilela Filho repetiu-me o relato sobre Beira-Mar, já ouvido de outros interlocutores durante o simpósio. Quando falei da ausência de evidências, ele disse: “Se não há provas concretas, o fato é que, depois da passagem dele aqui, houve uma expansão da venda do crack.”
A história da explosão da venda de crack após a passagem de Fernandinho Beira-Mar não coaduna com a atual dimensão do tráfico em Alagoas. Segundo a própria polícia alagoana, não há no estado uma grande estrutura de tráfico, nem uma rede complexa, nem ligação direta com redes de traficantes do exterior, nem facções bem armadas e organizadas.
Ao contrário, as somas arrecadadas pelo tráfico alagoano estão longe de ser expressivas. Acusado de ser o maior traficante de Alagoas, Ivanildo Nascimento da Silva, 28 anos, o Aranha, foi preso em 2009. Comandava o tráfico de drogas em toda a área da orla da lagoa Mundaú, inclusive grandes favelas como Muvuca, Sururu do Capote, Torre e Galpão. De acordo com policiais, a mulher de Aranha herdou a gerência dos negócios. Em busca de provas, policiais investigam a compra que ela teria feito de uma casa no valor de 7 mil reais.
Mas resta o fato – indubitável, segundo a polícia – de que a maior parte das mortes registradas em Alagoas está mesmo ligada ao tráfico de drogas. Nos últimos quatro meses, doze moradores de rua foram assassinados. A polícia afirma que a maioria deles comercializava e/ou usava crack. Também não descarta mortes encomendadas a seguranças particulares – muitos deles policiais, que assassinariam nos horários de folga.
Dário Cavalcante está no topo da carreira. Aos 48 anos, é coronel da Polícia Militar e secretário da Defesa Social. Fernando Collor o chamou para ser seu segurança logo que assumiu o governo de Alagoas, no início de 1987. Desde logo, reconheceu a eficiência, a discrição e a capacidade de trabalho e organização do policial. Por isso, dois anos depois, encarregou-o de protegê-lo durante a tumultuada campanha eleitoral pela Presidência.
Numa foto famosa daquela época, feita por Chico Ferreira, Collor aparece de punhos cerrados, como se desse uma banana para a multidão que o hostilizava durante uma caminhada por Niterói. Dário Cavalcante está do lado esquerdo do candidato, de terno e gravata, gritando, com as mãos sob o paletó, como se segurasse uma arma.
Ele entrou no Palácio do Planalto, como assessor especial, em janeiro de 1990. Esteve ao lado do presidente o tempo todo. Foi embora em 29 de setembro de 1992, no dia do afastamento de Collor, acompanhando-o no trajeto até o helicóptero com o qual fez seu derradeiro voo do Palácio do Planalto. Foi dos poucos assessores do presidente que não foi acusado de corrupção. E talvez o único a não tê-lo traído, renegado ou criticado. Nunca.
No ostracismo pós-afastamento, continuou a servir o ex-presidente. Na primeira visita de Collor ao Brasil, após a estadia em Miami, só Dário Cavalcante o esperava no aeroporto. Quando o ex-presidente voltou a Maceió, lá estava Dário, como uma sombra, protegendo-o. Em 2003, Collor convidou-o para o cargo de diretor-executivo das Organizações Arnon de Mello, o complexo de comunicação do qual fazem parte a afiliada local da Rede Globo, a Gazeta de Alagoas, um portal de internet, um instituto de estudos, um órgão de pesquisa e três emissoras de rádio.
A Secretaria de Defesa Social fica num prédio austero no centro de Maceió, uma região degradada na qual o vaivém de pedestres durante o dia encobre o grande número dos sem-teto e pedintes que a noite revela. Num início de noite de março, Dário pediu licença para telefonar para a mulher. Disse-lhe que demoraria um pouco para chegar ao jantar de aniversário dela.
“Quando Joaquim Pedro assumiu as Organizações Arnon de Mello, Collor me chamou e pediu que eu o ajudasse”, contou o secretário. “Disse que confiava em mim e que o Joaquim não conhecia ninguém aqui.”
Os filhos de Collor com Lilibeth Monteiro de Carvalho, uma das herdeiras do Grupo Monteiro Aranha (dono de um portfólio de 1 bilhão de reais em investimentos imobiliários e participações em empresas como Klabin e Ultra), de fato, nunca haviam vivido em Alagoas. Foram criados no Rio, estudaram em colégios na Suíça e fizeram faculdade nos Estados Unidos.
No começo dos anos 2000, Collor tentou fazer de Arnon o seu sucessor na política; e de Joaquim Pedro, o herdeiro nos negócios. Arnon foi nomeado presidente do CSA, clube de futebol alagoano dirigido antes pelo pai e pelo avô. Virou diretor da Gazeta de Alagoas e candidatou-se a deputado federal em 2002.
Joaquim Pedro assumiu o comando das Organizações Arnon de Mello, cuja joia da coroa é a retransmissora em Alagoas da Rede Globo. Ao longo dos anos, Collor havia acumulado conflitos com a cúpula da rede no Rio. Na maior parte das vezes, pelo parti pris escancarado da retransmissora na política local. Os atritos fizeram com que o comando da rede interviesse no jornalismo da sucursal alagoana, nomeando à distância o diretor local.
Arnon e Joaquim Pedro chegaram ao torrão paterno com ideias modernizadoras. Não queriam repetir os procedimentos seculares da política local. Acreditavam na cartilha republicana, na iniciativa privada, na capacidade de empreender, na via fora da sombra do Estado.
“Joaquim trouxe para as organizações conceitos como o de orçamento e independência”, contou Dário Cavalcante, que se tornou diretor da TV Globo alagoana. “Não existia orçamento na empresa. Depois, Arnon e Joaquim vieram com a proposta de equilíbrio e independência editorial, ouvir as duas partes sempre. Essa isenção poderia trazer mais anunciantes. Era a nossa proposta de trabalho”, disse Dário.
As ações de Joaquim e Arnon em Maceió tiveram algum resultado. O balanço das Organizações melhorou, a empresa deu lucro, a Gazeta ficou mais arejada politicamente e aumentou a tiragem, a Globo alagoana ficou mais isenta e o Rio retirou seus interventores no jornalismo regional.
Mas Collor não gostou da gestão dos filhos. Ele tinha compromissos com as forças políticas dominantes de Alagoas, queria que os órgãos de imprensa da família as continuassem servindo.
Arnon Affonso Collor de Mello teve 51 mil votos. Não foi eleito devido a um erro de estratégia: era candidato único a deputado pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro, o PRTB, o que dificultou a obtenção do total de votos necessário para que o partido elegesse ao menos um deputado.
Em 2005, o ex-presidente afastou Joaquim Pedro do comando da empresa e Dário Cavalcante saiu junto. “Saí porque era cargo de confiança”, disse ele. “Tinha uma função-chave na empresa. Não tinha como ficar para outra proposta diferente daquela que tocávamos.” A exoneração marcou o rompimento de uma relação de mais de vinte anos com Collor.
Na eleição do ano passado ele apoiou a candidatura de Teotonio Vilela Filho, que enfrentava Fernando Collor. Nunca mais falou amigavelmente com o ex-presidente. Mantém boas relações com Arnon e Joaquim Pedro, que se mudaram para o Rio. As relações de Fernando Collor com os filhos são cordiais e distantes.
Arnon é sócio de uma empresa de marketing digital e de um banco de investimentos. Filiou-se ao PSDB e teve a ficha abonada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. No ano passado, sua empresa, a Loops, foi contratada para trabalhar na campanha eleitoral digital de José Serra.
“O Arnon é um excelente rapaz, estudioso, inteligente e educado”, disse Fernando Henrique Cardoso. “Conheci-o nos Estados Unidos, quando ele me convidou para fazer uma palestra em Harvard. É um fato claríssimo que ele tem vocação para a política.”
Depois de fazer um curso de especialização em finanças em Harvard chamado “Families in business: From generation to generation”, ministrado por John A. Davis, autor do livro De Geração para Geração: Ciclos de Vida de Empresas Familiares, Joaquim Pedro propôs um manual para os herdeiros da família Monteiro de Carvalho. O texto estabelece regras que vão desde como negociar ações de empresas do grupo até o uso dos bens em comum.
No dia 15 de março de 2007, Collor proferiu o que foi até aqui seu mais longo pronunciamento no Senado. Nele, narrou o seu afastamento da Presidência como “uma litania de abusos e preconceitos, uma sucessão de ultrajes, um acúmulo de violações das mais comezinhas normas legais, uma sucessão, enfim, de afrontas ao Estado de direito democrático”.
Não obstante, hoje tem excelentes relações políticas e pessoais com aqueles que apontou como seus algozes: os presidentes Lula, José Sarney e Itamar Franco. “Sei que a política é um jogo, e que às vezes é preciso fazer concessões”, disse Arnon de Mello. “Mas jamais imaginei que meu pai fosse se reconciliar com o Itamar.”
Neste ano, Collor só fez três discursos em plenário, um sobre carência de mão de obra para infraestrutura e dois sobre política externa. Não discursou sobre a situação de Alagoas nem nunca falou no Senado sobre o problema da segurança no estado.
Teotonio Vilela Filho disse que escolheu para ocupar o cargo mais importante de seu governo um homem de confiança do adversário de década porque, “além da formação militar, ele tinha adquirido valiosíssima formação de gestor da iniciativa privada. Coloquei-o para tomar conta dos presídios e ele se saiu muito bem. Era um inferno. O inferno continua, mas Dário Cesar transformou-o num inferno organizado. Parou de haver fuga, morte”.
Dário Cesar Cavalcante é moderado e técnico quando fala da criminalidade alagoana. Em seu computador portátil, digitou a senha de acesso aos números reservados da Polícia Militar. Clicou num mapa em que grande parte do estado aparece com manchas vermelhas. “São os chamados hotspots”, explicou. “Essa região aqui é a de Benedito Bentes. Está toda vermelha, mas tem mais de 100 mil moradores. Para melhorar o policiamento lá, preciso saber em que ruas acontecem mais crimes, em quais horas, quais dias da semana. Isso em tempo real. É o que não temos.”
Contou que fez uma análise do horário de homicídios com base nos boletins de ocorrência, que lhe chegam com atraso de quinze dias. Percebeu que se concentravam no final da tarde e no começo da madrugada. Alterando a escala das tropas, reforçou o policiamento nesses horários. E reconheceu que as mudanças não são fruto de “trabalho científico, já que não temos ferramentas ou softwares para obter isso em tempo real e, a partir daí, direcionar a ação repressiva e preventiva”.
A bagunça administrativa alagoana já foi pior. Há uma década, a cada dez assassinatos, quatro deles não tinham indicação sequer do local em que foram encontrados os corpos. A descoberta do criminoso e do mandante era uma quimera. Só agora, em abril, Teotonio Vilela assinou um acordo de transferência de tecnologia com o governo de Minas para finalmente criar um sistema informatizado em tempo real de acompanhamento da criminalidade.
Dário também defendeu que os policiais sejam recompensados em dinheiro por cumprir metas. Ao comentar a proposta, o sindicato dos policiais forneceu uma vinheta singela dada a precariedade de Alagoas: disse que no interior do estado já é comum a distribuição de pizzas pelo comércio quando a polícia resolve crimes.
No ano passado, ele esteve com Antanas Mockus Šivickas, ex-prefeito de Bogotá por dois mandatos e ex-candidato a presidente da Colômbia, considerado um dos responsáveis pela redução da criminalidade na capital desse país, onde se chegou ao índice de oitenta mortes para cada 100 mil habitantes, no início da década de 90. A receita de Mockus combina a cooptação de movimentos comunitários na cobrança de metas dos gestores de segurança com a proibição de bebidas e da circulação de menores de idade em certas áreas e horários. Dez anos depois, a taxa recuou para 23 mortes a cada 100 mil. Nos últimos anos, contudo, a violência recrudesceu, e a taxa pulou para 32 homicídios em cada 100 mil moradores.
“Mockus deixou claro: precisou de cinco anos de investimento pesado, de dólares dos americanos, para obter uma reversão dos números de homicídios”, contou Dário, que em seguida indagou: “Como isso pode acontecer num estado que tem os piores indicadores do Brasil em todas as áreas? Temos um ex-deputado federal na cadeia, dois ex-deputados estaduais foragidos. Um coronel de polícia preso.”
Há mais. Dos 27 deputados estaduais alagoanos, um responde a processo no qual é acusado de chefiar uma “organização criminosa” que desviou 302 milhões de reais da Assembleia. Outros três são acusados de serem mandantes de assassinatos – um dos mortos tinha 17 anos e levou dez tiros pelas costas. Outro responde a processo por furto de energia e tentativa de homicídio do técnico da companhia de energia que detectou o “gato”. Um vereador de Maceió conseguiu ser eleito fazendo campanha de dentro da cadeia.
Para Arnon de Mello, o estado malbaratou as oportunidades políticas de melhorar. “Alagoas teve três presidentes da República”, disse ele, referindo-se a Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e a seu pai. “Teve recentemente Renan Calheiros na presidência do Senado. Teve chance de melhorar seus índices sociais, de orientar melhor a economia. E nada aconteceu.” O historiador Décio Freitas resumiu a situação política em uma frase de seu ensaio: “O Estado a serviço do crime, e o crime a serviço do Estado.”
Dário Cavalcante apontou traços culturais históricos para explicar a violência criminal. “Há um total desrespeito à vida em Alagoas”, disse. “Desde o tempo em que se usava peixeira. As pessoas resolvem os conflitos à bala, não é negociando, mediando. O perfil do alagoano não é de levar desaforo para casa. Todo mundo é valente, quer andar com arma. Essa cultura arraigada leva à violência. Não é só o crack o motivador disso tudo.”
“A quem está afetando diretamente a questão dos homicídios?”, perguntou o secretário, que respondeu logo em seguida: “À população de baixa renda. Em Pajuçara [bairro de classe média e turístico], você anda tranquilo. Houve mais turistas em Alagoas neste ano. Mais de sessenta transatlânticos aportaram aqui. O que o turista achou? Uma pesquisa mostra que reclamou de lixo e pedintes nas ruas. Violência não apareceu. Quem só visita não sente essa violência. Gente morrendo é na periferia. Andando nas ruas não há essa sensação de violência.”
A entrevista com Dário Cavalcante se estendeu muito além do expediente. E foi encerrada por um telefonema da mulher, que cobrava sua presença no jantar de aniversário. “Estou saindo neste momento”, disse, obediente.
O ministro José Eduardo Cardozo teve em março o seu quarto encontro com Téo Vilela para tratar da violência em Alagoas. “Eu quero ser monitorado, fiscalizado, criticado”, disse-lhe o governador. “Só não quero ficar sozinho nesta luta. Preciso muito do governo federal.” O ex-presidente nacional do PSDB foi reeleito governador tendo como adversários o senador Fernando Collor e o ex-governador Ronaldo Lessa, que apoiavam Dilma Rousseff. Lula não esteve em Alagoas durante a campanha. Segundo explicou, porque a sua base política estava dividida.
“O Lula me ajudou muito”, reconheceu Vilela ao comentar a ausência do então presidente nos palanques de Alagoas. No segundo turno da disputa, Lula gravou uma mensagem de apoio a Ronaldo Lessa. E o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, transmitiu o seguinte recado do então presidente a Vilela: “Diga ao Téo que tive de gravar os depoimentos. Mas foi a única maneira de me livrar de ir a Alagoas.”
“Lula é um Deus”, disse-me Téo Vilela. “Imagina a repetição, todo dia, do depoimento dele na televisão! Saí na frente no segundo turno, mas foi duro. Lula todo dia na tevê foi foda.” O governador rememorou sua relação com o agora ex-presidente: “Sou amigo do Lula de tomar cachaça. Na época da Constituinte, Vladimir Palmeira tinha no gabinete uma cachaça de cabeça, a do primeiro corte na produção, que tem sabor mais forte e mais álcool. Sentávamos lá para contar histórias.”
“Alagoas é um estado pequeno. Uma gota de dinheiro que o governo federal colocar inunda o estado”, disse o governador. Ele estava num Learjet 60 com dois secretários estaduais e um deputado. “Nosso índice de homicídios é o maior do Brasil. Não sei se por aí afora andam mascarando os dados. Eu disse a José Eduardo: ‘Ministro, preciso de atenção especialíssima, prioritária, no mínimo como a que vocês dão ao Rio de Janeiro.’”No dia seguinte, Téo Vilela faria uma via-sacra pelos ministérios, atrás de investimentos.
“Sabe quanto tenho de dinheiro para investimento no orçamento do estado?”, ele perguntou. E logo respondeu: “Zero.” Contou que pediu a José Serra, companheiro do PSDB, que avaliasse a situação econômica do seu estado. “Serra, muito detalhista, pediu para ver minha planilha orçamentária”, contou. “Depois de examinar, disse: ‘São Paulo tem muito problema, mas tem dinheiro. Você não tem nada.’” No ano passado, Alagoas teve receitas de 6,6 bilhões de reais, e uma dívida que atingiu 6 bilhões. Gastou com segurança 764 milhões de reais.
No final de abril, os policiais civis entraram em greve. Reivindicavam reajuste do piso salarial de 1 800 para 7 200 reais. A paralisação foi declarada ilegal porque os policiais não cumpriram a exigência de manutenção dos serviços essenciais. Agentes penitenciários se preparavam para aderir ao movimento e servidores das áreas de educação e saúde ameaçavam entrar em greve também.
O governador tomou dois uísques durante as duas horas de viagem. Jantou salmão, salada e arroz e falou sobre sua estratégia para obter mais recursos federais. Disse querer a instalação de uma usina atômica em Alagoas, mesmo depois do vazamento nuclear no Japão. “Só os royalties já valem a pena para quem não tem um centavo para investir”, disse. Reclamou da oposição de ecologistas e das dificuldades com o Ibama para liberar a construção de um estaleiro em um mangue, e se explicou: “Eu adoro caranguejo, mas tem criança morrendo de fome. Entre o caranguejo e a criança, fico com a criança.”
Tentou alinhavar o que chamou de “sucessos pontuais” no combate à criminalidade em seu primeiro mandato, entre 2007 e 2010, apesar das taxas galopantes de homicídios. “Sequestro com cativeiro em 2010 foi zero”, disse. “Assalto a banco à mão armada, houve um. Crime de mando, uma tradição secular em Alagoas, reduziu-se drasticamente. As pessoas que mandam matar passaram a pensar duas vezes antes de fazer isso.”
O governador cobrou do secretário estadual de Agricultura, Jorge Dantas, a distribuição de mil toneladas de sementes para 70 mil agricultores familiares. “Está tudo pronto, só falta o dinheiro”, disse o secretário. “Mas para o plantio em março já não dá mais tempo.” A resposta surpreendeu o governador. “Como não dá mais tempo? Por que você não me falou antes?”, reclamou Vilela.
“O governador é bem diferente do tradicional”, disse-me depois o secretário Dantas, na frente de Vilela. “Tem um estilo diferente, ‘delegador’… Meio avoado, mas fácil de trabalhar.” Com atraso de um mês, as sementes foram doadas em abril.
O secretário de Cultura, Osvaldo Viégas, relatou ao governador o andamento da reforma da biblioteca pública do estado. Ela tem 92 mil volumes e está alojada num palacete construído pelo barão de Jaraguá em meados do século XIX. “Vamos fazer uma puta festa para batizá-la como Biblioteca Pública Estadual Graciliano Ramos”, anunciou Vilela. “Quero levar os principais intelectuais brasileiros. Vou fazer um pedido público de desculpas a Graciliano, que morreu muito magoado com Alagoas.”
O autor de Vidas Secas morreu magoado porque foi preso e torturado pela polícia de Maceió, em 1935, por ter participado da Intentona Comunista. Jogado num porão de navio e mandado para uma prisão no Rio, costumava dizer: “Emigraram-me.” Ao poeta Lêdo Ivo, seu conterrâneo, Graciliano Ramos dizia que toda grande nação possuía um golfo. Apontava para Alagoas no mapa e completava: “Aquilo dá um bom golfo.”
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