Martha Nowill em sua casa, em São Paulo: “Dizem que a maternidade é um eterno cuspir para cima e cair na testa. Tenho a sensação de que tudo o que planejei está saindo ao contrário” - CREDITO: EGBERTO NOGUEIRA_2020
Enjoos, calafrios e oferendas
Está claro que, a partir de agora, tudo para mim será em dobro
Martha Nowill | Edição 170, Novembro 2020
Ser ou não ser mãe? A pergunta atormentou durante muito tempo a atriz MARTHA NOWILL, que fez 40 anos em outubro. Confinada em seu apartamento em São Paulo enquanto a pandemia avançava no Brasil, ela decidiu que havia chegado a hora de engravidar. No fim de junho, teve a confirmação. Foi o início de uma saga doméstica feita de euforia e angústia, náuseas e fome, gargalhadas e choros – e uma prodigiosa surpresa.
9 DE OUTUBRO DE 2019, QUARTA-FEIRA_Acordei no Rio de Janeiro, mais precisamente no Jardim Oceânico, no flat em que a Globo me colocou para gravar a série Todas as Mulheres do Mundo. No espelho encontrei um rosto tomado por bolinhas vermelhas que se estendiam até o pescoço. Pânico. Horas depois, eu iria gravar uma das sequências mais importantes da série. Tirei fotos e mandei para minha médica em São Paulo, meu pai e Luiz, que, embora more comigo há mais de um ano, insisto em chamar de “meu namorado”. Nenhum deles me ofereceu uma explicação razoável para meu desastre dermatológico. No banho, enquanto tentava desembaraçar o cabelo, senti o nervo da cervical pinçar. Tomei um antialérgico, um anti-inflamatório e desci para o carro que me aguardava em frente ao flat. Pálida, com o rosto cravejado e uma dor que não deixava o ar circular pelo corpo.
Chovia nos Estúdios Globo. Apanhei um guarda-chuva na entrada e caminhei até o estúdio F, torcendo para que a maquiagem escondesse o estrago causado pela alergia. Enquanto passava o texto mentalmente – e na cena minha personagem jura que vai encontrar um homem e engravidar na mesma noite –, lembrei da promessa que fiz a mim mesma, meses antes: assim que eu começasse um novo trabalho, com uma boa personagem, liberaria para engravidar. Não foi o que fiz.
12 DE OUTUBRO, SÁBADO_Enquanto eu corria pelo Santos Dumont para pegar a última ponte aérea, me lembrei da história de uma prima. Ela se apaixonou e se casou com um primo-irmão e, por causa da consanguinidade, teve duas filhas com uma síndrome rara, que viveram poucos anos. Quando ela engravidou pela terceira vez, jurou que só ia ter a criança se no prazo de trinta dias um homem forte e desconhecido lhe entregasse uma rosa vermelha. No trigésimo dia, foi a uma fazenda e, quando já estava de saída, o anfitrião veio correndo até o carro e deu a ela uma rosa vermelha. Seu filho nasceu saudável.
Sentada na poltrona do avião, rumo a São Paulo, estabeleci novas regras para a minha promessa. Se até o dia 12 de novembro, uma criança me der uma flor amarela, então devo liberar imediatamente para engravidar. Agora, se ela me der uma flor branca, significa que posso esperar mais um ano. Satisfeita com minha decisão de terceirizar a decisão, esperei o avião decolar.
No desembarque do Aeroporto de Congonhas, Luiz estava à minha espera ao lado de Vitor, seu filho de 8 anos. “O Vitor tem um presente para você”, ele disse. Com as mãos às costas, o menino escondia alguma coisa. “Será que é uma flor?”, pensei. Meu coração disparou e fiquei ruborizada – mas Vitor me entregou um tablete de chocolate.
3 DE NOVEMBRO, DOMINGO_Todos os anos, no meu aniversário, recebo os amigos no meu apartamento em São Paulo, do meio-dia às dez da noite. Faço um monte de comida, compro as primeiras dúzias de garrafas de bebidas e peço para cada um trazer mais uma. O dia passa rápido. Tomo uma taça de espumante atrás da outra. Esqueço de comer. Ganho presentes, flores, bebidas. Danço e abraço todo mundo. Foi o que aconteceu hoje. À meia-noite, jogada no sofá com as solas dos pés imundas, tive um clique: Quem me deu o quê? Quem me deu a orquídea amarela? Os lírios brancos? A garrafa de vinho caríssima que escondi para ninguém pegar? Não lembro de absolutamente nada. Se algum sinal foi mandado hoje, bateu na trave.
12 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA_Hoje foi o último dia previsto para eu receber o sinal. De volta ao Rio, fui jantar no Guimas com a Carol Condé, minha empresária, e fiquei na rua até meia-noite. Não ganhei flor nenhuma, eu não mereço. Sei que estou trapaceando, tinha prometido liberar se aparecesse uma boa personagem, mas quando apareceu inventei uma prorrogação. A verdade é que não quero engravidar, mas também não consigo enxergar minha vida sem filhos. E o tempo é um filho da puta que fica fazendo tique-taque em contagem regressiva na minha orelha, justamente quando tudo parece perfeito na minha vida.
20 DE JANEIRO DE 2020, SEGUNDA-FEIRA_Em São Paulo, a médica analisou os exames e disse, tentando não soar grave, que minha reserva ovariana está o.k. para os meus 39 anos. Perguntei se ela queria dizer que devo engravidar logo, e ela respondeu que eu deveria começar a me preparar. “Sua ovulação, em compensação, é de uma mocinha de 20 anos.” O fato de ela usar a palavra “compensação” ativou meu modo alarme. Ué, se está tudo bem, por que uma coisa precisa compensar a outra? “Pode ser que você libere e demore muito tempo para acontecer”, ela disse. “E pode ser que eu libere e no mesmo dia nasça uma árvore no meu ventre”, completei. “Como saber a hora certa?” E ela garantiu: “Você vai saber.” Perguntei: “E se eu engravidar e nunca mais conseguir dormir? O que vai acontecer comigo? Sou uma pessoa que precisa dormir.” Ela riu. A pergunta era séria, mas ela riu.
3 DE MAIO, DOMINGO_Desde a adolescência, frequentei um número grande de astrólogas, tarólogas, videntes, leitoras de borra de café e profissionais do gênero. Sempre fui fascinada por esse mundo. Devo ter ido a duas ou três a cada ano, durante uns 25 anos, o que quer dizer que já ouvi mais ou menos umas oitenta previsões sobre meu futuro. todas elas me disseram que eu era muito fértil e que, se não quisesse engravidar, que tomasse cuidado. Por isso nunca arrisquei. Nem uma só vez, por mais bêbada ou apaixonada que eu estivesse, falhei em me proteger. Nunca.
Estamos confinados há um mês e meio e pensei que este talvez fosse um bom momento para fazer um bebê. Fui até a cozinha e Luiz estava passando um pano com álcool no chão. Abracei ele. “E se a gente liberasse?”, eu disse. Ele me olhou de um jeito que eu nunca vi. “Acabei de fazer as contas da grana. Minha perspectiva é bem ruim”, ele respondeu. Me afastei. “Mas não é você quem sempre diz que filho é solução e não problema? Há meses, você está falando que quando eu decidir, tá decidido. E quando eu finalmente tomo coragem, você amarela?”
Luiz trabalha numa produtora de publicidade e ganha por comissão. A pandemia não tem ajudado. O inquilino do apartamento dele, que já era mau pagador, adorou pegar carona na Covid-19 e mergulhar fundo na inadimplência. Já eu ganho muito num período – e depois não ganho nada. Tem épocas que acho que posso ir para Paris no dia seguinte e ficar uma semana por lá. Em outras faço compras em três supermercados diferentes para pegar todas as promoções. Com o tempo, aprendi a me equilibrar entre os altos e baixos da profissão de atriz. Virei a formiga que guarda tudo bonitinho para quando a neve chegar.
“Tudo bem, está certo, vamos liberar”, disse Luiz, se esforçando para sorrir.
25 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_A conversa na cozinha foi seguida por um longo inverno sexual. Ninguém quis transar e nem falar sobre. Faz quase um mês.
Hoje, telefonei para Simone, minha madrasta, e entre outros assuntos falamos da gravidez. A mesma ladainha de sempre: Ser ou não ser mãe? Ser uma artista–mãe? Nunca mais dormir? O peito cai? Vou conseguir ganhar dinheiro? Quando é a hora certa? “Por que você não pede um sinal?”, ela sugeriu. Respirei com impaciência. Ela disse: “Estou vendo uma linda rosa amarela na minha frente, não sei o que quer dizer, mas adoraria poder entregar pra você.” Fiquei muda. Não era exatamente a senha combinada, mas era bem parecida. É um sinal?
30 DE MAIO, SÁBADO_Na terça-feira, vim para São Francisco Xavier, interior de São Paulo, ficar hospedada na casa que um amigo alugou. Depois de três meses confinada com o Luiz, sem transar, os dois estressados e ele dando cem telefonemas diários no seu home office, achei que seria bom passar um tempo longe. Tenho dois roteiros para terminar de escrever, os ensaios diários de uma peça online e um sinal de internet que parece ser suficiente.
Luiz veio no fim de semana. Eu o levei até o quarto e mostrei a vista da janela. Transamos sem camisinha. Fiquei deitada na cama, olhando para o teto e pensando que naquele exato momento algum espermatozoide podia estar flertando com um dos óvulos da minha modesta reserva ovariana. Se estivesse sentada na frente de um psicólogo e ele me pedisse para descrever o que senti naquele instante, eu diria que era um sentimento impossível de ser descrito. Talvez algo perto do vazio.
18 DE JUNHO, QUINTA-FEIRA_A única coisa estável na minha vida é a menstruação. Há mais de 25 anos, ela chega pontualmente entre o 26º e 27º dia do ciclo. Traz com ela o tão esperado fim da TPM e cólicas avassaladoras. Aos 19 anos, tive uma dor tão forte, que quando dei um grito dentro do carro, três janelas trincaram na mesma hora. É verdade.
Ontem minha menstruação não veio. “Vai vir amanhã”, repeti mentalmente e em voz alta também. Não é possível que com uma única trepada a gente tenha conseguido engravidar. “É o que basta”, Luiz disse, rindo, em nosso sofá em São Paulo. “Você não queria? Então…” Eu não sei o que quero, tive a proeza de não conseguir saber até agora. Terceirizei minha decisão a um oráculo impreciso, fechei os olhos e resolvi tentar.
Aonde quer que eu vá, a ideia de uma possível gravidez vai junto. Tomo banho pensando que estou grávida, cozinho, escrevo e compro veneno para cupim pensando que estou grávida. Nem a prisão do Queiroz no sítio do advogado do presidente que não soube explicar como o Queiroz foi parar no sítio dele conseguiu me distrair do tema. Tomo 4 litros de água durante o dia e faço mais de vinte xixis, com a esperança de que a menstruação virá, anunciada no papel higiênico.
22 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA_Decidi voltar para São Francisco Xavier com meus amigos na quarta-feira passada. Luiz ficou em São Paulo, e pedi que ele viesse uma semana depois com um teste de farmácia. Separados por mais de 150 km, ele manda mensagem a cada duas horas. “Não desceu”, minha resposta é sempre a mesma.
No sábado saí para caminhar. Parei ofegante na primeira subida e tive a sensação de que iria desmaiar se desse mais um passo. “Não vai mais descer, tenho certeza”, pensei. De noite, olhei para a taça de vinho e senti meu corpo levemente contrariado com a ideia do álcool. Procurei uma tônica na geladeira, antes de começar uma partida de Perfil. Minha memória falha em coisas básicas, e eu não consegui lembrar, por exemplo, o nome da autora e intérprete do hit Shimbalaiê, embora eu a conheça. Fiquei furiosa quando o jogador seguinte disse, rindo da minha cara: “Maria Gadú.”
Ainda faltam quatro dias para o Luiz chegar com o teste. Eu poderia ir até a farmácia da cidade e comprar, mas quero fazer isso com ele. A essa altura, tenho mais certeza de que estou grávida do que de qualquer outra coisa.
Hoje tenho ensaio online, e a primeira coisa que me vem à cabeça é que talvez eu tenha perdido a capacidade de atuar. É como se os meus mais de vinte anos de carreira perdessem toda sua consistência diante da possibilidade da gravidez. Uma semana atrás, minha boca e meu cérebro articulavam as palavras com beleza, e meu corpo obedecia aos comandos estranhos da personagem: fúria, ironia, doçura. Agora, me sinto um ser primitivo, um amontoado de células que tenta inutilmente se expressar.
De noite, passei mais de duas horas na sauna. Em algum momento lembrei que isso talvez fosse contraindicado na gravidez, mas resolvi ignorar o pensamento.
23 DE JUNHO, TERÇA-FEIRA_Marcamos um novo ensaio e eu decido que quem manda no latifúndio chamado Martha Nowill sou eu. Afasto o pensamento da gravidez e ensaio por mais de duas horas. Por alguns instantes, me esqueço de tudo.
24 DE JUNHO, QUARTA-FEIRA_Me sirvo da mesma quantidade de café que me servi nos últimos quinze anos: uma xícara grande com seis gotas de adoçante. Enquanto olho pela janela para a paisagem envolta em neblina, o cheiro do café aterrissa no meu nariz. Sinto algo que nunca senti. Um enjoo profundo. Não, é maior: deve ser uma náusea. Jean-Paul Sartre usou a palavra no título de um romance. Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema chamado A Flor e a Náusea. Para mim, “náusea” sempre significou um enjoo maior – existencial. É exatamente o que sinto agora.
27 DE JUNHO, SÁBADO_Luiz chegou ontem em São Xico e passamos o dia caminhando de mãos dadas, fingindo que não tínhamos um assunto a tratar. De noite, no chalé, fiz xixi no potinho do teste. A bula dizia que o resultado demora cinco minutos para sair. Mergulhei a haste no xixi e, em menos de três segundos, os dois pauzinhos ficaram azuis. Positivo. A gente se abraçou. Não fiquei feliz nem triste, só aliviada por ter algo concreto sobre um assunto que me atormenta há anos. De noite, sonhei com minha casa da infância, um lugar que costuma estar associado aos meus piores pesadelos. Mas dessa vez a casa aparecia linda, e eu dizia pra minha mãe que ela precisava prepará-la para receber os netos.
Sempre sonhei em ser a grávida ativa, que viaja, cozinha, uma atriz com uma barriga perfeita num set de filmagem. Uma grávida que posa reluzente para a foto, e o fotógrafo se derrete diante dela, tamanha sua luz. No momento, sou apenas uma mulher que caminha apática pelo sítio e, de vez em quando, tem sobressaltos internos quando lembra que uma vida cresce dentro dela.
No espelho, não reconheço meus seios.
30 DE JUNHO, TERÇA-FEIRA_A pessoa mais feliz com tudo o que está acontecendo é a minha médica. Em São Paulo, ela analisou meus exames e comemorou. Ela, sim, está reluzente. Pedi para tirar a máscara de proteção contra a Covid, já que piora o enjoo, mas ela não deixou. Quando tomou fôlego para começar a falar tudo o que devia ser dito no momento, eu a interrompi: “Quanto custa um parto? Digo, o seu parto?”
Ela ficou paralisada com a pergunta e enrubesceu. “Não é bem assim que a gente começa a consulta, Martha.” Me desculpei, mas disse que não conseguia pensar em outra coisa. Ela me falou da equipe de plantão 24 horas por dia, do anestesista, da assistente, da enfermeira e, em certo momento, o valor de 30 mil reais apareceu.
“Caro, né?”, comentei, sem graça. Ela percebeu meu desespero e disse que parte da despesa o plano irá reembolsar, e que eu não deveria pensar nisso agora. “Trinta mil” – o valor martela na mente, que começou a fazer cálculos sem parar. Contei à médica que fiz muita sauna no sítio e perguntei se tinha algum problema. Ela disse que a sauna pode ser abortiva, e meu coração se encheu de culpa. Reclamei dos enjoos e saí do consultório com uma receita com várias indicações de remédios, vitaminas e medicamentos antroposóficos. Se essa pajelança alopático-natureba não funcionar, não sei mais o que vai.
1º DE JULHO, QUARTA-FEIRA_Acordei e tomei um Plasil. Tive vontade de comer fruta, o que é inédito para mim. Contei para o Marcelo Grabowsky, diretor da peça, que estou grávida e não sei se devemos continuar com o projeto. Fizemos as contas do tempo de ensaio e do tempo que eu ficaria em cartaz, ainda sem barriga, e resolvi colocar em prática o plano da grávida ativa. Fiz uma força descomunal para ensaiar, como se carregasse dois sacos com batatas-inglesas nas costas. De tarde, baixei um aplicativo para acompanhar a gravidez. “Seu bebê está do tamanho de uma lentilha” é a primeira informação que aparece. Me dou conta de que, talvez, ele também esteja fazendo uma força descomunal para se desenvolver. Sinto que somos dois a fazer força.
3 DE JULHO, SEXTA-FEIRA_Ontem, fui ao laboratório buscar os potinhos do exame de fezes. Tentei de todas as formas escapar, mas a médica foi categórica e me contou que grávidas podem ter uma infestação de vermes por causa da baixa imunidade no início da gravidez. A informação me deixou transtornada, tenho pavor da ideia de ter vermes dentro de mim. Aliás, nunca consegui superar o trauma que foi ver a ilustração de uma tênia num livro de biologia da quinta série.
No caminho, Luiz começou a falar alguma coisa sobre o peso do último mês de gestação. Pedi para ele parar, mas ele continuou. Aumentei a música do carro e ele baixou, voltando ao assunto anterior. Ele fez uma piada sem graça sobre gravidez e, em questão de segundos, sem me dar conta, eu estava fora do carro, no meio da Avenida Angélica, gritando com ele pela janela. Não satisfeita, executei um grand finale, apontando o dedo do meio na direção do carro e vociferei: “Vai tomar no cu, seu filho da puta.” E voltei andando para casa.
Está claro para mim que aquela louca gritando no meio de uma avenida em São Paulo não era eu. Era um ser tomado por hormônios, náuseas e cansaço crônico. Hoje, depois de um juramento solene de que eu nunca mais o chamaria de filho da puta, Luiz me perdoou. Ele também pediu desculpas. Contei o episódio para minha médica e ela imediatamente me mandou comprar um remédio chamado Stressdoron, que eu passei a tomar de forma religiosa.
4 DE JULHO, SÁBADO_Ouvi uma voz masculina que me dizia: “O nome do bebê é Benjamin.” Acordei e contei para o Luiz, que rejeitou a informação. Eu disse que também não gosto do nome, mas que ele me foi comunicado em sonho e não posso ignorar. Pode ter sido um anjo ou o próprio bebê, vai saber. Luiz ficou irredutível, disse que não gosta do nome e que eu devo ter pensado na padaria Benjamin antes de dormir. Afirmei que o bebê vai se chamar Benjamim, mesmo ainda não sabendo o sexo dele. Luiz foi tomar banho, e eu continuei deitada, vislumbrando toda uma vida de discordâncias e argumentações sobre a educação de nosso filho. Ou filha.
6 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_O pouco efeito que o Plasil fazia, parou de fazer. Sinto arrepios no corpo todo quando a onda de enjoo piora e tenho a terrível sensação de que nunca mais vou sair desse estado. Todos dizem que no segundo trimestre passa, mas a perspectiva de mais cinco semanas nessa condição é desesperadora.
Não consigo parar de pensar naquela comédia hollywoodiana com Adam Sandler, Click, em que o personagem, com a ajuda de um controle remoto, acelera os momentos chatos da vida. Gostaria de poder acelerar este começo de gravidez, mas depois lembro que o personagem se dá muito mal no filme e acaba entendendo que deve viver no tempo certo todos os momentos da vida, os melhores e os piores. Com certeza o roteirista de Click nunca teve enjoos gestacionais.
Muitos dos momentos mais difíceis da minha vida vieram acompanhados da trilha sonora de uma reforma, ou uma obra em andamento. Este não é diferente: bastou flexibilizar a quarentena e todas as construções do quarteirão foram retomadas a todo vapor. Sentei no chão do chuveiro e chorei. É um mal–estar generalizado, e a simples tarefa de escovar os dentes é uma prova olímpica. Não consigo arrumar a casa nem cozinhar. Sinto uma fome que parece um buraco no estômago, mas não tenho vontade de comer. Carrego um saco de bolachas de água e sal pela casa, enquanto tento decorar o texto da peça.
8 DE JULHO, QUARTA-FEIRA_Tenho fu-gido dos amigos. Não consigo dizer que está tudo bem. Também não posso contar da gravidez. Respondo mensagens em tons evasivos, dizendo que estou cansada da pandemia. Agora revezo o Plasil com o Meclin, e em alguns momentos sinto que estaria pior sem eles. Em outros, tenho a sensação de que estou tomando um placebo.
Luiz desistiu do home office e vai todos os dias para a produtora, onde trabalha numa sala vazia. Ontem fiz uma videochamada para me certificar de que ele estava realmente sozinho, o que o deixou bem chateado. Ele tem razão, mas ando paranoica, porque, se no meio dessa tortura que estou vivendo, entrar um vírus desse no meu corpo, vou colapsar.
Sinto que preciso contar para minha mãe. Luiz está apavorado com a questão da grana e eu passo cada dia mais mal. Preciso de alguém que dê gritinhos e comemore a gravidez por nós dois. Liguei hoje para ela. Minha mãe deu gritinhos, comemorou, chorou, disse que vai ajudar com a comida e me dar um presente. Pedi um pijama bonito.
9 DE JULHO, QUINTA-FEIRA_Minha médica receitou probióticos. Fiz as contas e cheguei à conclusão de que gastaria 1,9 mil reais por ano com eles. Ela sugeriu que eu tomasse Yakult até encontrar uma marca mais em conta. Coloquei trinta garrafinhas num lugar alto da geladeira e pedi ao Luiz para avisar seus filhos Letícia, de 20 anos, e Vitor, que vêm nos fins de semana, para não tomarem o Yakult. Ele disse que, se preciso, compraria mais. “Prefiro que ninguém tome, pode ser?” Ele ficou indignado comigo e começou a discutir. Eu mal conseguia ficar em pé e meus olhos se encheram de lágrimas. “Só não quero que tomem meu Yakult”, murmurei. Ele continuou o discurso inflamado, como se eu fosse a madrasta má do desenho da Disney. Explodi. “Nada mais é meu aqui e tem um bicho crescendo dentro de mim! Alguma coisa tem que ser só minha, nem que seja esse Yakult.” Ficamos mudos, os dois. “Meus filhos não gostam de Yakult”, ele disse. Dormimos brigados.
14 DE JULHO, TERÇA-FEIRA_No domingo liguei chorando para a médica. Há semanas me sinto presa numa roda de samsara de enjoos, calafrios, gases e dores. “É uma coisa bárbara!”, disse a ela. “As mulheres deveriam ganhar prêmios por trazerem pessoas ao mundo.” De fato, tenho pensado muito em mulheres grávidas que precisam acordar ainda de madrugada para trabalhar, pegam três conduções até o emprego, onde passam mais de oito horas com enjoo, sentadas em cadeiras duras, sem ter onde se escorar depois do almoço. Me dói pensar nelas. A médica disse para eu tentar o Dramin B6. Corri à farmácia, tomei o remédio e meu enjoo cessou por algumas horas. Prometi fazer um altar para o Dramin B6, com velas e oferendas.
Os ensaios caminham devagar, mas a peça está ficando boa. É baseada no livro Manual da Demissão, da carioca Julia Wähmann. Sou uma atriz que geralmente decora até bula de remédio, mas minha memória não está 100%. Me lembro de relatos de grávidas que diziam se sentir mais burras ou que atravessavam faróis vermelhos sem perceber. Perguntei à médica se ela achava que minha cabeça daria conta de fazer um monólogo de mais de quarenta minutos ao vivo. Ela me respondeu com a seguinte frase: “Converse com seu bebê, ele não está aí para te atrapalhar.” A princípio me irritei com a resposta, mas, em poucos segundos, algo mudou dentro de mim. Nunca tinha pensado nisso, mas de fato ele não está aqui para me atrapalhar.
15 DE JULHO, QUARTA-FEIRA_O Dramin B6 não faz mais efeito algum, e eu resolvo parar de tomar todos os remédios e só manter os naturebas. Faço aulas de ginástica online e caminhadas, mas sinto um cansaço brutal. Há dias um desejo insistente de comer morango e croissant de amêndoa me atormenta. Resolvi me aventurar num shopping center, que, para minha surpresa, estava bem cheio. Devorei o croissant. Li em algum lugar que grávidas têm desejo por comidas da infância e a informação faz todo sentido – quando eu era criança comi muito morango e croissant em Paris, onde morei com minha família até meus 5 anos de idade. Meia hora depois da esbórnia no shopping, comecei a me contorcer no sofá, tentando acalmar o estômago, que protestava contra o excesso de manteiga e açúcar.
17 DE JULHO, SEXTA-FEIRA_Tinha uma reunião online importante às seis da tarde. Faltando dez minutos, separei minhas notas, um copo d’água e fui fazer xixi. Quando fui me limpar, encontrei uma mancha de sangue escura no papel higiênico. Congelei. Uma voz dentro de mim disse friamente: “Não surta.” Telefonei para a médica, que me mandou ir imediatamente para o pronto-socorro. Liguei para o Luiz e ele disse que chegaria em vinte minutos. Desmarquei a reunião alegando uma emergência médica. (Nunca desmarquei uma reunião em cima da hora e por um segundo penso que um filho realmente muda tudo.)
Na recepção do hospital, olho para a máquina que vende cappuccino e penso em quem seria louco o bastante para se aventurar a tirar a máscara no hospital, no meio de uma pandemia, para tomar um café. Vinte minutos depois, eu estava sem a máscara, devorando uma banana.
A médica enfiou o transdutor do ultrassom dentro de mim e senti um incômodo. “Você tem mais de um bebê?”, ela perguntou. “Não que eu saiba”, respondi, aflita. “São dois, são dois!”, gritou Luiz, de repente. “Você tá me zoando?”, eu disse, e olhei para o monitor, onde dois saquinhos se agitavam como numa videoarte psicodélica dos anos 1980. Comecei a chorar descontroladamente. “Minha vida acabou” – foi a primeira coisa que eu disse, entre soluços. Luiz começou a gargalhar histericamente, repetindo: “Sua vida só começou.” Ele ria e eu chorava, até que a médica pediu que a gente se acalmasse, pois minha agitação estava afetando a visão no ultrassom. Em estado de choque, ouvimos o coração dos bebês. Dois corações: eles realmente existem. O sangramento não era grave, e ela receitou óvulos de progesterona e abstinência sexual.
19 DE JULHO, DOMINGO_Escrevi no grupo da reunião cancelada que estava tudo bem, que tive uma emergência ginecológica. Depois me lembrei daqueles programas bizarros de tevê, em que as pessoas chegam ao hospital com garrafas e legumes presos no ânus, e torci para que a leitura de “emergência ginecológica” do grupo não fosse essa.
Assisti a séries e filmes, envolta numa nuvem de perplexidade e enjoo. Não me lembro de nada do que vi nesse fim de semana. De vez em quando, eu e Luiz parávamos o filme e olhávamos um para a cara do outro. “São dois!”, repetíamos. Contei da gravidez para meu pai, minhas irmãs e poucas amigas. Todos me perguntaram se estava feliz, e eu respondi: “Estou enjoada, não dá para ser feliz enjoada.”
20 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_Acordei às quatro da manhã, assustada. “São dois”, lembrei. Não fosse pelo sangramento, só saberíamos dos gêmeos daqui a um mês, na data do ultrassom morfológico. Nada me tira da cabeça que aqueles dois saquinhos fizeram isso de propósito, só para a gente saber da existência deles. Danados.
Sinto que estou no ponto mais alto da curva ascendente dos enjoos. O número de infecções no Brasil também está no auge. Queria poder sair, olhar com calma uma vitrine bonita, passar a tarde no sofá de uma amiga, pedir um guaraná com gelo no balcão da padaria. A gravidez é um estado solitário e o isolamento torna esse sentimento mais agudo. E são dois.
Meu enjoo se estendeu a lugares. Às vezes estou no quarto e penso: “Imagine que enjoo ir pra sala agora?” Ou me lembro da fila do supermercado, e uma onda de mal-estar toma conta de mim. Só de pensar na lavanderia de casa, meu estômago revira. E, aos poucos, o mesmo começa a acontecer em relação às pessoas.
23 DE JULHO, QUINTA-FEIRA_Acordei às seis da manhã, abri os olhos e disse para o Luiz: “Amor, estou feliz que teremos dois filhos juntos.” Ele sorriu e disse que me ama. Foi a primeira vez, desde que engravidei, que senti uma alegria genuína. Não enjoei o dia inteiro, nem por um segundo.
26 DE JULHO, DOMINGO_Associei a ausência de enjoo com a declaração de alegria que fiz na manhã anterior. Há dias venho tentando repetir a técnica, para ver se consigo a proeza de não enjoar. Com certeza os resultados positivos só são alcançados com espontaneidade e desprendimento, pois não obtive sucesso algum. No fim do dia, fui com a minha mãe ao hospital para fazer um novo ultrassom e ver se o sangramento tinha cessado. A médica não nos deixou fazer fotos. Ouvimos o coração de um dos bebês e uma ansiedade gigante tomou conta de mim e só passou quando ouvi o coração do segundo. Está claro que, a partir de agora, tudo para mim será em dobro.
29 DE JULHO, QUARTA-FEIRA_Parto prematuro, pré-eclâmpsia, diabete gestacional, descolamento de placenta. Esses são alguns dos inúmeros riscos de uma gestação gemelar. Sem contar que a minha é considerada “geriátrica”, termo que eu acho uma puta sacanagem. Mas o meu maior medo é o tamanho da barriga. Tenho medo de ela não aguentar e rasgar no meio. A médica me orientou a procurar uma nutricionista.
Hoje, minha mãe ligou preocupada, dizendo que testou positivo para a Covid-19, embora esteja assintomática. Como passamos um dia inteiro juntas, minha médica achou melhor eu fazer o teste. Um mau humor tomou conta de mim. Que saco, que saco esse vírus, esse país, esse presidente, essa máscara que obriga a gente a conviver com o próprio hálito por horas a fio. Que sufoco, que saco, são dois.
Todas as vezes que vou ao banheiro tenho medo de descobrir um novo sangramento.
1º DE AGOSTO, SÁBADO_Depois de semanas ensaiando lado a lado com o mal–estar, escrevi para meu diretor dizendo que não consigo mais. Não posso ser tão violenta e exigente comigo mesma. Ele me entendeu, claro, mas fiquei triste e frustrada. Levar uma peça sozinha é como atravessar um deserto sem sombra, é um trabalho árduo, requisita todo o corpo. Me sinto capaz de escrever, gravar cenas, fazer uma apresentação, mas conduzir um espetáculo sozinha nesse estado é tarefa grande demais para mim. E não é fácil admitir.
2 DE AGOSTO, DOMINGO_Testei negativo para a Covid-19.
4 DE AGOSTO, TERÇA-FEIRA_Luiz me mandou um vídeo de uma menina deficiente que fala da sua alegria de viver. O depoimento é lindo, mas eu pedi que ele nunca mais me mande qualquer coisa relacionada com deficiência enquanto eu carregar dois bebês dentro de mim. Não há um só dia em que eu não pense na possibilidade de eles nascerem com alguma síndrome. Abano as mãos acima da cabeça, como se lutasse com os pensamentos, e repito três vezes: “Vai dar tudo certo, vai dar tudo certo, vai dar tudo certo.”
7 DE AGOSTO, SEXTA-FEIRA_Hoje é aniversário do Caetano Veloso, e todas as músicas que ele cantou em sua live me fizeram chorar. Chorei até quando ele declamou um poema concreto e pediu para as pessoas ajudarem o Balé Folclórico da Bahia. Chorei no intervalo e quando a conexão caiu. Sinto que posso chorar ininterruptamente pelos próximos meses.
9 DE AGOSTO, DOMINGO_Hoje é Dia dos Pais e decidimos contar para os filhos do Luiz sobre a gravidez. Eles ficaram chocados. Vitor começou a chorar e disse que não quer nenhum irmão. Letícia saiu correndo, desesperada. Fiquei só, na cozinha, sentida. Me machucou o fato de eles não me abraçarem e não me darem os parabéns. Mas entendo, sou filha de pais separados e conheço a dor de ter que dividir nossos pais com os outros. Aos poucos, eles se acalmaram. Vitor disse que, depois de “renderizar” o assunto, achou legal ter mais irmãos ou irmãs. Letícia voltou com perguntas e, embora seja mais velha, sinto que é mais difícil para ela digerir a notícia. Olhei bem para os dois e fiquei feliz por meus filhos terem eles como irmãos. Depois do almoço, me deitei no sofá, exausta e melancólica.
11 DE AGOSTO, TERÇA-FEIRA_Estou viciada em Vale Tudo, uma novela da Globo de 1988, disponível no streaming. Tem dias que faço correndo tudo o que tenho que fazer e, antes do pior enjoo do dia bater, me deito no sofá e assisto a vários capítulos até o Luiz voltar para casa. Hoje ele me disse que toda noite, quando chega e olha para mim no sofá, tem a impressão de que apanhei o dia todo. “É exatamente isso que acontece”, respondi.
Desde o começo da pandemia estou envolvida num projeto para uma plataforma de entretenimento. O diretor Charly Braun e eu escrevemos um dos cinco roteiros de uma série que será filmada remotamente. Ele vai dirigir, eu vou atuar. O projeto estava previsto para abril, foi adiado para junho – e até agora nada. Esperamos ansiosamente por um green light da plataforma, com a liberação da verba. “Cadê essa luz verde?”, escrevo para ele, a cada três dias.
Faço as contas de quando minha barriga de grávida vai aparecer, torcendo para o projeto ser aprovado logo. Preciso do cachê e tenho muita vontade de fazer a personagem. Quero juntar os hormônios com a atriz e a câmera. Resolvi contar da gravidez para o Charly, com medo de que ele queira filmar com outra atriz. Mas ele disse que vai fazer comigo e que vamos disfarçar a barriga até quando for possível. “Ou podemos fazer a personagem grávida!”, sugeri.
12 DE AGOSTO, QUARTA-FEIRA_Maria Ribeiro veio do Rio para ensaiar uma peça e está hospedada na minha casa por uns dias. Fico na dúvida se é um risco recebê-la, ou não. Mas tanto ela quanto os colegas de ensaio fizeram o teste de Covid-19. Ela chegou com um buquê de flores e um presente, uma camiseta estilo rock and roll para eu usar com a barriga grande. Fiquei feliz. De noite pedimos uma comida e conversamos até tarde. Ter uma amiga no sofá dá um gostinho de vida normal.
14 DE AGOSTO, SEXTA-FEIRA_Estou na 12ª semana de gestação e os enjoos começam a diminuir. A moça do laboratório em São Paulo veio em casa colher amostra de sangue para o Nipt, um teste caríssimo que o plano de saúde não cobre e detecta todas as possíveis síndromes e doenças genéticas que o feto pode ter. Tempos atrás, quando via minhas amigas grávidas fazendo o teste, tinha certeza que quando fosse a minha vez eu não ia querer fazer. Hoje sinto que só terei paz quando o resultado sair. Dizem que a maternidade é um eterno cuspir para cima e cair na testa. Tenho a sensação de que tudo o que planejei e falei que faria está saindo ao contrário.
17 DE AGOSTO, SEGUNDA-FEIRA_Ontem vim dormir na casa da minha mãe. Eu e Luiz temos brigado muito e sinto que isso faz mal aos bebês. Já disse a ele que sou café com leite, que não podemos brigar, que meu corpo não tem energia para isso. Mas Luiz insiste em levar as discussões até o fim. Ele me ajuda em tudo, faz massagem no meu pé, é meu parceiro, mas não tem dimensão do que é uma gravidez. Nenhum homem tem. Se os homens engravidassem, o mundo seria um lugar diferente.
A verdade é que estamos os dois muito nervosos com o ultrassom morfológico, que é o exame que estuda detalhadamente a anatomia fetal. Hoje, na clínica, Luiz andava em círculos, enquanto eu me sentava com a doutora F., que fala sem rodeios do quanto minha idade aumenta os riscos dos meus filhos terem “alterações”. A palavra me causou um arrepio profundo e, enquanto ela enumerava as possíveis “alterações”, lágrimas brotaram dos meus olhos sem que eu percebesse. “Relaxa”, ela disse, e tive vontade de gargalhar.
O timing dela é péssimo, mas minha médica me garantiu que ela é a melhor de todas nesse exame. Enquanto doutora F. arrumava a sala, reparei em como ela é bonita: ruiva, olhos verdes, pernas enormes. Na verdade, é linda e, por um segundo, penso que a beleza dela não parece ter sido atravessada pela maternidade. “Você tem filhos?”, perguntei. “Não”, ela respondeu. “Quantos anos você tem?”, continuei. “Quarenta e quatro”, ela disse. “Você não quis?”, insisti. “Eu não consegui”, ela finalizou, sem rancor. Pedi desculpas. O diálogo foi tão rápido, e os hormônios pioraram tanto meus filtros sociais (já tão escassos) que não percebi o quanto fui invasiva. Só estava impressionada pela beleza dela.
Durante o exame, eu e Luiz mal conseguimos respirar. A cada etapa vencida, a cada pedacinho de cada feto que cumpria os requisitos necessários, um pouco mais de ar entrava dentro da gente. Foi uma hora para cada bebê até relaxarmos completamente. Ela não conseguiu ter 100% de certeza de que os dois bebês estão na mesma placenta, mas, ao que tudo indica, serão idênticos. Me aflige a ideia de não conseguir distinguir um do outro. “A gente tatua eles”, Luiz brincou. Ele sempre consegue fazer uma piada quando preciso. Doutora F. apontou certa resistência nas minhas artérias, o que no futuro pode causar pressão alta. Ela e minha médica me prescrevem um aas por dia. Fiquei feliz por ter feito o exame com ela.
Aliviado, Luiz fumou um cigarro assim que saímos de lá. Quando chegamos em casa, pedi para ele escovar os dentes e demos um longo beijo na boca, de língua. “A gente não pode ficar tanto tempo sem fazer isso”, eu disse.
25 DE AGOSTO, TERÇA-FEIRA_Quando conto que estou grávida, as pessoas sorriem e aplaudem. Daí emendo, falando que são gêmeos, e a cara delas muda, e por um segundo deixam escapar uma expressão de “coitada dela”. Logo em seguida disfarçam e sorriem mais, dizendo que a alegria será dobrada. “Gêmeos? E foi fertilização?” “Não, foi sexo mesmo.”
Maria veio me visitar e leu um trecho da peça escrita por Fernanda Young que está ensaiando. A maternidade, diz o texto, é uma “felicidade que vem com uma amputação”. “Uma mulher, para ser boa mãe, precisa, fortemente, proteger o seu indivíduo.”
As frases ecoam durante o dia. A vida inteira tive a sensação de estar numa batalha armada para proteger meu “indivíduo”. Protegi meu indivíduo do bullying nível 3 que sofri na pré-adolescência, das expectativas da minha família, da falta que eu sentia do meu pai médico e tão ocupado. Protegi meu indivíduo da minha pequena farda de escoteira mirim, do divórcio litigioso dos meus pais, do excesso de liberdade que me concederam, das relações abusivas, do padrão estético tipo rolo compressor que insistiram em passar sobre meu corpo fora de padrão, protegi meu indivíduo do desencanto.
E assim, de um segundo para o outro, me sinto forte. Eu sou Ph.D em proteger meu indivíduo, sei disso com a mesma clareza que sei que a Terra é redonda. Na verdade, tudo o que eu preciso talvez seja parar de proteger meu indivíduo.
29 DE AGOSTO, SÁBADO_Fui almoçar na casa dos meus avós. Ele tem 95 e ela 94 anos. Sou apaixonada por eles. Contei da gravidez e meu avô ficou me fitando intrigado, como se buscasse vestígio da notícia nos meus olhos. Já minha avó, que tem mal de Parkinson há mais de cinquenta anos e filtros sociais mais escassos que os meus, sorriu e disse: “Que alegria.” Quando contei que eram gêmeos, ela arregalou os olhos azuis e balançou as mãos nervosamente. “Meus pêsames, vão dar um trabalho louco.” Eu e minha mãe gargalhamos. “São seus bisnetos, vovó”, e ela então emendou a tempo, dizendo que eram uma bênção divina.
Às vezes sinto vontade de beber e fumar. E nos dias que não trabalho me sinto estranha. Fiquei bastante aliviada quando marquei uma diária de gravação para a próxima semana. Falar e viver da maternidade 24 horas por dia me entedia.
1º DE SETEMBRO, TERÇA-FEIRA_Sonhei que me casava com o Caetano Veloso e o Luiz virava meu amante. Na festa, eu me dava conta de que tinha esquecido de contar ao Caetano que estou grávida de gêmeos. Para meu alívio, ele comemorou a notícia. No meio do sonho, percebo que minhas melhores amigas não estão presentes na celebração. Saio do salão e encontro uma delas, a Maria Manoela, emburrada, num sofá de vime. “Eu não vou ao seu casamento, não porque você abandonou o Luiz para ficar com o Caetano, mas porque é um absurdo você promover essa aglomeração durante a pandemia”, ela diz. “Mas é o Caetano, Manu”, respondo. “É, pode ser”, ela pondera.
Acordei e contei para o Luiz, que disse que ia adorar ser meu amante. Rimos. Ele sugeriu que a gente dê o nome de Caetano para um dos bebês.
No fim de semana, minha irmã caçula ligou para contar que está noiva. No vídeo, ela sorria e exibia um anel delicado com uma turmalina da cor dos olhos dela. Fiquei muito emocionada. Tenho me emocionado com tudo. Com o grupo de donos de cachorro que vejo diariamente na Praça Buenos Aires, com alguém que rasga o papel do picolé do outro lado da rua, com meu pai, minha mãe, minhas irmãs. O fato de eles existirem me emociona. Sei que essa percepção melodramática da vida tem a ver com o excesso de hormônios que circula pelo meu corpo. Por isso faço notas mentais, quero me lembrar disso no futuro, já que não pretendo engravidar novamente.
Anos atrás fui em um numerólogo, e ele me disse que a numerologia do meu nome era de quem ia ser mãe de gêmeos. Lembro bem da cena, eu ri alto e disse: “É bom mesmo, porque, se quiserem vir mais de um, que venham de uma vez só. Eu só vou engravidar uma vez.”
Chega uma nova mensagem do aplicativo: “Seus bebês estão do tamanho de uma maçã.”
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